Vai para os conteúdos

Passos N.92, Abril 2008

EXPERIÊNCIA / ESCOLA DE COMUNIDADE

A fé, um método de conhecimento

por Paola Bergamini

Agostino. Manzoni. Tocqueville. Mas também Max Planck e Pasolini. Breve antologia de trechos (e autores) distantes uns dos outrosi, mas unidos por um fato: todos são exemplos de como a fé e a dinâmica da testemunha ajudam a entrar na realidade.Uma contribuição simples para o trabalho da Escola de Comunidade sobre o livro É possível viver assim? de Luigi Giussani

Chama-se fé, conhecimento por fé, o reconhecimento da realidade por meio do testemunho que alguém dá, que justamente se chama testemunha; (...) é um conhecimento da realidade que acontece através da mediação da pessoa em quem confio, que é adequadamente confiável. (...)
Portanto, antes de mais nada, a fé não se aplica somente a assuntos religiosos mas é uma forma natural de conhecimento, é uma forma natural de conhecimento indireto: de conhecimento, porém!
(Luigi Giussani, É possível viver assim? )


Max Planck
Uma intuição relativa ao mundo nunca pode ser demonstrada cientificamente; mas ela certamente resiste indestrutível a todas as tempestades, desde que se mantenha de acordo consigo mesma e com os dados da experiência. Nem na mais exata de todas as ciências pode-se ir adiante sem uma intuição relativa ao mundo; ou seja, sem hipóteses indemonstráveis. Até na Física não há bem-aventurança sem fé, pelo menos sem a fé numa realidade fora de nós. É essa fé segura que indica a via para o nosso impulso criador, que oferece os suportes necessários à fantasia, que vai tateando o terreno, e é a única que pode identificar o espírito cansado pelos insucessos e incitá-lo a novos passos para frente. Um cientista que, em seus trabalhos, não se deixe guiar por uma hipótese, ainda que prudente e provisória, renuncia a priori à íntima compreensão dos seus próprios resultados. Quem rejeita a fé na realidade dos átomos e dos elétrons, ou na natureza eletromagnética da luz, ou na identidade entre calor dos corpos e movimento, conseguirá certamente evitar contradições lógicas ou empíricas. Mas resta saber como conseguirá, partindo desse seu ponto de vista, fazer avançar o conhecimento científico. Claro, a fé não terá êxito sozinha e, como a história da ciência ensina, poderá também levar a erro e degenerar em restrição mental e em fanatismo. Para que a fé seja sempre um guia confiável é preciso continuamente controlá-la, a partir das leis do pensamento e da experiência, e com esse fim nada se equipara ao trabalho consciencioso, cansativo e cheio de abnegação do pesquisador. Mesmo o rei da ciência, se por acaso houver um, deve saber e querer fazer o papel de carregador de peso, no laboratório ou no arquivo, ao ar livre ou na escrivaninha. É justamente nessas duras lutas que a intuição a respeito do mundo amadurece e se afina. Só quem provou pessoalmente o que é esse processo saberá apreciar plenamente seu significado. [...] A fé é a força que dá eficácia ao material científico reunido, mas podemos dar mais um passo à frente e afirmar que também na hora de recolher o material a previdente e intuitiva fé em nexos mais profundos pode prestar bons serviços. Ela indica o caminho e agudiza os sentidos.
(de: O conhecimento do mundo físico)

Guglielmo d’Auxerre
Quanto mais a pessoa crê, mais rápida e claramente vê as razões, pois a fé ilumina a mente.
(de: Summa Aurea, I, Prologus)

Santo Agostinho
Mas, segundo dizes, tu crês no amigo, cujo coração não podes ver, porque o experimentaste nas tuas situações difíceis e conheceste qual era a sua disposição de ânimo em relação a ti por ocasião dos perigos, quando ele não te abandonou. Talvez, então, segundo tua opinião, precisemos augurar desgraças para ter a prova de amor dos amigos em relação a nós? Por acaso alguém estará privado de experimentar a felicidade oriunda de amigos fidelíssimos a não ser que tenha passado pela infelicidade das adversidades, ou jamais poderá usufruir do amor provado de um outro a não ser depois de ter sido atormentado pela dor ou pelo temor? E, então, como se pode desejar – e não temer – essa felicidade que se experimenta em ter verdadeiros amigos, quando só a infelicidade pode torná-la certa? E, todavia, é indubitável que se pode ter um amigo mesmo na prosperidade, embora seja verdade que é nas adversidades que temos a prova mais segura.
(de: A fé nas coisas que não vemos, 1.3)

A viagem de Pasolini a Sant’Alberto di Butrio
Testemunho de Angela Volpini
Para ir encontrar o frei Ave Maria era preciso deixar o carro alguns quilômetros distante e caminhar pacientemente por entre os montes do Além-Pó. Era a única maneira de alcançar o eremitério de santo Alberto de Butrio, onde morava o religioso, já com fama de santidade; no mundo secular ele chamava-se Cesare Pisano; na Igreja, frei Ave Maria, eremita da Divina Providência, família religiosa fundada por dom Luigi Orione.
É a primavera de 1963. Pier Paolo Pasolini empreende a longa caminhada até o eremitério. Está trabalhando no filme O Evangelho segundo Mateus, e não é a primeira vez que busca inspiração em colóquios com homens de fé ou visitando locais de oração.
Pasolini, durante essa visita, de vez em quando interrompia a sintaxe dos seus pensamentos com exclamações do tipo “Que lugar!”, “Que homem!”, “Que colóquio extraordinário!”. Só alguns dias depois ele se explicou comigo, com mais detalhes: “Frei Ave Maria dedicava toda a sua atenção a mim. Falava com tal naturalidade, embora na linguagem religiosa, que se tornava não só respeitoso, mas até fascinante. Não se admirou do meu ceticismo e me disse que o seu Jesus ama mais os distantes do que os próximos, que não se escandaliza com nada e só Ele conhece de fato o coração humano. Diante dele, eu, artista, não me senti – como acontece com freqüência em lugares sérios e importantes – um pouco fora de contexto... O frei também é original como eu, alguém criativo... inventou seu tipo de vida, estranho para o bom senso comum, mas verdadeira e fascinante. Também ele é um filho da arte, consegue transformar em bela e extraordinária uma vida que, analisada racionalmente, é a morte civil e uma loucura”. Depois, Pasolini se embrenhou no bosque em volta da abadia, sozinho, e talvez tenha anotado algo sobre o encontro.
Talvez o conteúdo daquelas notas esteja nestes versos: E essa foi a via pela qual, como homem sem humanidade, como inconsciente subjugado, ou espião, ou impuro caçador de benevolência, sentiu a tentação da santidade. Foi pela poesia.
(de: 30Giorni, n.2 2002)

Alexis de Tocqueville
Se o homem fosse obrigado a demonstrar a si próprio todas as verdades de que se serve diariamente, nunca chegaria ao fim: esgotar-se-ia em demonstrações preliminares, sem jamais avançar; mas como não dispõe nem do tempo, dada a brevidade da vida, nem da capacidade, dados os limites da sua inteligência, para agir assim, termina forçosamente por assumir como certos muitos fatos e opiniões que não teve nem tempo nem possibilidade de examinar e de comprovar sozinho, mas que foram considerados por outras pessoas mais hábeis ou adotados pela massa. Só a partir dessa primeira base é que o homem pode erguer pessoalmente o edifício dos próprios pensamentos: um modo de proceder que não depende da sua vontade, mas ao qual se acha preso pela inflexível lei da sua condição.
Não há no mundo filósofo tão excelso que não creia numa miríade de coisas baseado na fé de outros, e que não suponha mais verdades do que as que pode comprovar.
Isso é não apenas necessário, mas até mesmo desejável. Um homem que se metesse a avaliar tudo pessoalmente só poderia dedicar pouco tempo e pouca atenção a cada coisa; esse trabalho deixaria seu espírito num estado de perene agitação, que lhe impediria de penetrar profundamente numa verdade e de se enraizar solidamente numa certeza. Sua inteligência seria, ao mesmo tempo, independente e servil. É, pois, necessário que, entre os diversos objetos das crenças humanas, o homem faça uma escolha e adote muitas opiniões sem discuti-las, com o objetivo de se aprofundar melhor naquele pequeno número de coisas que pretende examinar.
É verdade que todo homem que aceita uma opinião confiando na palavra de outros torna seu espírito escravo; mas é essa uma submissão salutar, que lhe permite fazer bom uso da liberdade. Qualquer coisa que aconteça, pois, não podemos deixar de nos socorrer de alguma autoridade no mundo intelectual e moral. Seu posto é variável, mas sempre o terá. A independência individual pode ser maior ou menor, mas nunca será ilimitada. A questão não é, pois, saber se existe ou não autoridade intelectual nos séculos democráticos, mas apenas saber onde ela se concentra e em qual medida.
(de: A democracia na América, Utet, 2007)

Alessandro Manzoni
Ao fechar o caderno, eu não atinava como uma história tão linda pôde permanecer desconhecida; porque, enquanto história, pode ser que o leitor pense diferente, mas a mim ela parecia bela, muito bela. “Por que não podemos – pensei – tomar a série de fatos deste manuscrito e reescrevê-los?”. Não aparecendo nenhuma objeção razoável, a solução foi tomada. É essa a origem do presente livro, exposta com ingenuidade semelhante à importância do próprio livro.
Alguns desses fatos, porém, certos costumes descritos pelo nosso autor, poderão parecer tão novos, tão estranhos – para não dizer coisa pior –, que, antes de lhes dar fé, foi preciso interrogar outras testemunhas; e assim tivemos de mergulhar nas lembranças daquele tempo, para nos certificar de que o mundo, de fato, caminhava daquele modo. Tal pesquisa dissipou todas as nossas dúvidas: a cada passo nos deparávamos com coisas semelhantes e até mais fortes; e – o que nos pareceu mais decisivo – chegamos mesmo a encontrar alguns personagens, dos quais não tínhamos nenhuma notícia além daquelas do manuscrito, e por isso estávamos em dúvida se realmente teriam existido. Ocasionalmente citaremos algumas dessas testemunhas, para garantir fé a coisas que, por sua estranheza, o leitor seria tentado a negá-las.
(de: Os Noivos, Ediouro, 1971)

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página