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Passos N.93, Maio 2008

EXPERIÊNCIA / ESCOLA - TESTEMUNHOS

Aqueles que aceitaram
o desafio da educação

por Maddalena Vicini

A violência numa sala de aula em Módena. A “batalha” com os jovens de Locri. A companhia entre os professores de Bérgamo. Às vésperas do novo encontro nacional dos professores de CL, viagem por toda a Itália para descobrir o que nasceu na vida (e no trabalho) daqueles que aceitaram o desafio lançado na assembleia de outubro do ano passado

Não há escapatória nem via de fuga. “A escolha do homem é: ou conceber-se dependente só de Deus, ou livre de Deus e escravo das circunstâncias”. Foram com essas palavras de Dom Giussani que padre Carrón nos desafiou nos Exercícios da Fraternidade do ano passado. Foi o mesmo desafio lançado no encontro com os professores de CL realizado em Milão, dia 14 de outubro do ano passado. Cinco mil professores reunidos para falar dos “trinta anos de presença na escola”, seguindo as pegadas da assembleia que Giussani realizou em Viterbo, em 1977. Daquele encontro nasceu um trabalho. Feito de assembleias, retomadas e momentos de comparação, que aconteceram por toda a Itália. E a muitos desses gestos esteve presente também Franco Nembrini, responsável pelos Educadores do Movimento (CLE), que nestes meses fez, literalmente, um giro pela Itália, enfrentando ele mesmo o desafio lançado. “Fui interpelado radicalmente. Eu que recomecei a dar aulas depois de muitos anos de ausência e, quando do meu retorno à cátedra, encontrei uma situação diferente daquela que eu imaginava, descobrindo novas dificuldades. ‘Se você não é livre na classe, significa que, na realidade, não é livre nunca. O seu é um problema de fé’, me disse Carrón. Pois é, após trinta anos de Movimento, ainda está em jogo a minha fé! Um belo golpe! Um novo reinício. Aceitar essa provocação, questionar-me até o fundo, me fez ver a que coisa realmente eu estou apegado, se a Deus ou a outra coisa. O ponto é este: como eu saio da aula, derrotado ou vitorioso, independentemente do que aconteça lá dentro da classe? A quem atribuo meu sucesso, portanto a minha vida?”.
Um novo recomeço para todos. Do Norte ao Sul do país. “As assembleias foram o testemunho da tentativa pessoal e dramática de se recolocar no jogo, e isso se viu não só por meio dos discursos, mas também pelo grande número de colegas que compareceram”, relata Nembrini.
Na expectativa do próximo encontro com Carrón, previsto para 18 de maio, revisamos algumas dessas etapas, que mostram, com a simples força dos fatos, aquilo que sucede quando levamos a sério a própria humanidade, enfrentando a realidade tal como ela é.

MODENA. Cristina leciona Literatura num instituto profissional. Certa manhã foi substituir um colega em uma classe desconhecida. Assim que começou a aula ocorreu um ato de violência entre alunos no qual não se conseguia ver quem era o culpado. “Eu tinha duas possibilidades. A reação costumeira, justa e lícita: tomar as medidas disciplinares e deixar que tudo seguisse o seu curso normal. Ou ir até o fim da minha exigência de verdade e justiça, assim como emergia, fortemente provocada por aquele ato de violência gratuito: dar um nome às coisas”. Ela procura os alunos. Pergunta quem foi, tenta compreender o que houve. Ninguém diz nada. Termina o tempo e todos vão embora. Mas as possibilidades abertas por aquele acontecimento não se desfazem para Cristina. Ao contrário. Despertaram expectativa e curiosidade. “Ou era uma ocasião para verificar aquilo que Carrón nos disse, ou então eu me conformaria, como é o costume”. Foi aí que decidiu escrever uma carta aos alunos, colocando-se à disposição para se encontrar com quem quisesse, inclusive no sábado. O diretor e os colegas admiraram o gesto, mas se mostraram céticos; dizem para ela não esperar nada; aqueles jovens já enfrentaram muitas coisas e continuam a se mostrar pessoas “sem coração e sem esperança”. Passam-se os dias. Ninguém responde. Mas sexta-feira à tarde chega-lhe um bilhete. “Oi professora, me desculpe. Tomei consciência do meu gesto e também do seu. Tenho vergonha de dizer quem sou, mas gostaria de me desculpar”. O bilhete começa desse jeito e prossegue com uma chorosa confissão de culpa. “Identifico-me com esse jovem que nem sabe escrever direito – relata Cristina –. Penso no momento em que decidiu pegar a caneta, a mesma decisão que eu tive que tomar quando me dirigi à classe. Deverá ter se sentido livre e verdadeiro, como foi no meu caso. Porque o nome certo às coisas (mesmo o nome ‘maldade’, quando necessário), expor-se sem defesas ao que elas urgem, deixa aberta a ferida de uma pergunta de sentido real é uma possibilidade de cada instante”.

LOCRI. Irma, 28 anos, começou a lecionar no ano passado, em Locri, uma localidade que seus alunos definem ironicamente como “o triângulo das Bermudas” da região, junto com Africo e San Luca. O coração da “máfia” calabresa.
Ela tem nas mãos a classe mais temida do instituto, a famigerada II B, que até pouco tempo atrás costumava jogar as carteiras pelas janelas. Treze meninas e um menino. Uma situação desastrosa. Fechamento total. Desconfiança. Não reconhecem a autoridade. As meninas desses dois povoados se odeiam de tal modo que não podem nem ser interrogadas juntas.
Entre Irma e a classe, no início, estabelece-se uma batalha. “Não cedi à prepotência dos meus alunos. Mas não podia pretender que aprendessem alguma coisa sem que eu me envolvesse com eles. Aboli quase que totalmente as tarefas para casa e comecei a estudar com eles, em classe, todos os dias, para lhes ensinar um método de estudo”.
Um dia, porém, Irma ultrapassa o limite: faz uma crítica a M.C., a líder do grupo, que se revolta e ameaça. Voltando para casa, ela começa a se dar conta da gravidade do fato: censurar alguém de Africo significa colocar-se contra toda a classe, pois quase todos vêm de lá.
No dia seguinte, grande surpresa: na classe todos estão estranhamente quietos. M.C. não veio. Irma pergunta a razão daquela calma. Responde o único rapaz da classe, dizendo que se a colega fosse um homem, teria apanhado ali mesmo, porque ela não podia ter tratado daquele modo a professora. Todas concordam. Os jovens haviam colocado em segundo lugar a pertença a uma determinada região – algo intocável naquelas bandas – para afirmar a pertença a ela.
“Com o tempo, entendo cada vez mais claramente que a educação é, de fato, um envolvimento total, um ato de misericórdia: é uma imitação do gesto de Deus, que veio até aqui embaixo para afirmar o relacionamento comigo. Educar aqueles jovens é dobrar-me até a mentalidade deles, identificar-me com eles”.
A classe II B nunca é o que você espera, não é o que você gostaria que fosse. Quando Irma vê, na escala, que deve dar aula para eles, cria-se nela uma expectativa. Ali é obrigada a se questionar: “Quem sou eu?”. Abandona a perspectiva do “o que devo fazer?” para se questionar a si mesma. “Esses jovens me fizeram entender, de fato, o que é a correspondência de que tanto falamos: o que realmente faz crescer é a gente se colocar diante do próprio eu. Por isso, paradoxalmente, é para mim a classe mais querida”.

BERGAMO. No Colégio Traccia, em Calcinate, um grupo de jovens professores, em início de carreira, participa de uma série de diálogos com Franco Nembrini. “Eu precisava dizer aquilo que acontecia na classe, verificar minhas escolhas”, relata um deles, Francesco, professor de Italiano na escola secundária. Essas conversas diárias tornam-se uma oportunidade de aprendizado tão interessante que o grupo se amplia. De simples bate-papo em mesa de bar, com pão, salame e grappa, o encontro passa a ter um caráter fixo. Uma proposta de trabalho para se enfrentar a vida escolástica e aprender a profissão. Nasce assim o “domingo à noite para professores”. Espalha-se a notícia entre os colegas, e começam a chegar contingentes também de Milão e de outras regiões da Itália.
Em junho de 2007, Carrón quis encontrar-se com eles. “Um momento decisivo: `A primeira questão é o trabalho que vocês fazem com vocês mesmos, através de toda a trajetória do trabalho de ensinar´, nos disse ele”. Atualmente, são cem pessoas. “Depois do dia 14 de outubro – explica Francesco – colocamos no centro do nosso trabalho esta provocação: ‘Mas nós, algumas vezes, aceitamos arriscaremos verificar a proposta de Cristo, ao invés de abandoná-la um instante depois?’. A cada hora de lição eu estou diante do desafio. Tenho um aluno problemático que há anos é acompanhado por psicólogos. Agora entendo que para não tratá-lo como um caso humano de desespero, o único modo é olhar para ele partindo daquilo que me faz viver. Não faço nada de especial na sala de aula. Mas a psicóloga veio me perguntar o que aconteceu: o rapaz difícil, cujas técnicas não têm ajudado muito, voltou a falar com a mãe. ‘Bastava’ levá-lo a sério e estimá-lo por aquilo que ele é”.

TARANTO E REGIÃO. O primeiro fato foi, sem dúvida, a convocação de 14 de outubro: para esse encontro em Puglia compareceram 160 pessoas. A primeira coisa que vinha à mente não era o cansaço da viagem, mas a surpresa de termos sido agarrados, presos. Depois, a surpresa por alguém tê-los procurado, ter decidido amar a vida deles, o trabalho deles.
E agora tudo acontece na sala de aula, relata Angelo, professor de Filosofia no colégio de Grottaglie: “Um aluno me disse: ‘Mas professor, se não fosse Deus, será que eu estaria aqui na classe?’. Fiquei comovido e passei a acompanhá-lo. Com ele nasceu o primeiro grupinho de Escola de Comunidade, como um natural desdobramento daquilo que acontece na classe”.

ROMA. Pode-se ficar “muito bem impressionado” com as palavras ouvidas em encontros e assembleias. Pode-se também compreender a radicalidade da proposta de nos confrontarmos com o Destino. E arriscar, depois, deixá-la se tornar apenas uma grande premissa, a ser lembrada durante o dia ou nas conversas com os amigos. Mas a vida, teimosa, reserva sempre uma segunda oportunidade. Assim aconteceu a Cinetta, que leciona Letras num colégio de Roma: “Não me bastou a assembleia do dia 14. Só depois me dei conta de que não se tratava de aplicar os conteúdos que Carrón nos havia proposto, mas da minha mudança. A possibilidade de um relacionamento novo com as coisas”.
Por isso, dá início a uma Escola de Comunidade com os professores. “Por ocasião dos fatos da Universidade La Sapienza, me envolvi com aquilo que estava acontecendo. Ao invés de entrincheirar-me por trás de boas e verdadeiras razões – relata – desta vez decidi escrever uma carta a todos os colegas, colocando também para eles a pergunta: ‘O que significa introduzir os nossos alunos no conhecimento da realidade?’ Jamais teria conseguido fazer um gesto assim tão livre se não tivesse começado, por meio da Escola de Comunidade, a confrontar-me continuamente com uma presença que permite olhar as coisas desejando conhecê-las para além das tomadas de posição”. E uma sua colega acrescenta: “Primeiro, ao abrir a porta da classe, só um pensamento me ocorria: ‘Certamente hoje também eles não estudaram’. Agora, quando entro na classe, estou curiosa para ver como o Mistério se apresentará hoje. E isso muda completamente a maneira como vejo a mim mesmo e aos meus alunos”.

“O problema da educação é termos uma resposta a essa urgência do viver, a ponto de poder comunicá-la vivendo. Portanto, não é um problema dos jovens, mas dos adultos, é um problema nosso. Somente se nós, adultos, não faltamos a esse empenho com a realidade na sua totalidade é que podemos comunicar um sentido. Não pensemos em resolver o problema usando um manual de instruções!”

(Julián Carrón, Educar: uma comunicação de si, ou seja, da própria maneira de se relacionar com a realidade. Encontro com os educadores de CL de 14 de outubro de 2007, suplemento a Passos dezembro/2007)

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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