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Passos N.87, Outubro 2007

SOCIEDADE - Escola

Por que vale a pena ensinar

por Alberto Savorana

A partir dos testemunhos de vários professores, emerge a verdadeira solução para o problema educativo: uma posição pessoal realmente engajada na vida dos alunos, capaz de acolhê-los e de encontrar um caminho unitário em meio à fragmentação que caracteriza o saber atual.

A crise da educação, ainda que com diferentes características, atinge grande parte dos países do mundo. Mas será que, apesar de todas as análises, críticas, dificuldades e problemas que flagelam a escola – todo dia ouvimos falar disso, no noticiário dos jornais, TV e Internet, existe algo que pode manter vivo o esforço e a luta por um ensino de qualidade? O que pode fazer um professor desejar voltar todos os dias às salas de aula? Por que isso vale a pena? Existe algo que pode permitir uma experiência educativa real? Haveria algo capaz de despertar o entusiasmo e o espírito de iniciativa do adulto envolvido num trabalho como esse, de educar instruindo?

Em agosto de 1977, Dom Giussani reuniu, em Viterbo, os professores ligados a Comunhão e Libertação. Ele atribuía grande importância a esse encontro, pois significou a retomada de um movimento educacional na escola. Disse, entre outras coisas: “O verdadeiro começo deve renovar-se todos os dias: esta é a nossa genialidade, a nossa força. O início é uma presença que se impõe. O início é uma provocação, mas não ao “cérebro”... O início verdadeiro é uma provocação à nossa vida; aquilo que não é uma provocação à vida faz-nos perder tempo”.

Exatamente trinta anos depois, nos últimos dias de agosto, a revista Passos reuniu um grupo com professores experientes e outros professores em início de carreira. Professores de escolas públicas e particulares, com histórias muito diferentes e uma ligação comum: gente que acolheu aquela “provocação”. A seguir, suas histórias.



Franco Nembrini
ENCONTRO EXTRAORDINÁRIO COM O MISTÉRIO DO OUTRO

Deixei o ensino em 1999, e esse foi o único verdadeiro sacrifício da minha vida. Eu lecionava há 23 anos; para mim, foram anos de descoberta do ensino como possibilidade de encontro extraordinário com o mistério do outro. Era a vida que recomeçava toda manhã, porque a gente pode planejar tudo, preparar cuidadosamente as aulas, memorizar todos os esquemas, mas o outro sempre nos surpreende. Toda manhã, ir à escola era sentir o gosto dessa surpresa, desse susto, dessa coisa nova que iria acontecer e cujos contornos não podiam ser definidos antecipadamente, nem seu conteúdo ou suas conseqüências. Por isso, não foi prazeroso, para mim, parar de lecionar.

Por que, então, retorno agora? Pela mesma razão: eu sentia saudade e vontade de voltar a estabelecer essa relação, de mergulhar nessa aventura de todo dia. Quando a gente leciona, parece que joga tudo para o ar, todas as manhãs.

Isso se tornou mais interessante pelo fato de que, nestes anos, fui responsável pela Federação das Obras Educacionais (FOE), ocupando-me de política educacional e reformas na educação italiana. O trabalho ali me tornou mais consciente da emergência educativa que lançamos com o Apelo à Educação, que nasceu a partir da retomada do livro Educar é um risco, de Dom Giussani. Agora eu sei o que significa dizer que vivemos num país em que a educação está em último lugar. Todos gritam, talvez rasguem as roupas por causa das conseqüências..., mas quem tem a coragem de dizer: “Eu gostaria de recomeçar?”. Muitos inventam receitas – polícia, cães antidroga, exércitos de psicólogos – mas quem diz: “Eu topo, tenho alguma coisa a contar aos jovens, algo de bom a propor?”.

Por isso, recomeço com a consciência mil vezes maior da urgência da missão, da responsabilidade que pesa sobre nós. E também de outra coisa que “aprendi” nestes anos: a educação é uma tarefa coletiva, ninguém educa sozinho. Para educar, a gente precisa de um lugar, de uma casa, de amigos...

Voltando aos bancos escolares, tenho a propor algo que eu mesmo estou verificando. Eu gosto da Literatura – pelo que aprendi com Dom Giussani – por causa da possibilidade de confrontar, diariamente, o meu ponto de vista com os autores, com os mestres. Sempre estimulo meus alunos a me acompanharem nessa caminhada. Nesse sentido, a iniciativa da Associação Centocanti, em que jovens universitários apresentam a poesia de Dante Alighieri nas escolas, foi, para mim, emblemática: tudo nasceu sem que ninguém a houvesse planejado. Certo dia, eu disse a um aluno: “Eu me relaciono com Dante assim, eu falo com ele, e ele tem muita coisa a me dizer, a ensinar para a minha vida. Quer fazer isso junto comigo?”. É sempre assim que eu ensino Literatura e falo dos autores. É do que os jovens precisam, eles buscam, desesperadamente, um adulto que lhes diga: “Quero ser seu companheiro de viagem, porque o meu coração e o seu são iguais. Encontrei algo na vida que você ainda não teve oportunidade de descobrir; eu o convido a fazer um trecho da caminhada comigo”.



Matteo Severgnini
A VERDADE SE DESCOBRE EM UM RELACIONAMENTO

No meu primeiro ano como professor, conheci um menino que rejeitava qualquer proposta. Era fechado em si mesmo, e eu me afeiçoei a ele. Descobri, depois, que sua atitude derivava também de problemas familiares. Sua presença, na classe, era um desafio para mim. Dois meses antes de terminar o ano, ele tinha graves insuficiências. Encontrando o pai dele, percebemos que este não sabia de nada, tanto que ficou enraivecido quando entendeu que o filho poderia ser reprovado. E disse: “Ele é mesmo um fracasso!”. Eu cortei: “Olhe, eu tenho seu filho como meu até o último minuto da última aula, e não vou abandoná-lo”. Naquele instante, o menino começou a chorar; depois, terminada a aula, na escadaria da escola, ele me disse: “Professor, quero lhe pedir desculpa por hoje. Não chorei de tristeza, mas de alegria, porque nunca ninguém me disse que eu era de alguém. Não sei se serei reprovado ou não, mas o que me interessa agora é que quando entro na escola sei que alguém me aguarda. E é um professor!”. No final do ano letivo, ele estava em dependência em três matérias, entre as quais Matemática. Passou o verão estudando, acompanhado por um professor, e afinal aprendeu a aplicar regras que antes não compreendia.

O que aprendi com essa experiência? Que a verdade nós podemos descobri-la no relacionamento. Começo o ano letivo com essa grande esperança, que diz respeito, sobretudo, a mim.



Fabrizio Foschi
DESCOBRIR A UNIDADE NAS COISAS QUE FAZEMOS

Eu também volto a lecionar, após anos de afastamento – mas não do mundo da escola, pois me ocupei de didática –, por dois motivos: alguém me olhou de um modo verdadeiro, foi leal comigo. E eu quero comunicar, por meio do ensino, o entusiasmante trabalho de tomar a realidade nas mãos e olhá-la à luz daquilo que recebemos. Em segundo lugar, como responsável por uma associação de professores (Diesse – Didattica e Innovazione Scolastica), eu não podia me recusar a voltar a lecionar. Sem veleidades, sinto-me desafiado por uma questão que vem dos estudantes e dos professores. O desafio me parece que é o seguinte: numa tese de doutorado (Identidade e criação: a tradição e a autoridade como fatores construtores do sujeito; FEUSP, 2005), a professora brasileira Cecília Canalle demonstrou que tudo o que se propõe na Didática é fragmentado, porque corresponde a um eu fragmentado. Ora, essa fragmentação do eu é o drama da escola, e se responde a isso fracionando ainda mais a proposta educacional e a didática. Assim fazendo, ao invés de se salvar a pessoa que está em apuros, nós a afundamos ainda mais. Então o desafio é descobrir uma unidade nas coisas que fazemos, direcionar tudo para um significado.

Isso é tão urgente que até em recentes documentos ministeriais se faz referência à necessidade de se recuperar a síntese, mas esse jogo precisa de pessoas que enfrentem a realidade da escola de maneira unitária. E isso quer dizer colocar os jovens em contato com a minha experiência e com a dos autores que encontramos, não só com a análise do texto. Como já é o segundo ano de recomeço, a coisa me entusiasma.



Francesco Fadigati
O QUE HÁ DE INTERESSANTE PARA MIM NAQUILO QUE LECIONO

Quando comecei a lecionar, Franco Nembrini me lançou um desafio: “Nessa função, a gente tem a possibilidade de se manter jovem”. Desde o primeiro instante, frente a trinta jovens do segundo ano do Ensino Médio, eu não podia fugir, porque eles estavam ali, diante de mim, me escutando. Todas as manhãs, quando eu entrava na classe, eu tinha, diante de mim, jovens que até explicitamente me perguntavam: “Por que eu tenho que escutar o senhor?”. Lembro-me de uma jovem que – enquanto eu me preocupava em passar a lição de História, em fazer bem as coisas – me fazia perguntas que me deixavam apertado, como por exemplo: “O que há de interessante no desembarque na Normandia?”. Ela me obrigou a questionar-me a todo o momento sobre o que há de interessante, para mim, naquilo que ensino.

A outra razão pela qual sinto entusiasmo em recomeçar é que a aventura de ensinar, vivida junto com meus amigos, está envolvendo cada vez mais o meu eu. Uma tarde, chamei para uma conversa o pai de uma aluna. E ele começou a chorar diante de mim: “Me ajude, professor, com minha filha, porque eu não sei mais o que fazer”. “Eu também não sei o que fazer – respondi –, não tenho a receita, mas me interesso por aquilo que interessa ao senhor, ou seja, que sua filha se torne adulta. Se quiser, façamos as coisas juntos”. Fui jantar, um dia, com eles. Depois de uma hora de lamentações, ele disse à filha: “Veja, o seu professor poderia nem ligar pra você e, no entanto, ele veio jantar conosco”; ele não queria me deixar ir embora. Compreendi que não posso cumprir a minha missão pela metade.

Ensinando, a gente tem a possibilidade de mudar, de sair da classe diferente. Começo a primeira aula ainda meio sonolento, mas ao ver os rostos dos alunos que ali estão presentes, que têm ou não vontade de recomeçar o ano, e ao ouvir as perguntas que fazem, volto a fazer descobertas; a escola me ensina; vou à escola para aprender. Por isso sinto que posso manter-me jovem.



Cristina Rossi
AQUELES ROSTOS QUEBRAM A MINHA INDIFERENÇA

A escola coloca o problema do significado da realidade: ou ela não tem sentido, e então o que predomina é o nada – salvo alguma divagação e distração – ou tem, e aí nasce a pergunta: de onde vem? Sou eu que dou o sentido às coisas?

O significado vem de um passado, de uma tradição. Dou aula num instituto profissional; ali o abismo entre cultura e vida é estratosférico e por isso, quando entro na classe, sinto fortemente esta questão: ou do passado vem algo que pode ser, para os jovens, ocasião de uma consciência maior de si mesmos, ou não tem sentido algum convocá-los para irem à escola toda manhã. Para não serem movidos pela moda ou pelo poder, meus alunos, que se tornarão eletricistas, precisam entrever algo que se sobreponha ao momento passageiro.

O mal-estar dos jovens, somado à frustração dos professores, cria uma situação problemática, violenta, explosiva, de emergência contínua. Até alguns anos atrás, no final das férias eu sentia medo de retomar as aulas. Depois, ocorria que tão logo eu me sentava para dar aula, aqueles rostos conseguiam quebrar a minha indiferença e mobilizar todo o meu ser, ao ponto de sentir o desejo de me atualizar, de me preparar. Nunca entrei na classe sem ter preparado com cuidado as lições do dia. E isto era por aquelas faces, por aquela “matéria” humana que toda vez me questiona por razoes adequadas. É uma aventura entusiasmante, sustentada pela expectativa de que um belo dia um jovem desperte, surpreenda-se com a própria existência e mostre um traço novo da sua personalidade. E como a gente nunca sabe quando isso acontecerá, é preciso paciência e uma energia incansável, quase além das minhas forças.

De fato, meu trabalho é ensinar os alunos a ler e a escrever. Meus alunos são, em sua maioria, estrangeiros; um terço deles é muçulmano. Tive a satisfação de ver jovens que se apaixonaram pela escrita, como oportunidade para dizer “eu”. Parecem absolutamente indiferentes e alheios a tudo, mas tão logo encontram uma brecha que lhes permita desabrochar como pessoas, se abrem. Ficam de tal modo entusiasmados ao descobrir que podem dizer “eu” e que a realidade são eles, que até vencemos um concurso de poesia!



Giorgio Pontiggia
EDUCAÇÃO, O TRANSBORDAR DE UMA PLENITUDE

Escutando o que vocês diziam, eu pensava que aquilo que une esses testemunhos pode ser sintetizado com uma pergunta: é possível ensinar, se não estivermos contentes com a nossa vida e se não sentimos a “compaixão” (no sentido latino do termo) por quem está à nossa volta?

O seguinte provérbio me vem à mente: “Quem sabe, faz. Quem não sabe, ensina”. Terrível, porque o problema da escola não é a escola. Na escola emerge o problema: se alguém não está contente com a própria vida, não está satisfeito, não pode ter a abundância da comunicação e não pode ter a sensibilidade para captar a necessidade do outro.

A razão pela qual uma pessoa decide trabalhar na escola é a experiência que está fazendo. Poderia haver paixão pela escola e, mesmo assim, a escola fracassar – quando eu lecionava numa escola pública, havia professores que ficavam ali dez, doze, quinze horas por dia, mas com um véu de tristeza nos olhos. Se não houver gente plenamente feliz, acaba-se transmitindo apenas uma ideologia, que tende a preencher o vazio do eu. Se, ao contrário, temos uma experiência rica, a escola torna-se uma grande ocasião de liberdade em ação. Essa é a única razão pela qual eu, que acabei de deixar a escola na qual fui diretor, volto a lecionar.

A educação é como o transbordar de uma plenitude que se realiza por meio dos instrumentos da própria profissão. Indica também o ideal da caminhada: o desenvolvimento da originalidade do outro e não a agregação do outro àquilo que você pensa: uma “genuína preocupação ideal” – para usar uma expressão de Dom Giussani – e não uma emoção que se experimenta, tipo “instante fugaz”.

Isso é que nos leva à escola. E nos faz enfrentar todo o desafio do relacionamento com os jovens, dentro da normal atividade didática, que não pode ser reduzida a uma questão exclusiva dos pedagogos.

 


Viterbo 1977

Uma provocação à vida

Por ocasião de uma reunião nacional dos professores de Comunhão e Libertação, em Viterbo, agosto de 1977, Dom Giussani fez uma palestra ainda hoje atual, tendo em vista a retomada de um movimento educacional na escola. A seguir, um trecho.

O verdadeiro começo deve renovar-se todos os dias: esta é a nossa genialidade, a nossa força. o início é uma presença que se impõe. o início é uma provocação, mas não ao “cérebro”... O início verdadeiro é uma provocação à nossa vida; aquilo que não é uma provocação à vida faz-nos perder tempo, energia e nos impede de experimentar a verdadeira alegria. (...)

Se a educação é o comunicar-se de um modo de viver a realidade, este modo se torna uma proposta de hipótese explicativa da realidade. a hipótese, portanto, não é um discurso, mas a pessoa adulta que vive, ainda que, exatamente porque vive, discurse.

A palavra hipótese quer sublinhar que a presença, a comunicação do adulto, é um risco na medida em que está envolvida com a liberdade do jovem, e a liberdade é a capacidade de confrontar-se com o destino através das coisas, de aderir ao ser através das contingências. a ação educacional é arriscada porque é abandonada a uma liberdade frágil; e aqui se entende o limite da própria pessoa e a insondabilidade do mistério do outro.

Essas percepções alimentam uma humildade que não enfraquece em nada o entusiasmo, que não coloca minimamente em questão a paixão, mas que torna tal entusiasmo e tal paixão verdadeira proposta e não tentativa de cativar o outro.

(O texto completo encontra-se em Educar é um risco, Edusc, 2004)

 

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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