Vai para os conteúdos

Passos N.90, Fevereiro 2008

DESTAQUE / 1968

O que restou de 1968

por Davide Perillo

Uma revolta estudantil de dimensões mundiais. Jovens ocupando universidades, enfrentando exércitos, insurgindo-se contra a ordem estabelecida, fosse ela uma ditadura de direita, de esquerda ou uma democracia liberal. Idealismo, luta pelo poder, rejeição das autoridades, violência... Há quarenta anos a rebelião estudantil marcou aquilo que Bento XVI chamou de “a grande crise” da cultura ocidental. Naquele momento, nasceu também o nome Comunhão e Libertação, para definir a experiência que crescia a partir do carisma de Dom Giussani e que enfrentava, de modo construtivo, essa grande crise

Bento XVI, num discurso feito há alguns meses, falou de “ruptura” e de “início ou eclosão da grande crise cultural do Ocidente”, para referir-se aos acontecimentos que marcaram o ano de 1968. É uma avaliação forte. Naquele ano, a revolta mobilizou estudantes de lugares tão diferentes, como Paris, onde se insurgiram contra o vazio e a falta de sentido da sociedade liberal; Tchecoslováquia, com o dramático enfrentamento do regime soviético conhecido por “Primavera de Praga”; ou Brasil, onde a revolta estudantil foi um dos pretextos para o Ato Institucional Nº5, que consolidou a ditadura militar entre nós.
“Uma resposta errada a demandas justas. Ou, pelo menos, parcialmente justas. Eis aí o que foi aquele 68”. Assim Giulio Sapelli define aquele momento. O próprio Dom Giussani, no livro-entrevista feito por Robi Ronza (“Il movimento di Comunione e Liberazione”, Jaca Book, 1987), assim falava dele: “Reconhecemos todos, imediatamente, a justeza das demandas que os movimentos estudantis empunhavam: maior autenticidade e maior liberdade, que inspirava a rebelião contra o autoritarismo e contra estruturas massacrantes”. Entender 1968 é entender grande parte do que aconteceu depois no mundo todo.
Em 68, Giancarlo Cesana, líder de CL, e Giulio Sapelli, professor de História Econômica na Universidade de Milão, militavam nas trincheiras do movimento estudantil, distantes de suas posições atuais. A seguir, ambos nos ajudam a compreender aquele momento da história.

A revolta de 1968, atingindo países muito diferentes naquela época, teve muitas conotações regionais, mas sua origem, sem dúvida, foi a Europa. Para começar, poderia explicar-nos o que foi a revolta de 1968 nesse contexto?
Sapelli: Em 1968, confluíram dois grandes movimentos. Antes de tudo, a revolta operária. Hoje, os operários europeus nem se lembram disso, mas as suas reivindicações, então, eram sensatas. Eles levavam uma vida duríssima, com salários muito baixos. Exigências justas, portanto. A resposta é que foi errada, sobretudo por parte dos sindicatos, que não souberam administrá-la e pagam até hoje o preço dessa incapacidade. Depois, houve o 68 como revolução das classes médias. Pasolini falava justamente disso. Os militantes de 68 retomaram as formas do atualismo de Gentile, o teórico do fascismo: primeiro, a violência; depois, a ideia. Veja bem: na época, eu era um jovem comunista. Ou melhor, um católico trotskista engajado na FGCI (seção juvenil do partido comunista italiano – ndt). Eu era filho de operários: trabalhava de dia e estudava à noite. Vinha a Milão para participar dos debates e via esses filhinhos-de-papai, vestidos com roupa de grife, carregando fotos de Mao. Era, sobretudo, um fenômeno burguês.
Cesana: É verdade, na Europa Ocidental, 68 não foi um fenômeno revolucionário. No máximo, antiautoritário. Foi uma revolta das classes médias e da intelectualidade. Não teria continuado, os jovens não teriam tido força para continuar, se seus pais não os houvessem apoiado. E os pais eram intelectuais laicos e católicos que haviam cedido ao fascismo e que, no marxismo, encontravam a própria redenção. Eram os derrotados da história buscando revanche. A certa altura, essa intelectualidade se rebelou contra a tradição. Contra a tradição do povo italiano: democrata-cristão, católico, trabalhador, socialista, idealista. O perfil cultural era esse. Depois atacaram os operários.

Vocês falam de antiautoritarismo e ruptura com a tradição. O movimento foi uma revolta contra o próprio princípio de autoridade, em nome da liberdade?
Sapelli: Na verdade, ali se separou a autoridade da liberdade. Isso é indiscutível. A liberdade só existe onde existe autoridade. A liberdade deve servir para alguma coisa, na relação com o outro. Não pode servir só para mim. Desse ponto de vista, a ruptura iniciada naquele período foi terrível. Gerou uma crise de desagregação que continua até hoje.

E a chave de tudo é ainda o desprezo da autoridade e da tradição. A recusa de se reconhecer a validade do que veio antes.
Sapelli: Confunde-se autoridade com poder. O poder é obrigar uma pessoa a fazer algo que ela não quer fazer. A autoridade é outra coisa. Ela “se impõe por si mesma”. Eu só sou livre se creio em algo. Se não acredito em nada, sou um niilista. Em 68, difundiu-se um niilismo em massa que ainda hoje é popular. Basta observar a relação pais-filhos, ou homem-mulher. E não falo de questões do tipo aborto ou divórcio: refiro-me à simples organização da vida social. Foi uma catástrofe da qual ainda não conseguimos sair.

Mas havia sinceridade ou era só oportunismo?
Cesana: Não é possível fazer juízos morais sobre fenômenos históricos. A respeito da sinceridade, cada um tem a sua consciência. Sejamos claros: havia motivos para ser a favor da rebelião. Eu era médico do trabalho e atuava em usinas siderúrgicas. Vi coisas que, se contasse hoje, ninguém acreditaria. Por exemplo, havia o forno de segundo cozimento onde eram colocados, a novecentos graus de temperatura, as peças de aço já modeladas, para o acabamento. Havia um peão que tomava impulso e subia correndo até o alto do forno, prendia a peça na corrente que a levaria para dentro do forno e descia correndo para mergulhar na água fria... Mas é preciso falar também da escola de então: elitista e reacionária. Eu era filho de ferroviário. Na Medicina, era o único; todos os outros eram filhos de professores, intelectuais; no máximo, profissionais liberais. Em suma, burgueses. Uma das coisas que mais me impressionava neles era o modo como jogavam fora os livros, as coisas... Para mim, era um desperdício inexplicável.
Sapelli: Era uma sociedade cruelmente classista, precisamos dizê-lo. Mas o extraordinário é que não foram os excluídos que se rebelaram, mas os incluídos. Havia uma rebeldia das classes médias. Guiadas por ativistas políticos em tempo integral, que se autoproclamavam vanguarda revolucionária.
Cesana: Pena que o efeito, depois, tenha sido o de “todos dentro”. Em 1976, só na Universidade de Milão, havia 2.700 matriculados na Medicina; mais do que todo o Reino Unido junto! Daquelas reivindicações ficou, como resultado, uma série de direitos: direito à vaga, direito de estudar aquilo que quiser... Eu entrei na universidade em 1967. Depois de alguns dias, ocupamos a universidade, porque reprovaram 90% dos alunos no exame de Bioquímica. Quando saí, seis anos depois, a universidade continuava ocupada. Por dez anos, ela se transformou numa confusão geral. E foi destruída a meritocracia. Tudo isso tem um custo.
Sapelli: Além disso, houve a violência. Sem o 68, não haveria, depois, o terrorismo europeu da década de 1970. Eu também me lembro sempre de gente como Guido Viale, que queimava os livros dizendo: são livros da cultura burguesa. Não, a verdade é que se dava início à desagregação que é o retrato de hoje: vivemos ainda uma crise desagregadora do Estado e da ordem social.
Cesana: Desse ponto de vista, compreende-se até melhor a grandeza de Giussani, que, em 1954, fez uma coisa nova, porque compreendeu que tudo degringolava...

Se fizermos uma lista das siglas daqueles anos, desapareceram todas. Só CL sobreviveu, ela que renasceu justamente naquele tempo. Como explicar?
Cesana: É como se Giussani tivesse que reinventar o cristianismo para ele próprio poder vivê-lo. Quando começou a lecionar, foi ao Berchet, que era uma escola laicíssima. Ele tinha que responder àquelas perguntas para dar respostas a si mesmo. Eu era de esquerda, e entrei no movimento em 1971. Fiz a trajetória no sentido contrário. Um pouco porque eu era militante operário, e muito por motivos pessoais: eu estava apaixonado, mas a moça que eu amava não me dava bola. E eu pensei: Mas como? Eu estou fazendo uma revolução para mudar o mundo, e a única coisa que quero eu não consigo? Onde está a justiça? Depois encontrei Giussani... Mas, para permanecer católicos num ambiente assim, fomos obrigados, junto com ele, a repensar tudo. O modo de julgar, de dialogar, a linguagem... Desse ponto de vista foi uma experiência riquíssima. Nos primeiros anos, muito problemática: tendo que repensar tudo, nossa preocupação era encontrar um lugar ao sol.
Sapelli: Nesse sentido, Dom Giussani não era um teólogo; era um grande educador.
Cesana: Digamos, um padre da Igreja. Alguém que se preocupou em transmitir aos filhos aquilo que ele mesmo vivia.

O contrário de 68...
Sapelli: Justamente. Ao passo que do catolicismo que eu conhecia – como aquele de certos ambientes intelectuais turineses – que mensagem vinha? Naqueles anos, eu me afastei não da fé, mas da prática religiosa, porque não sentia nenhuma atração por ela. Meu pai era um homem muito simples. Ele não sentia necessidade de grandes justificativas. Comigo, porém, era mais complicado: eu estava me tornando um intelectual, lia, criticava. Para mim, aquela Igreja era também uma Igreja de testemunho, mas não tinha nenhum atrativo.
Cesana: Também para mim, aquela Igreja não era convincente. A gente podia apreciar a dedicação de uns, a intuição de outros, mas nada que impressionasse. Com Giussani, não: ninguém ficava indiferente diante dele.

A respeito de educadores e educação: ao se romper com a tradição, não se está também prejudicando a possibilidade de projetar os valores do presente para quem virá depois? Em suma, a crise educacional de hoje também não tem suas raízes lá?
Sapelli: Essa era uma das coisas que mais me enfureciam. Como é possível falar de cultura burguesa e cultura proletária? Goethe é o quê? Cultura burguesa ou proletária? E Thomas Mann? Não deveríamos ler Stendhal e companhia! Em Turim, Massimo Mila, o musicólogo, nos fazia ouvir Mozart. Bem, uma noite, os ativistas chegaram e quebraram tudo: chutes, insultos... Achavam que ele era fascista; ele que, no regime de Mussolini, tinha ficado anos na prisão, dá para entender? A verdade é que, naquele momento, perdeu-se o controle. Não controlavam mais nada. Era como a afirmação de um ego sem limites. É isso, o narcisismo, que também é outro elemento de uma sociedade em crise (como a nossa), também tem raízes lá e é um dado imponente, tanto quanto o niilismo. Basta assistir à TV, aos reality shows, aos talk shows: há gente que faz qualquer coisa para aparecer ali.
Cesana: É verdade. Antes, a ideia de fazer algo parecido nos mataria de vergonha. O princípio da dedicação ao ideal era mais forte. O ideal vinha antes do meu eu. Ainda que com algum grau de hipocrisia, mas havia isso.

Naquilo tudo que contaram, ecoa uma palavra-chave: liberdade. Em 68, dá para se afirmar que ela foi mal usada. Hoje, o risco é idêntico. Mas há algo que nos ajude a não desperdiçá-la? Enfim, um jeito de escapar desse banco de areia em que as ondas de 68 nos encalharam?
Sapelli: Do ponto de vista pessoal, sim. Há um “Deus oculto” que está lá, como dizia Pascal. Basta vê-lo. Mas, socialmente, não dá para sermos otimistas. Talvez o ensinamento seja esse mesmo: é preciso sempre partir da mudança micro, não macro.
Cesana: Isso é evangélico: quem não é fiel nas coisas pequenas...


CRONOLOGIA
Um ano de conflitos
por Francisco Borba

5 de janeiro, Tchecoslováquia: Início da Primavera de Praga, marcada pela vitória nas eleições do ministro Alexander Dubcek, que questiona a ditadura comunista.
15 de janeiro, Itália: Iniciam-se os protestos universitários com um Ato Público na Praça São Pedro, em Roma. Nos meses seguintes, os estudantes ocupariam Universidades em várias cidades italianas.
30 de janeiro, Vietnã: os vietcongs fizeram uma surpreendente ofensiva – a Ofensiva do Tet (o ano novo lunar chinês) – sobre 36 cidades sul-vietnamitas, mudando os rumos da guerra a seu favor.
1 de março, Itália: Num confronto entre polícia e estudantes, uma centena de pessoas é ferida.
16 de março, Vietnã: Tropas americanas matam vários civis (Matança de My Lai).
21 de março, Itália: Na terceira ocupação da Universidade Católica de Milão, estudantes revidam violentamente a ação policial, iniciando a “guerrilha urbana” na Itália.
28 de março, Brasil: Em uma ação contra estudantes, a polícia mata um jovem de 19 anos no restaurante universitário, no Rio de Janeiro.
4 de abril, EUA: O militante pacifista negro Martin Luther King é assassinado.
6 de abril, EUA: Lançamento do filme 2001, Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick.
12 a 18 de abril, Alemanha: Estudantes protestam contra um atentado a seu líder. Dois estudantes morrem.
23 a 30 de abril, EUA: Em Nova York, por uma semana, cerca de 250 mil universitários protestam contra a Guerra do Vietnã.
2 a 10 de maio, França: Início do Maio de 1968. Estudantes levantam barricadas nas ruas e ocorrem confrontos com a polícia. A Universidade de Paris (Sorbonne) é fechada pelas autoridades. Passeatas são dissolvidas com violência cada vez maior pela polícia. Os estudantes ganham a simpatia de vários setores da sociedade e sindicatos que aderem à causa estudantil.
5 de junho, EUA: Robert Kennedy, candidato democrata à presidência, é assassinado.
23 de junho, França: O presidente francês Charles de Gaulle, contrário ao movimento estudantil, ganha as eleições e sai fortalecido politicamente. Os últimos focos de resistência estudantil e sindical são sufocados.
25 de julho, Vaticano: O Papa Paulo VI publica a encíclica Humanae Vitae, que condena o uso de anticoncepcionais.
26 de junho, Brasil: No Rio de Janeiro, acontece a Passeata dos Cem Mil.
20 e 21 de agosto, Tchecoslováquia: Fim da Primavera de Praga: Tropas soviéticas invadem a cidade de Praga.
2 de outubro, México:Massacre de Tlateloco, no qual o exército mata 48 pessoas durante manifestação estudantil.
3 de outubro, Brasil: Na rua Maria Antônia, em São Paulo, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP é invadida e ocorre um violento confronto entre estudantes a favor e contra o regime militar.
13 de dezembro, Brasil: É decretado o Ato Institucional nº 5, que durou dez anos, dando início ao período mais fechado e violento da ditadura militar no país.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página