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Passos N.85, Agosto 2007

SOCIEDADE - Belo Horizonte / Obras

O valor da pessoa

por Pierluigi Bernareggi

A seguir notas do encontro de padre Pigi com os funcionários das creches Jardim Felicidade, Etelvina Caetano e Dora Ribeiro, em Belo Horizonte. O evento ocorreu em janeiro de 2005


Desconhecer o valor da pessoa pode prejudicar, e muito, o trabalho nestas obras. Este não é um assunto fácil de se explicar e de se compreender. Haja vista que, na história da humanidade, por milhares e milhares de anos – calcula-se que o homem apareceu há mais ou menos 150 mil anos na face da Terra – até o aparecimento de Jesus Cristo, o mundo todo ignorou a existência da pessoa e muito mais o seu valor. Mesmo nos tempos de hoje, depois de 2 000 anos de cristianismo, nessa civilização de raízes cristãs, quanto mais nos afastamos de Jesus Cristo, tanto mais volta a desaparecer a noção e o valor da pessoa.

Infelizmente, é o nosso caso de hoje. É o caso do tipo de civilização materialista, pagã, neoliberal, estruturalista na qual estamos. Por isso não é de se estranhar que, mesmo no meio de educadores e colaboradores tão dedicados como vocês aqui, esteja surgindo a necessidade de hoje conversarmos sobre este assunto: o que é ser pessoa e qual o valor da pessoa.


O significado da palavra pessoa
A palavra pessoa vem do latim persona que é a tradução de uma palavra grega prósopon. O que significa prósopon na língua grega e persona na língua latina? Significa a máscara teatral. No mundo antigo, clássico, o que hoje é a televisão, o jogo de futebol, as férias na praia, naquela época, era o teatro. O teatro era a única forma, digamos assim, socialmente aceita de diversão – havia outras formas um tanto mais cruéis e violentas.

Prósopon, no teatro grego e no teatro romano, cujos vestígios existem ainda hoje nos lugares arqueológicos da Grécia ou de Roma, onde se encontram esses chamados anfiteatros cavados na montanha com aquelas arquibancadas redondas, era uma espécie de estágio de vida civil pelo qual as pessoas deviam passar. Na época dos antigos gregos e romanos, quem não fosse ao teatro era considerado o lixo da sociedade. Pois bem, a máscara era a forma normal de as pessoas se apresentarem no teatro.

O que a máscara tinha de particular? Duas coisas: primeiro, fazia o ator se tornar outra coisa: um ser mais marcante, um ser mais exemplar, um ser com uma riqueza interior maior, um ser mais importante, mais valioso, digno de atenção e de valor. Por outro lado, a máscara era engenhada de forma tal, que em correspondência à boca da máscara, existia uma espécie de alto-falante, uma espécie de funil no qual a pessoa falava e a voz era amplificada. Portanto, essa acústica embutida na máscara fazia com que ela se tornasse um meio de comunicação mais fácil, mais acessível. Era de uma eficácia especial para chamar a atenção das pessoas, para conquistar o público. Era mais interessante, era mais cativante o teatro por causa daquela projeção da voz embutida na máscara.

Portanto a máscara (prósopon ou persona) servia para destacar a personagem: um fato notável, diferente de todos os outros que seriam os normais, a gente comum, que não valia nada, que não chamava atenção de ninguém, que não representava nada, que não tinha nada de novo a propor para ninguém. Eram todos escravos do imperador, e ninguém tinha direito nenhum. Ele eram essa massa de gente sem cor, sem alma, sem valor, sem sentido nenhum na sociedade: os normais. E só a persona é que era, digamos assim, algo de valioso na sociedade. Por isso todo mundo era obrigado a ir ao teatro. Porque seria o único contato que eles teriam com algo de valioso, de humanamente valioso. O resto eram simples indivíduos, a mesma coisa que, num formigueiro, todas as formigas ou, na colméia de abelhas, todas as abelhas. Eram todos iguais, sem valor nenhum. Esse era o tipo de mundo até Jesus Cristo.


Um novo sentido
Foi o cristianismo que trouxe ao mundo pagão o novo sentido do ser humano e daquela massa imensa de “João-ninguém”. Jesus, quando ensina, faz sempre questão de chamar a atenção de seus ouvintes sobre a situação anterior ao pecado original: “no começo não foi assim”. Com efeito, no começo foi como a tradição que a Bíblia fala: “então disse Deus: façamos o homem à nossa imagem e semelhança. E Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus Ele o criou. Deus os criou homem e mulher” (cf. Gn 1,26-27). Isso é o núcleo essencial do ser humano. E por ser imagem e semelhança de Deus, “que ele domine os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a Terra. E Deus os abençoou e lhes disse: sejam fecundos, encham e submetam toda a Terra”. Então, não só ele é, como ele tem valor. Ele domina. O ser humano é o dono do mundo. Não tem nada no mundo de tão importante como ele. E tudo se submete a ele.

Vejam que incalculável diferença! Que quadro diferente desses “Joões-ninguém” que populam a paisagem pagã dos impérios dos mundos anteriores a Cristo. Especificamente na sua própria pregação, Jesus faz questão de frisar a importância de cada um desses seres humanos que trazem, em si, a imagem e semelhança do seu Pai, eles são os primeiros no Reino de Deus (Mt 19,30.20,16) São os verdadeiros felizes, bem-aventurados (Mt 5,112). Eles são aqueles que realmente conhecem os segredos do Pai (Mt 11,25-27): eu te dou graças, ó Pai, porque não mostrastes essas coisas a esses imbecis que querem ser donos do mundo. Mas as revelastes aos pequeninos, ao João-ninguém, ao último que ninguém dá valor e todo mundo pisa nele. Eles são aqueles cujo valor é maior do que a própria lei do sábado, as famosas leis farisaicas. (cf. Mt 12,9-13): “saibam vocês que o Filho de Deus é dono até do sábado”, então esses meus amigos que fazem coisas proibidas pela lei do sábado, estão de parabéns. São aqueles os quais Ele veio para servir. “Quem quiser ser o primeiro que seja o último. Seja o servo de todos”.

Folheando os vários evangelhos, vocês vão encontrar vários exemplos. Conclusão: a grandeza da pessoa humana não está mais no papel diferente, no prósopon, na persona, no que se destaca sobre os outros. A grandeza está em cada um. Paradoxalmente, quanto menor, maior. E isso depende totalmente do fato de que eles são imagem e semelhança do Pai e que Jesus está com eles, está neles, está a serviço deles. Então muda completamente, vira aos avessos o sentido dos processos sociais, como também o sentido da psicologia individual das pessoas. Quantos andam deprimidos, precisando de remédios, pois a pessoa se sente vazia, se sente sem sentido. Na sociedade em que vivemos, quem é que vale? Quem está na moda, quem aparece, quem está na mídia. Mas essa imagem do prósopon, da persona, do destaque, é exatamente o contrário do que o cristianismo trouxe ao mundo.


Reconhecer Deus em si e nos outros
Mas há um outro aspecto dessa questão: ser imagem e semelhança supõe uma relação pessoal com alguém. Ser imagem e semelhança de Deus supõe reconhecer. Santo Agostinho usava uma frase famosa: “Volte-se para si mesmo, pois na sua interioridade é que está Deus”. Com efeito, Deus em si, o que Ele é? É o reconhecimento recíproco de pessoas, amor mútuo de Pai e Filho no Espírito Santo. Portanto, ser imagem e semelhança de Deus necessariamente envolve um processo de autoconsciência, de descoberta de Deus na nossa própria pessoa. Assim, a pessoa humana é tanto mais pessoa, quanto mais reconhece a Deus no se reconhecer a si mesma como imagem dEle. Isso é sutil, mas é fundamental. Porque tem uma implicação, tem uma conseqüência também da maior importância: quanto mais nós reconhecemos que os outros são imagem de Deus, e quanto mais nós reconhecemos essa imagem de Deus nos outros, qual é a conseqüência? Se o mesmo Deus que eu reconheço em mim é o que eu reconheço no outro, então entre mim e o outro há uma grande unidade, somos comunidade de Deus, irmãos em Cristo.

Assim, no cristianismo, personalidade = comunidade, comunhão; derrotando, na raiz, as grandes ideologias de que se alimenta a sociedade em que vivemos: individualismo liberal e coletivismo marxista. Segundo o individualismo liberal, devemos ser nós mesmos e, portanto, não há espaço para sermos comunidade e, segundo o coletivismo marxista, devemos ser comunidade e, portanto, não tem espaço para ninguém ser diferente, para ninguém ser si próprio. Ambas essas ideologias promovem a violência, a desintegração da personalidade, a escravização do ser humano e tudo o mais. Volta ao tempo do prósopon e dos pagãos. É só a partir do cristianismo que ser si mesmo coincide com ser uma coisa só com todos, ser fraterno. Sempre por causa da história da imagem e semelhança de Deus.

Esse terceiro ponto me parece que é o mais sutil, é o que temos que prestar mais atenção: ser imagem e semelhança de Deus supõe reconhecer Deus em si e nos outros. E, nesse reconhecimento, supõe-se a comunhão fraterna de todos.


A falta de reconhecimento
A civilização moderna e pós-moderna é totalmente dominada pelas ideologias que acabei de citar. Mas, mesmo quando o reconhecimento não funciona, a pessoa continua sendo imagem e semelhança de Deus. Isso não pode mudar, pois faz parte da estrutura dela, querendo ou não querendo. Mas, como não faz funcionar esta imagem e semelhança, ela fica, por assim dizer, reprimida, atrofiada, paralisada, recalcada. Aleijadinho, nas capelas da Via Sacra de Congonhas do Campo, retratou exatamente essa questão. São figuras esculpidas em madeira e você, olhando para cada uma dessas capelas – o descimento da cruz, a primeira queda, a segunda queda, o encontro com Maria –, olhando para cada um desses quadros, você observa imediatamente um contraste violentíssimo: os rostos das figuras imbuídas da amizade de Cristo, são rostos humanos, são rostos cativantes, são rostos que transparecem a personalidade própria de cada uma delas, como a Verônica e o bom ladrão. Ao passo que aqueles outros elementos que fazem parte, digamos assim, da onda de violência contra Cristo, eles têm, todos, uma cara que não tem cara. São indivíduos desumanos, “sem-rosto”, sem expressão nenhuma! Isso é chocante, em cada uma dessas capelas. Porque é justamente isso que estou querendo explicar. Por exemplo, você é muito amigo dessa pessoa aqui. De repente, na rua, você se encontra com ela. Enquanto a pessoa se aproxima, você vê que ela está com um rosto assim esvaziado, perdido na confusão. Quando você se aproxima e ela te reconhece, de repente faz um sorriso, você vê que é ela. Mas, até então, ela tinha recaído naquele vazio dos rostos do Aleijadinho.

E se pode montar toda uma sociedade em cima desse fato, onde as massas não são ninguém, o importante é saber quanto a pessoa ganha por mês para poder emprestar dinheiro a juros para ela. O importante é saber no bolso de quem o 13° dela vai ficar. Portanto, exploração dessa gente como consumidora. O importante é poder empregá-la por um salário baixíssimo para fazer dela peteca e poder explorá-la e obrigá-la a aceitar qualquer tipo de transação para não perder o emprego. É a massa sem cara, sem personalidade, pois a pessoa não interessa a ninguém. Você pode montar toda uma sociedade em cima disso, a partir do momento que o reconhecimento de Cristo desapareceu. Então, essa massa de gente é imagem e semelhança de Deus sim, mas elas estão totalmente alienadas da sua verdadeira personalidade. E é, infelizmente, o nosso caso.


É sempre possível resgatar a pessoa
Mas, justamente porque o valor da pessoa depende só da imagem de Deus e da sua identificação com Cristo, é sempre possível resgatar a pessoa e ajudá-la a retomar a sua personalidade. Descobri isso, com uma evidência cristalina, quando fui à Itália junto com meu amicíssimo, o Pastor Kleber, coordenador da única comunidade de recuperação de tóxico dependentes aqui da nossa região. Ele viajou comigo, e nós percorremos dezenas de entidades e comunidades de recuperação de toxicômanos de todas as categorias: católicos, não-católicos, ateus, não importa. Visitamos muitas pessoas, e a impressão geral que tivemos é que eram pessoas derrotadas. Não os toxicômanos, mas os coordenadores. De fato, um deles nos falou que, oficialmente, as Nações Unidas declararam que é impossível recuperar o tóxico dependente. Então essas entidades todas montam uma espécie de parque, um estacionamento de toxicômanos, naturalmente pago (pelo governo, pela família), que são depósitos de pessoas sem esperança. Depois de visitar umas quinze dessas entidades, nós encontramos a irmã Elvira. Lá, nós vimos um mundo completamente diferente. Ela nos mostrou essa gente em fase de recuperação, pessoas maravilhosas, entusiasmadas, cheias de vida, tanto assim que ela já montou uma estrutura, que está presente em trinta ou quarenta países do mundo inteiro, de gente que se dedica totalmente à recuperação dos colegas e das colegas. Inclusive montou uma Ordem de freiras, todas ex-tóxico dependentes. Montou um seminário de padres, todos ex-tóxico dependentes, que dedicam a vida inteira a criar comunidades terapêuticas pelo mundo. Mais de noventa por cento de recuperação dos toxicômanos, contrariando, completamente, todas as definições oficiais da Organização Mundial de Saúde.

Então nós perguntamos: qual é o segredo? E a irmã Elvira nos disse: “Muito simples! Quatro vezes por dia, nós nos ajoelhamos e fazemos oração a Deus”. Aí, o pastor Kleber abriu um grande sorriso e foi lá e abraçou a irmã, dizendo “Eu, na minha casa, faço quatro vezes por dia leitura do Evangelho e oração”.
Então, volto a dizer a idéia: justamente porque o valor da pessoa depende só da imagem de Deus e da sua união com Cristo, é sempre possível resgatar a pessoa e ajudá-la a retomar a sua personalidade. Sempre! Se você não conseguiu, é porque você não é educador à altura. Então, aperfeiçoe suas condições. Mas não venha dizer que a pessoa é irrecuperável. Este é o princípio que justifica, ao meu ver, todo o trabalho de vocês nestas obras. Porque vocês pegam na mão, não só crianças pequenas, mas pegam famílias massacradas, completamente absorvidas por esse mundo sem personalidade, aviltante. A miséria não é questão financeira. A miséria é questão de perda de personalidade, esvaziamento do sentido da vida das pessoas. Como aqueles rostos vazios do Aleijadinho. E toda a dinâmica de obras, como a de vocês, surge justamente do fato que nós acreditamos na pessoa, no seu valor, dentro dos termos que nós tratamos aqui. Porque, sem aquilo, não existe pessoa, não existe valor. Existe uma massa de indivíduos completamente entregues às baratas e aos poderosos.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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