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Passos N.85, Agosto 2007

EXPERIÊNCIA - Varigotti / Casa São Francisco

O lugar da nossa história e de uma beleza que acolhe

por Paola Bergamini

Durante vinte anos foi o local dos encontros de Gioventù Studentesca (primeiro nome de Comunhão e Libertação; nde), na primeiríssima estação da vida do Movimento. A Torre e a pequena igreja de São Lourenço hospedou as Semanas Estudantis e os Três Dias de Páscoa. A Casa São Francisco, onde Dom Giussani passou um período de convalescença nos anos 1946-47, conserva a memória de uma história. Que continua como acolhimento, beleza e caridade simples. Dom Giussani chamou os Memores Dominipara administrá-la e lhes deu uma tarefa: “Sobretudo para quem – por causa da idade ou da saúde – tem dificuldade em amar Jesus, este lugar deve ajudar a retomar este relacionamento. Este lugar tem um nexo com toda a nossa história, vocês devem manter a sua santidade”


24 de setembro de 1946. Do terraço da casa de acolhida São Francisco, em Varigotti, situada pouco acima da pequena vila da Liguria, o olhar se perde na imensidão do mar, para além do pequeno golfo. Está sobre uma colina, que a pique se “atira” na água. Embaixo vê-se casas coloridas da vila antiga, que se espalham pela areia. Uma beleza que fere – para quem tem olhos que sabem ver – “onde por pouco o coração não se assusta”. Dom Giussani, no período em que esteve convalescendo em Varigotti, escreveu ao seu amigo Angelo Majo: “Você é exatamente como este mar: imenso e arcano, que sempre diz, um seu misterioso pensamento profundo, que pode ser entendido, mas não se pode explicar com palavras; este mar que agora está calmo e, com dificuldade, é possível ouvi-lo quando se lança sobre as margens parecendo sonhar, depois de algumas horas, fica todo tribulado e arquejante e apaixonado, e não se sabe porquê – ... mas calmo ou agitado, silencioso ou ruidoso, o mar carrega a cada dia, a cada instante um denominador mínimo comum, um significado base único e inexorável, que é a sua grandeza: o sentido envolvente de uma imensa aspiração ao infinito, ao mistério infinito. Assim também na sua vida, nas vicissitudes angustiantes ou serenas que se levantam aparentemente sem motivo há uma voz, uma paixão, uma agonia que está na base de tudo: é a voz da paixão, do anseio por Ele, Felicidade, Beleza, Bondade Suprema”. Doze anos depois, Dom Giussani voltará àquele lugar com o primeiro grupo de colegiais do Berchet e, durante alguns anos, na Torre e na Igreja de São Lourenço acontecerão as Semanas Estudantis e os Três Dias de Páscoa.

Emilia Smurro, presidente do Meeting de Rímini, quando esteve pela primeira vez em Varigotti era colegial e tinha 18 anos. Lembra dos “Três Dias de Páscoa”: a primeira coisa que me tocou foi a experiência de uma beleza palpável, que me feria e me deixava comovida. Isso ficou tão impresso em meu coração que decidi que voltaria a Varigotti na minha viagem de núpcias. Havia uma tal intensidade que permitia um olhar novo e total sobre a realidade. Foi uma experiência de uma totalidade que abria ao mundo. Tudo isso, para mim, continuou, nestes anos, pela experiência do Meeting”.


A experiência da Igreja como povo
14 de junho de 1999. Ernesto atravessa a porta da Casa São Francisco. As irmãs franciscanas, que sempre dirigiram a obra, não estão mais lá. Durante anos acolheram crianças e adultos, mas nos últimos tempos elas estavam tendo dificuldades para continuar administrando a Casa e por isso pediram ajuda a Dom Giussani – com quem o relacionamento nunca tinha sido interrompido – para que sua obra pudesse continuar. Por vontade de Dom Giussani, a Casa foi adquirida e a continuação do trabalho seria feita por pessoas dos Memores Domini.

Ernesto conta: “Lembro que enquanto descia as escadas da entrada, tinha em mente apenas as palavras que Dom Giussani me disse quando me chamou para me propor a direção da São Francisco: ‘Compramos esta Casa onde gostaria que o trabalho de acolhida continuasse sendo feito. Eu a pensei, principalmente, para as pessoas do Grupo Adulto. Sobretudo para quem, por motivos diversos – por causa da idade ou da saúde –, tem dificuldade em amar Jesus, este lugar deve ajudar a retomar este relacionamento. E você deve dirigi-la para a caridade simples. Porque muitos falam sobre caridade, mas é preciso alguém que se ocupe dela’. No início, não tinha bem claro o que isso significava. Foi nos encontros posteriores que compreendi o que ele tinha em mente para Varigotti”.

A Casa foi reformada e organizada para ser imediatamente aberta à acolhida. Primeiro, só eram aceitas pessoas do Grupo Adulto, depois, os pais dos Memores e, enfim, todos, porque, como disse Dom Giussani, “existem amigos, pessoas que muitas vezes são mais do que pais. Também a eles será oferecida essa possibilidade”. Nesse meio tempo, começam os trabalhos de reestruturação. Dom Giussani acompanha tudo, quer saber tudo o que acontece na Casa São Francisco. Ernesto continua: “Foi durante uma de nossas conversas que compreendi o valor que aquele lugar tinha para ele. Ali, nos anos 46-47, teve a intuição da experiência da Igreja como povo. Naquele momento comecei a compreender a nossa tarefa. E ficou ainda mais claro quando, um dia, inesperadamente, ele veio nos visitar. Assim que entrou, nos disse: O acontecimento cristão se espalhou pela Europa a partir de lugares assim que, agora, não existem mais. A responsabilidade de vocês é recomeçar esse tipo de experiência. Esse lugar tem um nexo com toda a nossa história, vocês devem manter a sua santidade. É uma vocação dentro da vocação”. Paolo, que chegou alguns meses depois de Ernesto para participar da casa como diretor financeiro, explica: “Nenhum de nós tinha experiência nesse tipo de trabalho. Mas o que ditava nosso modo de agir era a concepção de hospitalidade, de beleza e de caridade que Dom Giussani nos havia indicado”.


Hospitalidade e caridade
“A hospitalidade – intervém Ernesto – é algo a ser construído, algo que nos move, nos interroga. É a vocação dentro da vocação. Significa que a necessidade das pessoas que você acolhe lhe fere. No sentido de que seu coração é comovido e movido”. Como? “Por exemplo: nessa época tivemos um hóspede que sofria muito fisicamente. A reação normal seria pensar: Coitadinho!. Diferente é pensar que o meu modo de viver tem a ver com a possibilidade de ajuda real a esta pessoa. Perguntar: ‘O que você quer de mim?’ é uma disponibilidade de coração no acolhimento da necessidade. E, assim, até a situação mais pesada torna-se uma possibilidade de riqueza vocacional no meu relacionamento com Cristo. Derruba toda barreira, inclusive a do preconceito”. Paolo continua: “Como aconteceu com a freira do Sudão. Um dia, encontramos essa senhora na capela, vestida normalmente, entoando cantos desconhecidos a nós. A primeira reação foi pensar: ‘O que ela quer?’. Mas se colocamos o preconceito de lado, a verdadeira pergunta se torna: ‘Quem é?’. Conhecendo-a, descobrimos que era uma freira que vivera durante muitos anos no Sudão. Encontramo-nos, depois, nos Exercícios do Grupo Adulto”. Trata-se da abertura do coração, porque como disse São Paulo: “Não esqueçam a hospitalidade. Alguns, praticando-a, acolheram anjos sem sabê-lo”. Anna que, junto com Ernesto, dirige a Casa São Francisco, explica: “Nunca fizemos uma reunião estratégica sobre acolhida. A única posição é estar diante da realidade segundo todas as suas facetas, na espera de algo que maravilhe. E sempre acontece alguma coisa que nos vence. Como as cartas e os e-mails que chegam para agradecer, não tanto a organização perfeita, mas o modo como foram tratados os hóspedes”.


Sentir-se em casa
Catia, há dois anos cozinheira da São Francisco, nos diz alguma coisa sobre isso. “Eu sou de Ancona. Meus pais sempre quiseram ter um quiosque de comida na praia. Eu sempre quis abrir um restaurante onde as pessoas pudessem sentir-se em casa. Há cerca de dois anos vim, com algumas pessoas da minha casa, a Varigotti. Falamos sobre tudo e, a um certo ponto, brincam: ‘Catia, esse é o lugar para você’. Ernesto me pediu que explicasse. Eu falei do meu desejo e ele me disse: ‘Queremos a mesma coisa. Junte-se a nós’. Entendi que aquele era o meu lugar. Pensado para mim. Na viagem de volta procurei mil motivos para dizer não, mas não encontrei nenhum justo. A realidade era mais bela e fascinante do que todos os meus pensamentos. A confirmação disso foi que não senti nenhuma dificuldade para mudar. Há dias em que é cansativo para mim cozinhar e, então, penso em quanto Dom Giussani se preocupava em que as pessoas estivessem bem e se sentissem em casa. Isso significa acolher”.


Beleza
Enquanto conversamos no terraço, o espetáculo do mar que enche o horizonte faz vir em mente a famosa frase dita pela mãe ao pequeno Luigi Giussani, indicando-lhe a última estrela da manhã: “Como é belo o mundo. E como Deus é grande”. Quando Ernesto chegou não pensava desse modo. “Não. Para mim o mar era... chato, porque era sempre igual. Depois, li a carta de Dom Giussani a Angelo Majo. Pensei que se quisesse ter o coração um pouquinho como o de Dom Giussani precisava começar a olhar a realidade como ele a olhava. E, então, li e reli aquela carta. E percebi que o mar nunca é igual. Para olhar a beleza é necessário que sejamos educados. Só assim é possível perceber o contragolpe que o real suscita. Porque a beleza tem a ver comigo, com o meu coração”.

 


TESTEMUNHO

Eu os via da janela

por P.B.


Os olhos da senhora Libera se iluminam quando pensa na Páscoa de 1961 e dos anos seguintes, quando os jovens de Gioventù Studentesca iam à pequena cidade da Liguria para os Três Dias da Páscoa. Casada, com três filhos pequenos, a sua casa em Varigotti ficava exatamente no início da estradinha que conduz à Igreja de São Lourenço. E via, pela janela, os jovens de CL passarem.

De que a senhora lembra?
Tenho uma lembrança precisa, como uma imagem fotográfica estampada nos olhos e no coração. Vejo os jovens que caminhavam em direção à São Lourenço. Na ida eram como um enxame de abelhas, todos falavam muito. Na volta, havia um silêncio absoluto.
Estes jovens pareciam como que plenos... de significado. A mim, pareciam transformados.

E Dom Giussani?
Ainda vejo esse “rapaz” andar para frente e para trás dando ordens a este ou aquele, no sentido de que sempre tinha algo a dizer a cada um. Tinha uma grande vivacidade. Nunca tive coragem de pará-lo para falar com ele mas não consigo esquecer o olhar que tinha para com seus jovens. Porém, perguntei a alguns deles, como era este Dom Giussani.

O que eles lhe disseram?
Falavam dele com veneração. Diziam que ele lhes repetia: “Quero que estejam contentes. Os cristãos são pessoas contentes”. Era um homem particular, que atraía os outros a si. E em todos os anos que vieram a Varigotti eu estive ali, na hora do encontro, para poder vê-los.

Como eram esses jovens?
Muito educados e bonitos! Eram diferentes dos outros, mesmo que só na expressão dos olhos e na maneira de falar. Tinham algo dentro. Na cidade, todos ficavam felizes quando eles chegavam. E ficamos felizes quando as irmãs venderam a casa São Francisco para o Movimento. Durante os trabalhos de reestruturação, muitos de nós ficávamos esperando que Giussani voltasse. E, desta vez, eu lhe faria todas as perguntas que não tivera coragem de fazer...

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ENCONTROS NA TORRE

“Durante quase todo o período da história de Gioventù Studentesca, marcado pela presença de Dom Giussani em Varigotti, aconteciam dois momentos fundamentais durante o ano.
No início do ano escolar, antes das aulas, no final de setembro, Dom Giussani criou um momento de encontro de todo o Movimento: a “Semana Estudantil”, que durava cinco dias (a primeira de que se tem documentação data de 1958, nde). (...) Aqueles jovens, que na metade dos anos 50 eram algumas dezenas, na metade dos anos 60 já eram muito mais de mil, tanto que não foi possível continuar em Varigotti, por falta de estrutura.

A “Varigotti” de setembro constituía, assim, um momento de excepcional importância para o início no novo ano, seja porque permitia a todos os jovens dos Colegiais ter a percepção de um Movimento que caminhava, que crescia numericamente, que era uma coisa só, seja porque favorecia encontros, conhecimentos e relacionamentos que, depois, se desenvolveriam no decorrer dos anos. (...) Relevo ainda maior na vida dos Colegiais irá adquirir, pouco a pouco, os “Três Dias” pascais em Varigotti. Chamava-se “Semana Santa” e começava na quarta-feira santa à tarde, continuava na quinta-feira, sexta-feira e sábado de manhã, quando se concluía com o antecipado canto do Exultetpascal.”

Massimo Camisasca,
Comunione e Liberazione
.
Le origini (1954-1968),
Ed. San Paolo, Itália, pp. 205-208

 

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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