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Passos N.88, Novembro 2007

ENCARTE

O dom do Espírito e a existência cristã

por Julián Carrón
encarte em anexo

Notas do encontro com padre Julián Carrón na Assembléia de Escola de Comunidade sobre o livro O caminho para a verdade é uma experiência, das páginas 129 a 150. São Paulo, 09 de setembro de 2007


Depoimento: O senhor fala que é preciso lançar-se em um trabalho para aprendermos a olhar para aquilo que aconteceu, como o gesto de Roma (audiência com o Santo Padre pelos 25 anos da Fraternidade de CL; nde). Identificar-se com o que aconteceu é fruto da graça do Espírito ou é um trabalho nosso, um empenho?

Padre Carrón: Às vezes nos é difícil colocar juntos o dom e o empenho. Para nós parecem duas coisas que não estão juntas. Mas se olharmos o real, se olharmos a experiência que fazemos, nós nos damos conta de que recebemos um dom porque nos colocamos a trabalho! Porque move a nossa liberdade. Por exemplo, o apaixonar-se é um dom e nós sabemos que aconteceu porque nos colocamos em movimento. Nós queremos reencontrá-la. Pegamos o carro para ir encontrá-la. Ou queremos conhecer a história dela, o que lhe aconteceu na vida. Tudo, menos ficar parados. Quanto mais é dom, quanto mais nos atrai aquilo que aconteceu, mais nos coloca em movimento. Por isso o encontro com Cristo é um dom. Isto é visível no modo como os discípulos, depois que encontraram Jesus, se moveram para encontrá-lo no dia seguinte, e no outro dia ainda, e no outro, até que se tornaram amigos. Nós estamos tão habituados a olhar o Evangelho como uma coisa abstrata, como um conjunto de valores que devem ser cumpridos que nem percebemos aquilo que o Evangelho realmente conta, que é muito mais humano e que tem muito mais a ver com o que acontece nos relacionamentos entre nós. Por isso não ficamos surpresos com o fato dos discípulos terem ido encontrá-lo no dia seguinte. Mas poderíamos começar a nos surpreender se olhássemos para a nossa experiência e verificássemos que de todas as pessoas que encontramos na vida, quantas delas gostaríamos de reencontrar? Quando nos movemos por causa de outra pessoa é porque algo aconteceu, é porque recebemos um dom. E quanto mais entendemos o valor desse dom, mais nos movemos, mais nos empenhamos.

E isso não está em contradição com o dom. Muitas vezes nós queremos o dom, mas não o empenho. Mas se voltarmos a olhar a experiência que a pessoa faz quando se apaixona, não é que se apaixona e deseja que um outro vá passear com a pessoa por quem se apaixonou, ou a leve ao cinema, ou saia para dançar com ela no seu lugar. Sou eu que quero me empenhar, que quero compartilhar com aquela pessoa a minha vida. Por isso, quanto maior o dom, mais ele nos coloca a trabalho. Mas se esse dom é o encontro com Cristo, isto se torna a coisa mais fascinante e a pessoa deseja que entre em tudo. Que aquela alegria que eu encontrei no encontro com Ele alcance o meu trabalho, a minha solidão, a minha tristeza, o meu cansaço, tudo o que eu tenho que fazer, os meus relacionamentos, a pessoa que eu amo. Desejo que tudo seja investido da novidade que esse encontro suscitou em mim. Quem não desejaria que o trabalho cotidiano, às vezes pesado, fosse todo investido por esta novidade? E de ir trabalhar não porque faz um trabalho que, no caso, é pesado, mas pelo desejo de que tudo seja investido d’Ele, pelo desejo de que o trabalho seja a ocasião de tornar visível a capacidade que Ele tem de mudar tudo? E assim como o trabalho, todo o resto da vida. Ou seja, acontece um dom e começa um empenho para investir tudo nesse dom.

O primeiro empenho é que a gente deixe espaço para isso todos os dias. Pensem em Zaqueu que está ali esperando para vê-Lo passar. Imaginem que agora aqui passasse Jesus, e a cada um de nós, que somos nada, dissesse: “Posso jantar com você hoje à noite?”. Nós podemos responder como Zaqueu e recebê-Lo muito contentes. Quem não faria assim? E no dia seguinte, quem experimentou isso, se é que conseguiu dormir durante a noite, quem é que poderia acordar de manhã sem pensar n’Ele, sem pensar naquilo que tinha acontecido? E no dia seguinte o mesmo. O que mais poderíamos fazer na nossa vida do que deixar que se torne familiar isso que aconteceu, de tal modo que seja a forma como acordamos de manhã? Mas para que permaneça viva em mim a memória daquilo que aconteceu é preciso um trabalho. Porque muitas vezes nos levantamos ainda um pouco adormecidos, como se nada tivesse acontecido. Vamos tomar café da manhã e depois começamos a trabalhar distraídos, como se o Verbo não tivesse se feito carne. Para vencer essa distração é preciso um trabalho, um empenho, tenho que dar-Lhe espaço todas as manhãs. Do contrário, a cada dia que passa o que aconteceu se torna mais frágil até o ponto de esquecê-Lo. Por isso é preciso pedir o dom do Espírito para que isso entre nas minhas vísceras! E eu não posso ser tão presunçoso a ponto de achar que não preciso pedir isso todos os dias. Como um mendicante, todos os dias eu tenho que deixar esse olhar penetrar em mim. E aos poucos isso começa a se tornar o critério com o qual vivo tudo. Quem não gostaria de viver todos os dias com o mesmo olhar com que Zaqueu foi olhado? Mas para tanto é preciso que sejamos educados, do contrário tudo acaba no esquecimento.



Depoimento: Nos embates dos relacionamentos na comunidade não fica tão evidente essa forma diferente, mais humana de viver, que toca os outros. Pelo contrário, muitos limites vêm à tona, e esse Algo novo que Ele afirma não fica tão evidente. Queria entender qual é o ponto.

Padre Carrón: É verdade que a primeira coisa que o Espírito realiza, como vimos no Pentecostes, é essa comunidade nova. É só ler os Atos dos Apóstolos. Estavam tocados por uma unidade diferente. Mas muitas vezes prevalece o limite dessa comunidade. É preciso uma familiaridade com Algo para que o limite não vença. Às vezes os limites nos assustam, mas isso é sinal de que não estamos olhando bem. Não porque é preciso eliminar o limite, mas porque o limite que existe e que sempre vai existir não pode eliminar a novidade presente naquela comunidade. O Mistério usou esse método para se comunicar: escolher alguns homens para por meio deles alcançar a todos. Pensemos na história do povo judeu, Abraão, Moisés. No meio de todos os homens, escolheu alguns; e só existe um tipo de gente: homens com limites. Imagine que você tenha uma filha gravemente doente. Você gostaria que o médico que está cuidando dela fosse simpático, que tivesse tempo para lhe explicar tudo, fosse compreensivo. Mas depois de muitas tentativas você se dá conta de que o único médico que entende da doença da sua filha é um cretino. Apesar de tudo, você gostaria que esse médico, mesmo cretino, entendesse da doença da sua filha? Ele pode ser uma pessoa detestável, mas isso não impede que ele seja capaz de responder à doença dela. E no final você está agradecida. E se você, em um momento de loucura, prefere não levar a sua filha para se tratar com ele, ou seja, deixa prevalecer o limite sobre o valor, todos nós concluiríamos que você não ama a sua filha.

Nós não somos bobos. Não é que não reconhecemos todos os limites da comunidade cristã. Nós sofremos esses limites. Mas nós sabemos que essa comunidade carrega em si um bem em vasos de argila, que é muito maior do que todos os limites. E, além disso, eu digo sempre: ainda bem que é assim, que a Igreja, a comunidade cristã, acolha pessoas com limites, porque do contrário não haveria lugar para mim. Mas isso não é sinal da fraqueza da comunidade cristã, e sim da ternura de Cristo que acolhe a todos, mesmo a nós pecadores. E isso é realmente uma vantagem, porque é o único lugar no mundo no qual podemos ser abraçados por aquilo que somos. Em todos os outros lugares temos que cumprir certas pré-condições para sermos acolhidos. A novidade, como disse São Paulo, é que quando ainda éramos pecadores, Cristo morreu por nós. É esse “antes” o que nos surpreende e nos enche de gratidão por Cristo.

É importante, porém, sublinhar que isso não pode se tornar um álibi para que não exista a tensão para a mudança. Porque é verdade que Cristo nos ama e nos acolhe assim, sem condições, mas que dor existe em nós pelo fato de não correspondermos a esse amor! Por isso não é possível ouvir essas coisas como uma justificativa ao nosso mal. Tanto é verdade, que Zaqueu, depois de ter experimentado a ternura d’Ele sem medidas, teve o desejo de mudar. Aquele encontro o mudou muito mais do que todas as reprovações que ele havia recebido por anos dos fariseus da sua cidade. Sinto muito pelos moralistas, mas o que mudou Zaqueu foi muito mais esse olhar cheio de ternura de Cristo do que todos os chamados morais. Porque não existe um chamado de atenção moral mais poderoso do que ser amado. Por isso podemos reconhecer numa comunidade cristã cheia de limites algo diferente. Uma diferença real, verdadeira, que não pode ser reduzida nem eliminada por nenhum limite. Tanto é verdade que o encontro que fizemos e que nos fascinou foi com pessoas cheias de limites, mas, como dissemos, pessoas que carregavam uma diferença. Os limites não puderam esconder essa diferença que nos arrastou até aqui.



Depoimento: Nos Exercícios da Fraternidade você dizia que nós achamos que o limite é uma etapa a ser superada, mas que na verdade é uma benção para a nossa salvação. Eu entendo que limites são limites, mas toda vez que, como professora, não dou a atenção devida aos outros, tomo uma decisão errada ou não dou atenção ao meu marido, ficam marcas. A questão é: Deus é misericórdia e me perdoa, mas o que eu faço com as penas do pecado que eu vejo por todo lugar e parece que têm um peso maior do que a presença de Deus?

Padre Carrón: Isso está errado. Eu entendo que é dramático, porque isso não deixa de nos machucar, dói o fato de machucar o outro, de não resolver todas as dificuldades dos outros, mas o maior limite que temos é o de não sermos capazes de vencer o mal. Portanto, a questão é que se a pessoa fica bloqueada por um mal, ela pode dizer: com os meus colegas, os professores, como eu não sou capaz de vencer o mal, não faço nada então. Mas é bem aí que está a questão central. Quem é que possibilita que tudo recomece? É Ele que olhando para Zaqueu de uma forma diferente possibilita que tudo recomece. Porque a primeira questão não é o que fazemos para os outros, mas o que fazemos conosco. Os primeiros derrotados somos nós. Mas tendo uma filha, você gostaria mais que ela tivesse uma professora com iniciativa, mesmo com os seus limites, ou uma outra que não se importasse com a sua filha, pois para não machucá-la não faria nada com ela? Por isso Dom Giussani dizia que as nossas tentativas são irônicas. Quando fazemos o mal e vamos nos confessar, nós pedimos perdão ao outro, e por isso é possível recomeçar, porque isso não é obstáculo ao relacionamento com o outro. Se alguém lhe machuca e imediatamente ele lhe pede perdão, você recomeçaria o relacionamento com ele? Nós não perdemos nada ao pedir perdão. Podemos recomeçar normalmente. Se não fosse assim seria impossível construir uma história humana, porque todos somos cheios de limites. Por isso não devemos nos desencorajar. Isso não pode se tornar uma objeção. Ninguém é capaz de entender isso melhor do que nós, porque temos Cristo que nos perdoa.

Sobre a falta de tempo, é preciso escolher as pessoas a quem vamos responder por que nós não somos deuses. E Jesus, que era Deus, Ele não curou todos os doentes do seu tempo. E podia. A nós é pedido que na nossa pequenez contribuamos com a obra d’Ele. É uma contribuição pequena, mas aquilo que o Senhor nos pede é para preencher tudo da Sua grandeza. Por isso eu fico contente de sempre precisar de Cristo. Porque eu também, como você, faço a experiência do mal, e por isso eu posso me comover diante do olhar cheio de ternura que Cristo tem por mim. Eu não estou querendo justificar o meu pecado, mas é por meio dessa ferida que Ele entra e eu posso assim conhecê-Lo. Basta lermos os Evangelhos. Jesus diz: “Eu vim para os doentes e não para os sãos”. Nós temos que nos reconhecer pecadores. E quem conheceu mais Jesus: o fariseu que não se deixou comover, ou Zaqueu que se deixou comover? Quem é uma pedra que não se comove diante de nada ou um outro que tem uma ferida aberta? Pense o que você como professora desejaria mais para a sua filha. Aí fica claro que este diálogo misterioso entre Cristo e o meu limite é decisivo para que sejamos humanos. Porque só quem é humano, quem conhece o próprio limite, o próprio mal, não é presunçoso no relacionamento com os outros, porque ele é o primeiro necessitado. Eu prefiro ser um necessitado.



Depoimento: Eu gostaria que você aprofundasse o que quer dizer “o homem é relacionamento direto com o Mistério” ou que “o Mistério está dentro do eu”. Parece-me que o nosso grande problema é que há uma desmoralização da nossa maneira de ver a nós mesmos. É como se disséssemos: “É impossível que Cristo esteja em mim; é impossível que eu possa ser relacionamento direto com o Mistério”. Ele está ligado à companhia, mas não está em mim.

Padre Carrón: Essa é uma afirmação capital para ser entendida por nós. Na nossa experiência podemos reconhecer que muitas vezes nós nos reduzimos ao nosso estado de ânimo, aos fatores psicológicos do nosso eu ou às circunstâncias históricas em que vivemos. E muitas vezes nos encontramos como prisioneiros de circunstâncias ou do nosso estado de ânimo e não sabemos como sair disso. Vou dar um exemplo. Uma vez eu conversava com um casal na Espanha que vivia uma dificuldade entre si. Ela começou a me dizer que “quando ele faz isso eu faço aquilo”, tentando justificar a forma com que agia. E num certo momento eu digo: “Pare. Você reage assim porque você quer reagir assim, pois você não é um pedaço do mecanismo do seu marido. Você é relacionamento direto com o Mistério”. Ela ficou bloqueada. Por que uma pessoa reagiu assim eu tenho que reagir assado? Isso é a destruição do eu. Isso é tornar o eu parte de um mecanismo. Essa pessoa se reduziu a fatores psicológicos.

Outro exemplo: Uma vez eu estava no meu quarto no seminário de Madri onde eu lecionava e me ligou uma amiga que estava internada em um hospital psiquiátrico porque tinha problemas de depressão. Ela me telefona e começa a se lamentar da sua situação. Eu disse: “Pare. Que diferença existe entre nós sobre a possibilidade de nos relacionarmos com o Mistério? Você, com toda a sua doença, pode dizer Tu a Cristo agora?” E ela respondeu: “Sim”. “Quem lhe impede de dizer Tu a Cristo agora?” E ela: “Ninguém”. Se você não diz “Tu” a Cristo não é porque alguém lhe impede, não é porque você está em um hospital psiquiátrico, não é porque você está deprimida, mas é porque você não quer. É um problema da liberdade. E o que mais me surpreendeu foi que quando terminamos de conversar eram 20h. Na manhã do dia seguinte ela me liga de novo e diz: “Ontem, assim que acabamos de falar, eu fiz aquilo que havíamos conversado; e fiquei tão em paz que peguei no sono, dormi quatro horas seguidas e quando despertei estava tão relaxada que tinha a impressão de ter dormido a noite inteira. Quando os médicos me viram acordada me deram remédios para voltar a dormir; agora são 7h da manhã”. E eu lhe disse: “Olhemos para aquilo que eu e você vivemos ontem. Quem lhe impediu ontem de fazer aquilo que você fez? Ninguém. E agora, às 7h da manhã, quem pode impedi-la? Você se dá conta que mesmo um hospital psiquiátrico pode se tornar um lugar de vida se eu reconheço Cristo? E isso introduz uma paz, uma novidade também para mim que estou no meu quarto”. E eu terminei dizendo: “E veja que você pode fazer isso estando em um hospital psiquiátrico e eu, que sou padre, que estou aqui no seminário de Madri, posso não fazê-lo”. Isso me entusiasma porque significa que eu não sou poupado de nada. Vocês entendem o que significa que o homem é relacionamento direto com o Mistério e não simplesmente parte de um mecanismo? Para mim a novidade foi o fato de ter tido a coragem de falar daquela forma àquela garota. Esse é o primeiro sinal de mudança, do que estava acontecendo comigo. E eu começava a olhá-la não pela sua doença, mas pelo novo conceito de pessoa que eu estava aprendendo. E a experiência que eu fiz com ela confirmava a verdade daquilo que Dom Giussani diz. Isso é um exemplo do trabalho que eu estou falando. Vocês pensam que têm um dom e não precisam de empenho. Mas assim isso nunca se tornará nosso. E eu que sou responsável último do Movimento posso não fazer o trabalho e quando não o faço, a minha circunstância também se torna o meu túmulo, igualzinho como para vocês. É extraordinário pensar que não existem vantagens. Não existe papel, hábito de padre ou de freira, local onde se mora, circunstância ou companhia que nos poupe disso.
Nós vimos Dom Giussani dizer que a nossa companhia é uma “estranha companhia”, porque a nossa é uma companhia que pode nos acompanhar, mas não pode nos substituir. Há uma semana na Itália, eu dizia em um encontro com 700 responsáveis do Movimento: “Vejam bem, trabalhamos juntos, rezamos juntos, cantamos juntos e podemos ter passado esse tempo sem nunca termos dito Tu a Cristo”. O que eu quero dizer com “dizer Tu a Cristo” é que a pessoa pode rezar as Laudes, o Ângelus, ir à missa, e nunca entrar em relacionamento com Cristo, porque está distraída. Da mesma forma, um homem pode estar ao lado da sua mulher e não se dar conta dela. Uma vez recebi uma mensagem de um amigo pelo celular. Eu respondi e no fim disse: “Mande um abraço para a sua esposa”. Três dias depois quando o encontrei ele me disse: “Eu fiquei boquiaberto, pois tinha passado a tarde inteira ao lado da minha mulher e não tinha me dado conta dela. E você, super-empenhado com tantas coisas, lembrou-se dela”. Se não existe o eu, como este pode se dar conta de que precisa entrar em relacionamento com o Tu? Não pensem que seja mais difícil se relacionar com Cristo do que se relacionar com a própria esposa, porque passo a tarde inteira com ela e posso estar distraído. Ao contrário, eu direi que é muito mais fácil fazer memória de Cristo. Uma vez uma pessoa me perguntava: “Como é possível se lembrar de Cristo no trabalho?” E eu lhe respondi: “Mas como você consegue trabalhar sem fazer memória de Cristo? Como é possível você se suportar? Como você consegue olhar para os outros sem fazer memória de Cristo?” Porque eu não me suporto se eu não deixar entrar em mim o olhar que Zaqueu deixou entrar. Não sei como é para vocês. E isso não porque eu sou padre, mas porque sou homem. Cristo me interessa para viver a realidade, para respirar, para que tudo se torne mais interessante e apaixonante. É por isso!

Então, para que o homem não seja parte de um mecanismo, mas relacionamento com o Mistério, é que Cristo entrou na história, para nos fazer entender isso. Porque nós muitas vezes vivemos como um pedaço de mecanismo, reduzidos. Por isso, sem a presença de Cristo que nos educa num lugar vivo, a Igreja, nós vivemos como todos vivem e, assim, sufocamos dentro da realidade. A questão é se a novidade entra na vida! Cristo não serve para que sejamos mais piedosos, mas para viver a realidade, para respirarmos dentro da realidade. Se não for assim, como aconteceu para tantos, Cristo não vai mais nos interessar. Ou seja, um Cristo que não tem nada a ver com a vida, que não entra na trama dos relacionamentos, na forma com que enfrentamos os problemas, nas dificuldades da vida, mais cedo ou mais tarde deixará de me interessar. Porque esse é o ponto: que Cristo permaneça interessante para a vida. E isso só acontece se vemos a conveniência humana de Cristo. É aí que a pessoa se entusiasma por Cristo. Não por Cristo representado por um santinho, mas por uma presença que introduz uma novidade. É por esse motivo que eu sou apaixonado por Cristo. Porque quanto mais eu O deixo entrar, quanto mais Lhe dou espaço dentro de mim, mais desperta o meu eu, mais torna o meu eu relacionamento direto com Ele, me torna mais homem, mais presente em tudo, me faz viver todos os aspectos da realidade com mais intensidade, não como algo que eu tenho que suportar, mas como algo que posso viver com Ele e modificá-lo. Esse é o desafio que Cristo lança à nossa vida. Se não fizermos uma experiência assim, e não formos simples para retomar o conteúdo dos Exercícios da Fraternidade desse ano, e constantemente afrontarmos a vida com aquilo que é dito naquele texto, como uma hipótese com a qual entrar na vida, não vale a pena.



Depoimento: Então qual é a função da companhia?

Padre Carrón: O papel da companhia é chamar a nossa atenção a isso. Sem uma companhia como a nossa nós nunca teríamos entendido que o eu é relacionamento direto com o Mistério. E, como muitas pessoas próximas de nós, estaríamos confusos, esmagados. A primeira coisa que uma companhia como a nossa faz é tornar-nos conscientes de quem somos. E faz isso olhando-nos assim. A companhia sempre será necessária por esse motivo. Estamos aqui hoje, mas podemos estar distraídos. Ou podemos ouvir essas coisas amanhã ou depois de amanhã e não as retomarmos. Porque eu e você somos relacionamento direto com o Mistério e não somos simples ovelhinhas. Eis a grandeza da nossa pessoa. Mas esse é também o risco. Foi o risco que o Mistério correu ao nos fazer livres. Ele corre esse risco conosco, até mesmo o risco de negá-Lo, de rejeitá-Lo. É por esse motivo que a nossa companhia não pode evitar esse risco. Ela pode fazer tudo por nós, mas se o eu não responder, é como se Cristo, mendicante do nosso coração, tivesse que parar na entrada, na soleira da casa. Por isso eu fiquei muito tocado com aquilo que o Papa disse na encíclica Deus caritas est, quando citava Santo Agostinho: “O que pode mover o homem no seu íntimo?”. Santo Agostinho sabia muito bem que o homem não é um mecanismo dentro do qual podemos entrar com o bisturi e consertar as coisas. Ele sabia que o homem é um mistério, é o mistério da liberdade e se o homem não quiser não há nada que se possa fazer. Eis a nossa potência diante do poder, de qualquer pessoa que queira instrumentalizar a nossa vida, mas também é a limitação da companhia. Ela pode lhe dizer: “Convém fazê-lo, olhe para a sua experiência e veja como seria muito inteligente você fazer isso”, mas não pode lhe substituir. Que eu diga “Tu” ao Mistério é uma coisa que é só minha. E eu me entusiasmo com isso. Porque eu quero que seja eu a dizer Tu a Cristo. Por isso Dom Giussani diz que a nossa é “uma estranha companhia”. Ela nos acompanha, mas não nos substituiu. Por isso a sorte está lançada!

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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