Em 1968, o mundo foi sacudido pela maior rebelião juvenil de que já se teve notícia. Europa, Estados Unidos e América Latina viram seus jovens se insurgirem contra o poder estabelecido, contra as convenções sociais e o modo de ser de suas sociedades. As barricadas dos estudantes universitários franceses, a revolta dos jovens americanos contra a Guerra do Vietnã, a Primavera de Praga contra a pressão comunista na Tchecoslováquia, ou, na América Latina, a luta contra as ditaduras de direita: parecia o alvorecer de uma nova era, e talvez se estivesse realmente muito próximo disso.
Mas a história tomou caminhos imprevistos para a maioria dos protagonistas desses episódios. A juventude, nas últimas décadas do século XX, viveu uma guinada individualista, os ideais socialistas entraram em crise em função da queda do comunismo, e os protagonistas da vida política no capitalismo globalizado constroem um mundo muito diverso daquele idealizado em sua juventude.
Vai sendo construído um “novo poder”, que se estrutura não sobre a coerção física das ditaduras do século XX, mas na “homologação”. Abre-se mão de um protagonismo político, aceita-se as decisões do poder, em troca do conforto imediato e da aparente autonomia na vida privada. No texto a seguir, Massimo Borghese, professor de filosofia da Universidade de Perugia, na Itália, comenta a análise desse processo a partir de Pier Paolo Pasolini (1922-1975) e Augusto Del Noce (1910-1989).
Pasolini, cineasta e escritor, declaradamente ateu, comunista e homossexual, foi um dos personagens mais contraditórios da Itália de seu tempo. Foi perseguido e condenado pelos comunistas por suas críticas ao Partido comunista, e exaltado pelos católicos, que o consideram autor daquele que é provavelmente o melhor filme sobre a vida de Cristo em todos os tempos.
Del Noce, por sua vez, foi o maior politicólogo católico italiano do século XX. Mostrou que o marxismo tinha suas raízes intelectuais na Modernidade burguesa, e as conseqüências dessa contradição. Ao analisar a posição de Pasolini sobre os episódios de 1968, mostra que a função histórica daquele momento contestador foi criar uma sociedade burguesa, individualista e livre de qualquer fundamento ético que pudesse orientar a conduta humana por caminhos diferentes daqueles desejados pelo poder. Egoísmo, vazio moral, hedonismo. E uma combinação que reduz os desejos e as esperanças do homem. O intelectual de esquerda e o filósofo católico já haviam percebido esse risco, ao criticarem, cada um de sua posição, os eventos de 1968.
A reflexão de Pasolini sobre os episódios de 1968, tem como pano de fundo a grande “revolução antropológica” na Itália, entre a metade das décadas de 1950 e 1960. Nesse breve período, aconteceu a passagem, veloz e impensável, de um mundo tradicional, camponês, baseado numa concepção “humanista” e solidária, para outro em que triunfam o egoísmo, a aparência, o vazio moral. É o mundo do “Novo Poder”, que, em sua enganadora tolerância, persegue uma homologação generalizada.
Na ótica pasoliniana, a retórica de 1968 não representava, na verdade, um “contrapoder”, mas um momento de atuação do “Novo Poder”, econômico-político-midiático, que estava em vias de construção. Esse novo poder exigia a dessacralização dos valores tradicionais, para que fosse possível implantar a mercantilização integral da existência. O movimento de 1968 era funcional a isso. O resultado é uma juventude que, renegando o passado, retornava a uma espécie de rudeza primitiva, que era evidente até no aspecto exterior.
Pasolini, que já havia captado – em obras anteriores – a degradação moral da sociedade consumista, desmistificava a presunção de 1968. Com extraordinária lucidez compreendeu que o velho iluminismo, o laicismo, o antifascismo, eram armas sem ponta em relação ao novo poder. “O novo poder, consumista e permissivo, valeu-se justamente das nossas conquistas mentais de leigos, de iluministas, de racionalistas, para construir a própria estrutura de apoio, feita de falso laicismo, de falso iluminismo, de falsa racionalidade. Tal novo poder levou ao limite máximo a sua única possível sacralidade: a sacralidade do consumo, como rito, e, naturalmente, da mercadoria como fetiche. Nesse contexto, nossos velhos argumentos de leigos iluministas, racionalistas, não só são desprovidos de ponta e inúteis, mas inclusive fazem o jogo do poder. Dizer que a vida não é sagrada, que o sentimento é estúpido, é prestar um imenso favor aos capitalistas” (Scritti corsari, Garzanti).
Por isso, para estar à esquerda, era necessário uma reserva “religiosa”, para não se render, não homologar as posições dominantes. Daí a acusação de ser “católico”, porque ainda ligado à “sacralidade” da vida, porque contrário ao aborto. É a acusação que lhe dirige Moravia, a quem respondeu que não há “nenhuma boa razão prática que justifique a supressão de um ser humano, mesmo que nos primeiros estágios da sua evolução. Eu sei que em nenhum outro fenômeno da existência há uma tão furibunda, total e essencial vontade de vida do que no feto. Sua ânsia de realizar a própria potencialidade, refazendo de modo fulminante a história do gênero humano, tem algo de irresistível e, por isso, de absoluto e festivo. Mesmo que depois nasça um imbecil” (idem).
Contrariando o falso progressismo de Moravia, Calvino, etc., diz: “É preciso, hoje, ser progressista de outro modo; inventar uma nova maneira de ser livre, sobretudo no julgar quem optou pelo fim da piedade” (Cartas luteranas, Einaudi). Um progressismo que não se esqueça da piedade. Isso significava uma esquerda não desmemoriada da lição de humanidade preservada no patrimônio religioso popular, capaz, por isso mesmo, de se opor à mercantilização da sociedade opulenta.
A leitura de Augusto Del Noce
Na metade dos anos 70, foi Augusto Del Noce, o intelectual católico de primeira linha, também ele, de certo modo, um “solitário” como Pasolini, que valorizou a análise pasoliniana sobre a “virada antropológica” na Itália e sobre o papel de 1968 em tal transformação.
Trata-se de um encontro ideal entre duas vozes críticas, que fogem dos lugares-comuns da dialética direita-esquerda. Del Noce encontrava em Pasolini “corsário” não só um lúcido e implacável diagnóstico da sociedade de consumo, mas também uma análise inestimável de como a direita – o conjunto daqueles poderes fortes que, nos anos 60, mal suportavam a tutela da democracia-cristã – se serviu da esquerda para expandir o próprio poder.
O movimento de 1968 torna-se, para ambos, uma passagem crucial. Como escrevia Del Noce em 1975, referindo-se a um artigo de Pasolini publicado dia 1º de fevereiro no Corriere della Sera (“O vazio do poder na Itália”), “é preciso reconhecer que ninguém como ele entendeu o caráter da contestação e dos seus efeitos negativos: a revolução do sim a um novo tipo de poder real, submissa ao poder dos políticos, que sequer se deram conta da realidade que emergiu depois dos anos 60. A obra destrutiva que ela continua realizando é destinada a afastar os obstáculos à instauração dessa nova elite, a mais desprovida de ideais e, por isso mesmo, a mais opressora. A respeito de tal obra, a distinção entre esquerda e direita é totalmente secundária, como ele bem viu. Mas há mais, ele também entendeu que esse ‘novo totalitarismo’ que vai avançando se assemelha não tanto ao comunismo ou ao nazismo e sim a um fascismo que se tornou totalitário, ou violentamente totalizante, sob a máscara da permissividade, como eles preferem dizer” (“O rebelde incompleto”, Il Tempo, 15 de fevereiro de 1975).
As “razões” de Pasolini encontravam o seu ponto forte em sua análise do fenômeno 1968, na qual se lê que “a contestação teve uma função mediadora para a passagem da burguesia ao seu último estágio, aquele em que nega o puritanismo das suas origens e que à rejeição ao comunismo une o repúdio ao cristianismo; ou, melhor dizendo, em relação ao cristianismo torna-se evidente uma rejeição que antes era dissimulada. Em seu aparente extremismo, essa revolução foi nitidamente intraburguesa” (“1968. Os filhos do poder”, Il Sabato, 13 de fevereiro de 1988).
Nascida do propósito de criticar e superar o modelo da sociedade burguesa, a revolta de 1968 avança para a consumação do momento positivo que a move. Seu resultado é o burguês em estado puro. “De contestador passou-se ao bocconiano (estudantes da Bocconi; nde) se com esse termo queremos entender o jovem que aceita o novo tipo de sociedade e se prepara, em geral com uma rigorosa disciplina de estudos, para fazer carreira, sem sequer discuti-la em seus princípios” (idem).
O rebelde incompleto
Por isso, a análise de Pasolini é, do ponto de vista de Del Noce, perfeita. Com alguns limites, porém. A oposição pasoliniana à sociedade de consumo desenvolve-se a partir de um passado que não mais voltará, parte do ethos daquele mundo camponês que a sociedade industrial subverteu definitivamente. Ele se torna o “rebelde incompleto”, o utopista do passado, cuja voz pode ser tranqüilamente calada por aquele poder que é criticado.
Mas “há um positivo ao qual Pasolini chega por meio do marxismo e que, porém, deve ser separado do seu laicismo original” (“As magníficas escolhas? Tudo para jogar fora”, Il Sabato, 25 de novembro de 1975). Esse positivo – a valorização de uma dimensão antropológica marcada pela gratuidade – deixa claro que “ele encontra o pensamento católico a partir do marxismo” (“As magníficas escolhas?...”, op. cit.). Um encontro compartilhado por Del Noce, o qual, depois de 89, entrevia aí as condições de realização. Como escrevia no Il Sabato, dia 1º de abril de 1989: “Ora, o enfraquecimento dos princípios ideais do marxismo é, a meu juízo, fato irreversível. Todavia, uma escolha é possível ao comunismo italiano: ou a subordinação à burguesia, isto é, a fixação num momento da sua história, o da passagem da velha para a nova dominação capitalista, ou a tentativa de salvar a sua crítica à burguesia por meio de uma rigorosa autocrítica, na qual não tenha medo de topar com o desenvolvimento do pensamento social cristão. Claro, devemos levar em conta as repugnâncias psicológicas fortíssimas com as quais tal tarefa se defronta, no lado comunista; mas a escolha oposta, que se concretiza na alternativa citada, inclui também a perda daquilo que o marxismo tem de verdadeiro”.
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