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Passos N.86, Setembro 2007

SOCIEDADE - Roma

Family Day: um povo na praça

por Carlo Dignola

No dia 12 de maio, um milhão de católicos e de leigos reunidos para uma manifestação promovida por um mundo no qual a família é o modo normal de transmitir a vida e a fé. Um fato que rompe qualquer esquema pré-estabelecido


“Que riscos comporta para a democracia italiana esta nova e dupla face da Igreja que é ao mesmo tempo autoridade e grupo de pressão, céu e terra, púlpito e praça?”, perguntava-se o jornal italiano La Repubblica em suas refinadas páginas culturais, três dias depois do Family Day: touché!

Reunidas na praça São João, em Roma, um milhão de pessoas pertencentes ao Fórum das Associações Familiares, ao Movimento Neocatecumenal, a Comunhão e Libertação (CL) e Associação Cristã de Trabalhadores Italianos (Acli), à Ação Católica, ao Movimento Renovação no Espírito, aos Focolares, à Associação Santo Egídio, além de dezenas de outras importantes siglas católicas estiveram juntas pela primeira vez, para defender a família.

Pouquíssimo divulgado no Brasil, o Family Day foi um dos mais importantes eventos públicos da história recente da Itália. Impressionou pelo número de participantes; pelo fato de serem, em sua maioria, católicos – e os católicos se tornaram conhecidos na Europa por serem freqüentemente omissos em acontecimentos públicos; e porque se reuniam para defender a família.

O governo italiano propôs recentemente um projeto de lei, o Dico, que regulamentaria as chamadas “uniões de fato” (o chamado “casamento entre homossexuais”). Boa parte da população italiana, contudo, considerou que o projeto pouco trazia como contribuição para os homossexuais, mas tinha muito mais peso como instrumento de relativização da importância da família na sociedade e, portanto, da necessidade do Estado defendê-la. Daí nasceu o movimento que levou ao Family Day.

“Com efeito, havia um tempo que isso não acontecia”, confirmou Giulio Andreotti, um dos mais importantes e tradicionais políticos da história italiana recente: ele também estava lá, sentado em uma cadeirinha no palco, fazendo o “católico engajado”: “É bom que as famílias, que os católicos voltem às ruas. É uma reação saudável”. Havia uma nova “ação católica” na praça, no dia 12 de maio, que ultrapassa as fronteiras da tradicional.


“Coragem laica”

Para boa parte da imprensa, a praça do Family Day seria a “dos clericais e fascistas”. Porém, foi a praça das mães e das mamadeiras, dos pais com uma união familiar estável, dos avós prontos para tudo, irredutíveis, e de uma Itália alegre, mas com idéias claras. Poucos padres e, graças a Deus, muitas famílias lutando por uma política que finalmente as leve em consideração; católicos unidos, mas sem nenhum sectarismo ou clericalismo.

Savino Pezzotta, o porta voz do Family Day, disse com convicção: “Nós queremos que a política italiana coloque no centro das discussões o tema da família do ponto de vista cultural e social. Nós queremos fazer da família uma questão nacional”. Um “modelo antropológico centrado unicamente na autonomia do indivíduo, no utilitarismo e na afetividade temporária débil” é um erro. Era uma praça de entusiastas papistas? Não, era uma praça cheia de pessoas normais; que “não instrumentalizam a religião, mas também não a proíbem de iluminar as consciências das pessoas, porque a fé não é irrelevante na construção da sociedade”.

O Family Day, em suma, aconteceu. Até os grandes jornais constataram sua surpresa: Mario Ajello, um dos comentaristas mais atentos escrevia, no dia seguinte, no Il Messaggero: “Este povo não se assemelha em nada à imagem velha e rançosa, esquiva e defensora do mundo católico. Mostra-se contrário à pose absolutista e aos murmúrios clericais. E isso torna tudo mais difícil porque se trata de uma praça inatingível”. De repente a Itália oficial percebeu que “existe um povo que até agora era invisível”, uma “voz da Itália profunda”, um “exército branco que não cheira a sacristia”, no máximo a leite e caramelos.

Aqueles pacifistas católicos que andavam com cabelos longos e tambores, os casais em seus passeios a dois, as dezenas de milhares de pessoas de CL que simplesmente partiram, sem demora, de toda parte da Itália, à velha maneira; aqueles renovados pelo Espírito que iam e vinham com o violão apoiado no colo cantando sem parar “Maria, Maria”, tinham bem claro a idéia do que é um pai e uma mãe: é difícil que os confundam com um tutor ou um guardião, como queriam na Grã Bretanha.


O seio da fecundidade

Giorgo Israeli aparece no telão instalado na alameda: diz que, também ele, judeu, aderiu ao Family Day porque precisava fazer esta manifestação contra “uma lei equivocada” que quer colocar em discussão a família “embasada num homem e numa mulher” e a procriação (será que em breve precisaremos dizer “a procriação tradicional”?) através do sexo. Giancarlo Cesana diz que a família é o seio da fecundidade não só porque gera filhos, mas porque é o lugar que faz a diferença entre um jovem e um adulto, entre uma bela idéia e um fato: por isso assusta muitas pessoas. Disse que a família “é o primeiro lugar onde um homem pode não estar só” e que “sexualidade e afeto são responsabilidades públicas”. Algo mudou neste país: os católicos saem às ruas para defender o sexo enquanto seus opositores, na praça Navona, discutiam sobre eutanásia. A família, talvez, hoje, não tem uma força “ideológica” capaz de convencer a todos: porém, tem uma força “biológica” que vence suas batalhas mesmo sem ir às emissoras de televisão. Quem é contra a família, contra a vida, no fundo, é como se levasse no corpo um gen regressivo.

Alain Finkielkraut escreveu: “Nós não vivemos apenas por viver. As coisas não recomeçam a cada geração: recebemos e transmitimos. A vida se inscreve em uma pátria, em uma língua, em um mundo que cabe a nós manter com cuidado e também com amor”. Este povo sabe disso. Os verdadeiros conservadores são aqueles “poucos e já cansados de demonstrá-lo” – como publicou La Repubblica – que se reuniram na praça Navona. Aqueles que finalmente decidiram reagir e defender as coisas mais caras que possuem são, hoje, na Itália, uma realidade popular que deseja o progresso do país.

 


ENTREVISTA

Eugenia Roccella é filha de um dos fundadores do Partido Radical Italiano – o mais anticlerical e defensor da autonomia burguesa entre os partidos italianos – , e uma das mais importantes lideranças feministas do país nos anos 70 e 80. Desiludida com os ideais desses movimentos, aproximou-se do catolicismo, sem nunca ter adotado a religião católica. Como porta-voz do Family Day, deu a entrevista a seguir:

A manifestação correu melhor do que o esperado, não?
As pessoas responderam com uma generosidade grande. Famílias, famílias e mais famílias. Todos diziam que os participantes seriam apenas os padres e as freiras: não, na praça São João vimos a sociedade civil. As pessoas vieram a Roma, mesmo com sacrifício, porque sentiram que este encontro era importante.

Segundo a senhora, por que tantas pessoas participaram?
Porque todos temos no coração uma experiência fundamental que nos une: todos nascemos do seio de uma mulher, gerados por um ato de amor entre um homem e uma mulher, somos todos filhos: laicos e católicos, islâmicos e judeus, heterossexuais e homossexuais. A família é única. E funda-se sobre a partilha, não sobre a discriminação; sobre a inclusão e não sobre a exclusão, como querem nos fazer acreditar. Normalmente a família é acusada de ser fechada, de ser egoísta. A verdade é o contrário: a família é o coração das relações entre as pessoas. Mas não fomos a Roma para exibir as nossas famílias, para nos mostrar superiores a ninguém ou para julgar os outros. As nossas famílias são como todas as outras: boas, ruins, mais ou menos... Famílias onde acontecem brigas, onde se sofre e muitas vezes há desentendimentos. Mas, de qualquer modo, são preciosas, porque protegem os indivíduos da invasão do Estado, do mercado e criam aquele senso profundo de pertencer, de consciência da própria origem tão necessária ao desenvolvimento de uma identidade.

A senhora disse que na Itália está em ato um cisma dos “laicos” do qual ninguém fala: pessoas que provavelmente não têm uma fé mas que também não estão de acordo com uma secularização descomedida de todos os valores humanos, sobretudo daqueles que dizem respeito à família e à vida.
Estou convencida de que é isso que acontece. Nos anos 70, a situação era muito diferente. Acredito que hoje, no mundo laico, tenha começado uma resistência à revolução antropológica que se prepara. É a resistência da experiência: as pessoas são atacadas na própria experiência do corpo, das relações, todas as coisas que nos colocam juntos e que hoje não são suficientemente levadas em consideração. Ser “nascido de mulher” – era um velho slogan das feministas – é a coisa mais comum entre os homens. Estes não são apenas “fatos biológicos”, são experiências simbólicas, históricas e também espirituais. Não é por acaso que no coração da iconografia cristã há uma maternidade, a de Maria, e um nascimento, o de Jesus. Como se pode lançar tudo isso ao mar com tanta negligência, com tanta rapidez?
Eu acredito que não seja uma questão religiosa mas simplesmente humana. Porém, esse tipo de preocupação, infelizmente, só na Igreja encontra uma sensibilidade, uma resposta, uma cultura adequada aos desafios que temos diante. No âmbito laico, não há um interlocutor.

Seu pai dizia: “Não a unidade das forças laicas mas a unidade laica das forças”. Uma frase amada e, durante muito tempo, usada como um programa pelos radicais. A senhora não acha que o Family Day, em um certo sentido, tenha sido um momento exatamente nessa direção? É possível existir uma unidade laica mesmo entre forças que têm fé e impostações morais diferentes?
Claro, eu tenho certeza de que isso é possível. A laicidade é um método não uma ideologia. É uma liberdade crítica: é o fato de não rotular os outros, de não controlar as aparências, o curriculum vitae. Infelizmente, hoje, na Itália, a idéia laicista se encheu de muita ideologia e se tornou a fonte de um anti-catolicismo que vai muito além do anti-clericalismo, uma hostilidade à voz pública dos católicos que, para mim, laica, é incompreensível. Alguns laicistas, hoje, dizem: os católicos devem ficar nas igrejas e deixar as praças para os outros. O fato é que eles são inoportunos. Mas há uma outra Itália que existe e resiste. Todos a viram no dia 12 de maio.

 

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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