“Lâminas, golpes agudos.” – assim termina o primeiro texto de As horas de Katharina, livro de poesias publicado por Bruno Tolentino em 1994. E assim inicia a história da monja carmelita que teria escrito o livro e que, como Santa Teresa d’Avila, se converte dentro de seu próprio convento, através de um caminho de redescoberta de si que inclui fugas, rancores, rupturas e traições até que a “andorinha” – a alma – deixe de se debater, “solitária, entre as paredes”, abandone a idéia de si mesma e se entregue a um espaço livre. “Lâminas, golpes agudos” – a história de conversão de Katharina, que sempre foi reconhecida como a história da conversão de seu criador, inicia com um Adeus, com uma experiência de abandono e dor: Katharina despede-se de seu amante e resta com “os longos vazios” (título da primeira parte do livro) até descobrir “o castelo interior” (segunda parte) e alcançar o “carmim da tarde” plena de uma leveza, de uma serenidade melancólica nascida do perdão e da inevitabilidade da morte:
“Eu apenas lhe pedira
perdão por ser como sou...
Que me tomasse na mão,
que rasgasse tira a tira
esta múmia que cansou
de arrastar um coração
agarrado a uma mentira,
a farrapos de ilusão...
Mais nada. E de supetão
senti-me levantar vôo!
Um sopro me levantou
como uma folha do chão!
[...]”
(“Leveza”, p.190)
Vai, festa da vida,
amor, sonho, ilusão,
padecimento, ida
e volta... Vai, canção,
e tu, meu coração,
minha velha ferida.
Em toda despedida
há um aceno de mão
e o meu é este rabisco.
É tudo a que me arrisco
debruçada ao balcão
para a última visita,
a última visão:
o adeus da parasita.
(“À janela”, p. 209)
[...]
Se falhei à vida,
se errei de endereço,
se compliquei tudo
sem necessidade
e fiz da saudade
o meu grito agudo,
agora me espanto
de andar tão calada,
leve como nada,
doce como o manto
da tarde lá fora.
[...]
Caem-me uma a uma
pétalas do centro
da alma, e por dentro
já se me perfuma
mesmo o pensamento!
[...]
(“Reincidências”, p. 193)
Se vale a pena citar aqui alguns versos de As horas de Katharina é porque eles continuaram na vida e na obra de Tolentino: a dor é a viga mestra de seus textos, pois somente ela possibilita a passagem da idéia ao real. Assim, embora seus livros se dividam entre os de caráter mais abstrato, cujo exemplo maior é O mundo como idéia (2002), e os de caráter narrativo, em que uma idéia principal toma corpo em uma história, como As horas de Katharina (1994), A balada do cárcere (1996) e A imitação do amanhecer (2006), eles sempre apresentarão as fases de um caminho filosófico e existencial cujo ápice são a aceitação do sacrifício e a conseqüente visão da vida ressuscitada. Por este motivo, entre todas as personagens criadas por Tolentino para representar o drama da razão que luta entre se apegar a uma idéia ou se abrir à realidade, Katharina sempre foi a preferida: nela se vêem as contradições e paixões da alma, o combate entre a ilusão e a realidade e, enfim, o encontro com Cristo como fonte de paz.
Só a dramática conversão de Katharina explica a preocupação central de O mundo como idéia: não haveria motivo para criticar a cultura ocidental dos últimos dois séculos, não haveria por que lutar contra a “Dama Idéia”, nem por que defender a abertura constante ao real, se não houvesse uma possibilidade verdadeira de encontro entre a criatura e o Criador. Neste livro, dois quadros resumem o problema central: o mundo como idéia – representado pelo quadro de Paolo Ucello, – opõe-se ao mundo como rapto – representado pelo olhar de uma jovem no quadro de Vermeer: “a doce viga mestra do fugaz,/ sustém o olhar da moça: o instante veio/ e assustou-a... Uma vespa? Algum rapaz?/ A vida, em todo caso, a vida em tudo!”.
Para Tolentino, o duro combate à Idéia, “uma perfeita construção/ sem as falhas da vida” (p. 403) só vale a pena porque no encontro com o real está a verdadeira liberdade.
Em A imitação do amanhecer, o drama se repete na figura de um amante que, por recusar aceitar a morte do amado, mumifica-o e passa a recordar sua presença. A estranha narração emoldura, na verdade, uma filosofia da História e coloca em confronto duas visões da vida e da morte: uma que “imita o amanhecer” e deseja escapar do sofrimento – como flamingos que voam na direção oposta do ocaso, refletindo o sol em suas asas avermelhadas –; outra que aceita a despedida, como o cervo da Lapônia, que curva sua cabeça majestosa à descida da noite que, naquelas regiões longínquas, durará vários meses.
Não foi por acaso que os principais livros de poesia de Bruno Tolentino trouxeram, ao mesmo tempo, polêmicas e prêmios: são obras de uma pessoa que Deus fez “partir em dois, de vez em quando” e que ousou afirmar, das mais diversas e belas formas, que “tudo dói, menos a graça”.
Cronologia: vida, obras e prêmios
1940 - Nasce, a 12 de novembro, no Rio de Janeiro, Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino, filho de Heitor Jorge de Carvalho Tolentino e Odila de Souza Lima Tolentino.
1946 - Inicia os estudos no Colégio Batista, onde faria os antigos cursos primário e ginasial.
1954 - Abre conta na recém-fundada Livraria Leonardo da Vinci. O convívio contínuo com os proprietários Vanna e Andrei Duchiade influenciaria de maneira decisiva sua formação intelectual.
1957 - Escreve seu primeiro poema, uma homenagem aos 70 anos de Manuel Bandeira. Na função de revisor do “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, convive com Mário Faustino e Ferreira Gullar.
1958 - Conclui o curso clássico no Colégio Anglo-Americano. Depois de ler Du Mouvement et de l’immobilité de Douve, de Yves Bonnefoy, escreve ao poeta francês.
1959 - Matricula-se na Escola de Teatro da Universidade da Bahia. Recebe a primeira carta de Yves Bonnefoy, início de uma longa correspondência que o levaria a se estabelecer na Europa.
1960 - Recebe o Prêmio “Revelação de Autor”, do Sindicato de Editores e da Câmara Brasileira do Livro, pela coletânea inédita Seteclaves, da qual irá extrair seu primeiro livro, Anulação e outros reparos.
1961 - Ganha o processo judicial referente aos textos de Seteclaves, pelos quais era acusado de plágio. Com o dinheiro recebido, compra um sítio na Estrada dos Bandeirantes, onde passa a criar galinhas.
1963 - Publica Anulação e outros reparos.
1964 - Com o golpe militar no Brasil, parte para Europa. Desembarca em Cardiff, no País de Gales. Elizabeth Bishop – poetisa americana a quem conhecera no Rio, nos anos 50 – apresenta-o ao poeta inglês Wystan Hugh Auden, marcando o início de sua amizade com o autor de The Age of Anxiety. Conhece o poeta italiano Giuseppe Ungaretti.
1965 - Ao lado de João Guimarães Rosa, Murilo Mendes e Antonio Candido (seu primo), integra a delegação brasileira enviada ao congresso Nuovo Mondo Columbianum, realizado em Gênova, na Itália.
1966 - Gradua-se como tradutor-intérprete na École Interprète de Genebra. Passa a fazer parte dos quadros da prestigiosa AIT (Agence Internationale dês Traducteurs), antigo departamento da Liga das Nações. Na condição de intérprete estagiário, participa da Conferência Interparlamentar de Teerã e vai a Tóquio, Bang-coc e Hong Kong. De volta a Bruxelas, é efetivado no cargo de tradutor-intérprete junto ao Mercado Comum Europeu. Nasce, em Varsóvia, Witold Andjei, seu filho com a polonesa Danuta Klossowska.
1968 - Fixa residência em Londres. Passa a lecionar na Faculdade de Artes da Universidade de Bristol.
1970 - Nasce, em Londres, seu segundo filho, Phillip John Murray, de mãe inglesa. Casa-se na Igreja Anglicana de Battersea com a brasileira Márcia Martins de Brito.
1971 - Sai em Paris Le Vrais le vain. Pára de produzir poemas em português. Na qualidade de visiting professor, dá aulas na Universidade de Essex.
1972 - A convite de W. H. Auden assume as funções de deputy director da Oxford Poetry Now (OPN), a editora de poesia contemporânea da Universidade de Oxford.
1973 - Com a morte súbita de Auden, vê-se regimentalmente obrigado a assumir a direção de Oxford Poetry Now; transfere-se, então, de Londres para Oxford. Depois de renunciar ao cargo, seria eleito para um mandato oficial de cinco anos como novo executive director da OPN.
1975 - Na condição de membro da delegação de Oxford, realiza sua primeira viagem aos Estados Unidos, a fim de participar, na Casa Branca, em Washington, da Garden Party do então presidente Gerald Ford, referente às comemorações da data nacional americana, o 4 de julho.
1979 - Lança, pela OPN, About the hunt. É reeleito para o cargo que exercia na editora e por esse motivo renuncia às suas funções na Universidade de Bristol. Volta a escrever em português, decidido a não mais produzir em línguas estrangeiras.
1980 - Com a iminência do golpe do general Jaruzelski na Polônia, reivindica a guarda do filho – e Witold Andjei passa a viver em sua companhia na cidade de Oxford.
1982 - Divorcia-se de Márcia Martins de Brito.
1984 - Renuncia ao cargo de executive director da OPN e prepara seu retorno ao Rio de Janeiro.
1985 - Chega ao Brasil.
1986 - Nasce, em Oxford, Raphaël Phillippe Bruno, seu filho com Martine Pappalardo, professora de Literatura Francesa. Retorna à Inglaterra.
1987 - Acusado de tráfico de drogas, é preso e condenado a 11 anos de prisão. Durante 22 meses cumpriria a sentença em Dartmoor; ao final desse período, a pena seria suspensa.
1991 - Muda-se para Marselha, na França.
1992 - Termina A balada do cárcere.
1993 - Desembarca com a família no Rio de Janeiro.
1994 - Publica As horas de Katharina.
1995 - Recebe, da Câmara Brasileira do Livro, o Prêmio Jabuti de Poesia. Sai Os deuses de hoje.
1996 - Lança Os sapos de ontem e A balada do cárcere (Prêmio Cruz e Souza de Poesia, outorgado pela Fundação Catarinense de Cultura). Operado para a remoção de um tumor, constata-se a presença do vírus HIV. Inicia o tratamento; dada sua recuperação – lenta porém contínua – decide permanecer no Brasil.
1997 - Viaja a Recife para dar a aula magna da Fundação Joaquim Nabuco. Recebe, da Academia Brasileira de Letras, o Prêmio Abgar Renault. A convite da Universidade de São Leopoldo (RS), participa de um congresso de juristas, no qual o tema seria A balada do cárcere.
1998 - Sai a “edição definitiva” de Anulação e outros reparos. Transfere-se para São Paulo, a fim de assumir a função de editor nas revistas República e Bravo!
1999 - Deixa o trabalho e retorna à Europa. Volta a escrever em inglês, dando início à composição de The Years the Locust Hath Eaten.
2000 - Pronuncia a aula magna do Instituto de Estudos Superiores da Faculdade de Direito de Santo Ângelo (RS). Assina contrato de exclusividade com a Editora Globo.
[Até aqui, extraído de O escritor por ele mesmo. Bruno Tolentino. São Paulo: Instituto Moreira Salles, sd. p. 15-18]
2000 - Bruno é procurado por alguns membros do Movimento Comunhão e Libertação (CL) para colaborar na fundação do Núcleo Fé e Cultura de São Paulo. Manifesta o desejo de conhecer melhor esta iniciativa e a experiência que a sustenta. Conhece, assim, padre Vando Valentini e outros membros de CL, com os quais inicia uma grande amizade. Passa a viver na casa paroquial da Capela da PUC, hospedado por padre Vando.
2001 - Bruno se transfere para Caeté - MG, onde passa a ser hospedado na casa paroquial do Santuário da Serra da Piedade, junto com padre Virgilio Resi, responsável nacional do Movimento Comunhão e Libertação no Brasil.
2002 - Volta a viver em São Paulo. Publica O mundo como idéia.
2003 - Recebe o Prêmio Jabuti de Poesia.
2004 - Participa da 25ª. edição do Meeting de Rímini, na Itália. Participa da sessão de encerramento do Meeting, apresentando o livro Una presenza che cambia, de Luigi Giussani, para 10 mil pessoas. Conhece pessoalmente Dom Giussani, fundador de Comunhão e Libertação.
2006 - Vive por um período em Salvador. Publica A imitação do amanhecer.
2007 - É indicado como finalista para o Prêmio Jabuti de Poesia. Concorre ao Prêmio Portugal Telecom de Literatura.
27 de junho de 2007 - Falece em São Paulo, por falência múltipla de órgãos.
Credits /
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón