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Passos N.87, Outubro 2007

CULTURA - Música / História do samba

No samba, a expressão de um povo

por Pierluigi Bernareggi

A seguir notas da primeira parte do encontro de padre Pigi com os funcionários das creches Jardim Felicidade, Etelvina Caetano e Dora Ribeiro, em Belo Horizonte, sobre a história do samba na música brasileira. O evento ocorreu no dia 7 de fevereiro de 2007


O nosso trabalho é ajudar vocês a resgatarem a dignidade da raiz musical popular e depois usarem isso para resgatar, por sua vez, a dignidade da raiz humana desses meninos, dessas crianças ou desses jovens que vocês acompanham, até eles se tornarem adultos.

Como é que nós podemos introduzir este assunto? Nós podemos lembrar que o ser humano é alguém em busca de Deus, sabendo ou não disso, porque a pessoa possui essa tendência “natural” de procurar o encontro com o Mistério, com aquilo que a fascina e que está além do visível, do sensível. Esta percepção misteriosa do infinito dentro da aparente banalidade do dia-a-dia é, por assim dizer, a explicação do dinamismo normal da vida humana. E esta vocação, esta coisa misteriosa, nós chamamos de senso religioso. O senso religioso se expressa de muitas formas na cultura do povo, mas uma delas, privilegiada, é a música. E quanto mais essa música é uma música de raiz popular, tanto mais ela expressa esse mistério que está além de tudo (querendo ou não querendo, consciente ou inconscientemente, não importa). E aqui nesse país, um dos fundamentos de raiz musical mais importante é o samba.

Então nós vamos tentar mostrar aqui esta dimensão consciente ou inconscientemente percebida, pois a nível imediato, não é necessário que ninguém tenha consciên-cia do que está expressando. Basta que seja autêntico na sua expressão. Então está aqui um exemplo típico que eu sempre gosto de trazer porque a meu ver é uma das produções mais autênticas. Esse é o Paulinho da Viola. Ele está olhando para a favela onde ele nasceu e foi criado, a Mangueira, e expressa instintivamente o que sente diante disso. Dentro desta letra há uma dimensão do mistério, a dimensão do invisível, não afirmada de modo intelectual, mas imediatamente sentida. É o contragolpe imediato da realidade. A gente pode até adulterar com a fantasia da gente uma experiência imediata, mas a gente não pode impedir que uma experiência imediata seja aquilo que ela é. E é justamente isso que nós encontramos nesse samba do Paulinho da Viola: o contragolpe imediato dele que lança um olhar ao mundo onde nasceu.

 


Sei lá, Mangueira
(Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho)


Mangueira / Teu cenário é uma beleza /
Que a natureza criou... /
Vista assim do alto / Mais parece um céu no chão /
Sei lá / Em Mangueira a poesia /
Feito um mar se alastrou / E a beleza do lugar /
Pra se entender / Tem que se achar /
Que a vida não é só isso que se vê /
É um pouco mais /
Que os olhos não conseguem perceber /
E as mãos não ousam tocar /
E os pés recusam pisar /
Sei lá, não sei / Sei lá, não sei
Não sei se toda a beleza / De que lhes falo /
Sai tão somente do meu coração /
Em Mangueira a poesia / Num sobe-desce constante
Anda descalça ensinando /
Um modo novo da gente viver /
De pensar e sonhar, de sofrer /
Sei lá não sei / Sei lá não sei não /
A Mangueira é tão grande /
Que nem cabe explicação

 

Aqui ele usa a palavra poesia no sentido substancial. Poesia não é uma coisa que a gente fala, é uma coisa que a gente encontra pronta no mundo. Todos os grandes artistas fizeram assim. Como um encontro. O artista não é aquele que inventa coisas. Aliás, toda a ideologia que transformou a arte numa invenção, numa coisa que nós bolamos, produz coisas efetivamente banais, ridículas. Na grande arte, instintivamente o sujeito produz o que ele sente, o que ele vê, o que ele encontra. É assim: a poesia fez-se mar e se alastrou. Isso é obra da poesia. Há algo misterioso que ele não vai falar se é Deus ou se não é Deus, mas sabe que tem algo mais que os olhos não conseguem perceber e as mãos não ousam tocar, e os pés recusam pisar. É justamente um Mistério que está aí espalhado por tudo quanto é canto, é um modo, é a forma dele, é o impacto dele com a realidade, com a vida. Então, essa não é uma elucubração artístico-intelectual. É simplesmente a comunicação imediata, antes de qualquer discussão que se possa fazer em cima da experiência que ele tem da realidade. Então, está implícito nessa experiência que ele faz, um estilo de vida, uma vocação, uma maneira de ser diferente. Embora tenha toda aquela pressão dos meios de comunicação, da propaganda, da chamada “cultura” que nos ensinam nas universidades para embolar tudo ao contrário, apesar disso a realidade como ela existe me faz viver de forma diferente dos outros. Tanto assim que ele é o Poeta da Vila, ele é aquele que vive para comunicar essas coisas: um modo novo de viver e sonhar e amar e sofrer. Todos os âmbitos mais importantes da nossa vida, todos eles são modificados por esta poesia que é um fato objetivo. “Sei lá não sei, sei lá não sei não” – esse refrão é justamente a nossa atitude diante do mistério, o mistério não nos deixa catalogá-lo, defini-lo, quantificá-lo, dominá-lo. E deixa você completamente estático, você fica encantado. E isso é o que interessa. “A Mangueira é tão grande, que não cabe explicação”. Justamente o sentido do infinito que aparece no dia-a-dia da vivência deste mundo. E ele está falando da favela, porque realmente a favela é um dos grandes berços do sentimento popular poético, inspirado da vida.



Voltar a ser crianças

O segundo compositor é o Ataulfo Alves. Ele é mineiro, transferido para o Rio de Janeiro, porque naquela época era esse o lugar da sobrevivência. Ele fala da sua cidadezinha no interior, onde ele adquiriu esta sensibilidade. Quer dizer, a raiz disso não está só naquele mundo, mas vem bem de longe. Aliás, esse mundo da favela é um mundo produzido por aglomerações devido à urbanização, ao urbanismo forçado das massas. Mas essa raiz está bem mais longe.

 


Meus tempos de criança
(Ataulfo Alves)


Eu daria tudo que eu tivesse
Pra voltar aos dias de criança
Eu não sei pra que que a gente cresce
Se não sai da gente essa lembrança
Aos domingos missa na matriz
Da cidadezinha onde eu nasci
Ai, meu Deus, eu era tão feliz
No meu pequenino Mirai
Que saudade da professorinha
Que me ensinou o bê-á-bá
Onde andará Mariazinha
Meu primeiro amor onde andará?
Eu igual a toda meninada
Quanta travessura que eu fazia
Jogo de botões sobre a calçada
Eu era feliz e não sabia

 


Aqui ele fala da criança. Nela existe essa original percepção da felicidade que é a realização do ser humano. Ela foi criada para esse contato com o infinito, com o mistério. E depois vem toda a adulteração... então vejam como esse cara aprendeu com o bê-á-bá da professorinha, como isso se transmitiu pela própria raiz da educação da sua pessoa. Uma pessoa como essa vai parar numa favela no Rio de Janeiro e monta lá dentro um tipo de sensibilidade, um modo de viver coerente com uma raiz que estava lá no interior, bem longe, e essa raiz é uma raiz cuja força é superior a todas as outras efetivas influências que poderão acontecer. “Eu não sei pra que a gente cresce se não sai da gente essa lembrança”. A pressão da evolução da cultura, da experiência da vida, etc., tentativamente desmancha isso tudo. Mas a lembrança é mais forte. A lembrança que hoje nós chamaríamos com um termo mais teológico de memória. O que determina a figura desta gente é a memória. Não são as possíveis formas de adulterar. Por quê? Porque a experiência original fala mais alto, ela é mais forte, ela é mais profunda. Então lhe dá condições de criar uma cultura nova dentro de um mundo aparentemente contrário, hostil, que é o mundo urbano, que é o mundo da exploração, é o mundo, às vezes, da violência, da opressão.

Justamente nesse sentido, a gente pode passar para uma outra raiz de inspiração que é a busca da liberdade. Qual é o problema do interior? Qual é o problema humano ali? É a escravidão. Por que o povo sai do interior? Porque não gosta da cidadezinha onde nasceu? Porque despreza as orientações da professorinha? Porque quer renegar essa raiz profunda de poesia? Não! Ele é obrigado a fugir de lá por causa da violência e da opressão em relação ao homem do campo. E tudo isso faz parte da experiência psicológica das pessoas.




Desejo de liberdade

No espetáculo musical Arena canta Zumbi, que é uma encenação que agora ninguém mais usa, tem um momento em que eles cantam o desejo da liberdade, apesar da opressão, da injustiça e da violência em cima dos pobres escravos:

 


Upa, neguinho
(Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo)


Upa, neguinho na estrada
upa, pra lá e pra cá
virge, que coisa mais linda!
upa, neguinho começando a andá
começando a andá, começando a andá
e já começa a apanhá
cresce, neguinho e me abraça
cresce e me ensina a cantá
eu vim de tanta desgraça
mas muito te posso ensiná
capoeira, posso ensiná
ziquizira, posso tirá
valentia, posso emprestá
mas liberdade só posso esperá

 


Então é um flash que também mostra, explica de certa forma, porque a raiz popular brota desses interiores do Brasil. O Brasil, historicamente, é um grande aglomerado de pequeníssimas células humanas espalhadas por um território imenso. E, de repente, a pressão econômica e a pressão social são tão grandes que fazem com que as pessoas se concentrem nas cidades grandes. Isso explica como é que a raiz autêntica de experiência poética de um povo instintivamente religioso se concentra na cidade grande, na favela. Porque ele é pressionado pela favela e não adianta procurar entender as raízes da música popular brasileira sem passar pela favela. Porque seria como querer entender o Brasil sem o fenômeno da exploração rural e do urbanismo forçado.

A música popular brasileira relata a experiência dessa opressão desumana que explode, que faz a pessoa se desenraizar da roça para ir para a cidade grande. Mas, seja lá como for, ele chega na cidade grande e ali não existe só fator de solução, de desagregação, de violência urbana. Mas, existe também na cidade grande a possibilidade de uma agregação mais ampla, e automaticamente surge a possibilidade de institucionalizar uma forma de expressão musical; que é justamente o que nós chamamos de samba. É na cidade grande que o samba adquire potência e se organizam as Escolas de Samba como expressão da raiz popular da vida. E os grandes poetas e músicos souberam expressar a beleza do samba dentro da cultura da cidade grande, como fez Vinícius de Moraes.

O passo adiante do samba, da ponta das raízes populares longínquas ao ambiente cultural da cidade, é que, os grandes autores de samba são pessoas que também têm uma capacidade de analisar as motivações e torná-las comunicáveis de forma cultural. Porque nós não podemos imaginar que o povo simples, o artista imediato, seja um sujeito que estudou, que fez aula de lógica; que através da ciência e tecnologia tenha desenvolvido a capacidade de raciocínio teórico. Isso nem é importante para que haja uma experiência autêntica. Mas, para que haja uma comunicação dessa experiência, tem que ter a pessoa que saiba interpretar, entender aquilo e transformá-lo num discurso para a mídia e para a escola. Isso é o que se chama cultura, muito diferente da forma banal como a entendemos. Cultura, na realidade, é quando a experiência autêntica se torna comunicável por meio de uma reflexão coerente.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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