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Passos N.84, Julho 2007

CULTURA - Grandes entrevistas / Claudio Risé

Eu e o outro

por Davide Perillo

“O instinto, esse feixe de forças, é o grande excluído da cultura moderna”

Claudio Risé é um psicanalista, professor universitário e escritor italiano, muito conhecido por seus livros e artigos jornalísticos. Para Passos, ele aceitou ser confrontado com algumas idéias oferecidas pelo pe. Carrón no último Retiro da Fraternidade de CL, falando do grito do coração, colocando em campo os instrumentos da sua profissão

“Regenerador”. É a primeira palavra usada por Claudio Risè – psicólogo, psicanalista, escritor e prestigiado colunista – para se referir aos “seus” Exercícios da Fraternidade. Palavra certeira: expressa bem aquela golfada de ar puro que todos sentiram. Re-generar, no fundo, quer dizer “gerar de novo”, “recriar”, inflamar de novo o humano. “Fiquei muito impressionado, no ano passado, com aquela imprevista guinada do pe. Carrón rumo ao coração”, explica Risé. “Importantíssima e muito clara. Neste ano, prosseguiu a mesma linha. A começar por aqueles insistentes acenos ao desejo”.

Vamos partir daí, então. O desejo é a expressão mais verdadeira do nosso eu. No entanto, é o fator humano mais censurado, aquele que achamos mais difícil de abordar. Parece que temos medo dele. Por quê?
Talvez porque ele seja a expressão mais verdadeira de nós mesmos. E, então, de certo modo, parece-nos uma ameaça ao nosso eu: ele nos interpela continuamente, não nos deixa em paz. O desejo é um “andar para”: empurra para um objetivo, focaliza um objeto de amor. Numa palavra, impele a gente constantemente para uma mudança. Assim, nos envolve. É um ímpeto humano. Mas tem que lutar constantemente contra duas forças muito poderosas da nossa psique: o imobilismo e a regressão, ou seja, a tendência a nos mantermos imóveis e aquela que nos empurra para trás. Tendências que, ao contrário, nos prometem sossego, menos trabalho.

A tentação do imobilismo nós a compreendemos bem. A da regressão, um pouco menos. O que você entende por ela?
É o medo de ir adiante, que se apóia na saudade de uma felicidade, de uma plenitude imaginada ou experimentada na infância; ou em alguma época do passado. Saudade que, freqüentemente, acaba travando o impulso ao qual o desejo empurra.

Não é a mesma tentação que, às vezes, sentimos diante de Cristo? A idéia de que o Acontecimento não está presente, não tem nada a ver com o momento presente: “Eu O encontrei e me pareceu verdadeiro; mas neste momento...”. E nos surpreendemos desiludidos. “Desmoralizados”, como notava dom Giussani.
Sim, é a mesma dinâmica. Se quisesse usar termos técnicos, eu diria que é uma espécie de maternalização do encontro com Cristo. Um uso nostálgico, sentimental, dele. Como algo que nos plenificou, mas que não plenifica mais. O que, aliás, tem também um aspecto verdadeiro, porque o encontro é um impulso contínuo. Precisamos mantê-lo sempre vivo. “A gente vive por amor a algo que está acontecendo agora”, foi-nos lembrado no ano passado. Portanto, não é algo que, se aconteceu uma vez, a gente o retém para sempre, como se fosse um tesouro... Ao contrário, se a gente o “entesoura”, perde-o; ele morre.

“Nós não podemos vencer essa distância de Cristo do coração se Ele não nos ‘atrai todo’, justamente pela atração da Sua beleza”, dizia Carrón. É a beleza que nos afasta dessa tentação de voltar-nos sobre nós mesmos?
Sim, é a beleza que, enquanto tal, suscita o desejo. E, portanto, põe em movimento a vida como trajetória, como caminhada na direção de um fato. Uma beleza que nos toca, vinda dos níveis mais altos, espirituais, aos níveis mais profundos e, de algum modo, mais carnais, do instinto. Fiquei muito impressionado com o modo como se falou dele durante os Exercícios. Foi uma reavaliação realmente regeneradora. O instinto, esse feixe de forças, é o grande excluído da cultura moderna e pós-moderna. Nós o substituímos primeiramente pelas ideologias, que não tinham nada de instintivo, eram programas de poder e, depois, por sistemas intelectuais nos quais, no fundo, o corpo e os seus instintos deixaram de existir.

Enfim, eram abstrações...
Pura elucubração de uma mente desencarnada. O problema, hoje, não é tanto o superpoder do desejo, a insurreição ou a deflagração dos instintos. É justamente o contrário: a ausência do desejo. Ou melhor: as pessoas, hoje, não sabem o que desejam. Não sabem reconhecer os próprios desejos. A maioria das patologias contemporâneas, do narcisismo à depressão, nasce daí. Se eu não sei o que desejo, os outros é que o indicarão para mim. Vou atrás das sugestões coletivas, do sistema de consumo. Que me proporão, justamente, não objetos de amor, mas objetos de consumo.

A gente tem a impressão de que o instinto é algo negativo, e não “meio”, instrumento da nossa humanidade. Por quê?
Nós vemos o instinto como um problema porque perdemos a simplicidade sagrada, criatural, da experiência instintiva. Que é uma experiência primária, sob certos aspectos pré-intelectual. É ao mesmo tempo física e afetiva, e, portanto, já espiritual. É o instinto que nos dá certa relação religiosa com a terra e suas manifestações. Com a criação. É instintiva a percepção da presença de uma beleza que se sobrepõe a nós, que nos remete a algo que está além de nós.

Mas nós podemos, de fato, resistir à beleza? Quero dizer: de algum modo a gente consegue se “defender” da verdade ou da bondade; sabemos reduzi-las à nossa medida; sabemos construir uma idéia própria de verdade ou de bondade. É uma tentação constante, não é? Mas com a beleza não tem jeito. É impossível. Ela nos fere. Ela nos deixa desarmados. Como é que, afinal, conseguimos reduzir também esse impacto?
A gente só fica desarmado se mantém essa proximidade com o instinto, que se deixa impressionar pela beleza. Como acontece com a criança. Quando a gente acumula as superestruturas intelectuais, inclusive moralizantes, do adulto, vai se afastando daquela simplicidade indefesa da criança. O ponto é que o homem ocidental médio, aculturado e imerso no sistema atual de comunicação, está muito distante dessa imediatez. O “Se não vos tornardes como crianças...” é verdadeiro. E quer dizer também isso. Em meu trabalho, uma parte muito consistente é justamente permitir que o outro reencontre a simplicidade da criança, ligada ao instinto e capaz de uma espiritualidade autêntica, que se deixa ferir pela beleza. É como Picasso que, diante de um critico que lhe disse “Esse desenho parece ter sido feito por uma criança”, respondeu: sim, mas eu empenhei toda a minha vida para aprender a desenhar como uma criança.

Outro ponto focal: “Cristo revela quem é, despertando o homem, fazendo emergir todos os fatores”. E o faz, notava padre Carrón, não com um discurso, mas com um olhar cheio de estima, o que faz literalmente acontecer a nossa humanidade, como se a fizesse explodir. Por que os fatores do humano só emergem perante um tal olhar?
Sozinhos, nada podemos fazer. O nosso eu é riquíssimo, tudo está dentro dele. Mas se não houver o outro com quem possa entrar em relação, essa riqueza se perde. Cristo é, verdadeiramente, esse Outro. E o é porque nos ama de modo total, pelo que somos. É o único que pode fazer isso, que nos ama desse modo. Hoje se fala muito de auto-estima: conceito aproximativo, mas que funciona para explicar certas coisas. Pois bem: o encontro com Cristo, desse ponto de vista, tem um efeito instantâneo e fulminante. Cristo lhe dá essa estima por você mesmo, porque ele próprio a tem de maneira total. Estima e amor. Por isso é o grande despertador desse nosso amor por nós mesmos. Se a pessoa não O encontra, também não se ama. Ele é totalmente amoroso, nos aceita como nenhum pai humano é capaz de fazê-lo, embora todos tentem.
A palavra “pai” também veio à tona várias vezes nos Exercícios. Foi dito que Cristo, com aquela pergunta capital – “de que vale conquistar o mundo se você perde a si mesmo?” – supera qualquer possível afeto paterno. Creio que qualquer pai se sentiu tocado com ela. É a pergunta mais importante que um pai pode fazer a um filho, não?

Falando daquilo que Cristo vê em nós, e que O comove, padre Carrón observou: “Nessa relação com o mistério, com o Pai, Jesus via a única possibilidade de salvar o valor da pessoa”. O que se perde quando perdemos a relação com o Pai, censurando a religiosidade?
Perdemos tudo. Não só o senso da realidade que o Pai criou, mas o valor de nós mesmos. Perdemos tudo junto. Inclusive porque se a gente perde o Pai, é porque perdeu o Filho, que nos permite escutá-lo. E o Espírito, que dá vida a cada momento. E assim perdemos a totalidade da nossa experiência humana.

Há uma outra pergunta que comoveu quem estava nos Exercícios: “Para que vale a vida se não para ser doada?” Por que somente quando alguém doa a própria vida é que começa de fato a compreender-se?
A gente descobre quem é no encontro com o outro. Mas esse encontro só adquire toda a sua força na dimensão do dom. Não sendo assim, a gente encerra o encontro na posse do outro, como se ele fosse um bem pessoal nosso. Se for assim, estará perdida essa experiência. Ao invés, dar a nossa vida pelo outro é o que regenera continuamente a relação; a gente impede que ela morra. E, assim, ela também nos impede de morrer. Esse é um fato central, embora muitas vezes esquecido. Por trás da crise dos casais, da explosão dos divórcios, de todos esses desastres, há também o esquecimento de que a relação vive na medida em que nos doamos; se não, morre. Cristo, desse ponto de vista, é justamente o sinal definitivo da vitória sobre a morte. Que acontece através da morte, isto é, na doação total de nós mesmos aos outros.

Outra imagem com forte repercussão: “Somos sempre deficientes afetivamente, ficamos bloqueados, porque não aceitamos o risco do confronto com Cristo”. Em seu trabalho de psicoterapeuta, o sr. encontra com freqüência essa

 
 

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