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Passos N.89, Dezembro 2007

IGREJA - Documentos / Bento XVI e o Jesus de Nazaré

O Evangelho do reino de Deus

por José Miguel García

O reino de Deus, a finalidade das parábolas, o valor histórico do relato de certos milagres, o primado de Pedro. Passos inicia uma viagem por certos pontos problemáticos dos evangelhos, abordados pelo Papa em seu livro. Num contexto gerado pela crítica moderna que nega a historicidade do fato cristão, ele percorre uma trajetória racional, tendo como objetivo fazer crescer o conhecimento e o afeto pela pessoa de Cristo


Testemunhas, não inventores. Desde que surgiu a crítica moderna, a academia manteve uma atitude de desconfiança em relação ao valor histórico dos evangelhos. E isso, na época, acabou se tornando a mentalidade dominante. A radical separação, e até mesmo a oposição, que alguns historiadores estabelecem entre o Jesus da história e o Cristo da fé nasce de um preconceito filosófico, mas geralmente se baseia na hipótese segundo a qual os livros evangélicos não atestam acontecimentos históricos: seus relatos não são testemunhos de fatos realmente acontecidos, mas apenas criações teológicas, que expressam a fé da comunidade cristã em Jesus. Em outros termos, os evangelhos não nasceram do testemunho do encontro com um homem excepcional; são, antes, uma invenção ou mitificação.

Ao contrário, não foi a fé que gerou os fatos narrados pelos evangelhos; foram os fatos realmente ocorridos que geraram a fé daqueles homens em Jesus e o desejo de comunicar a todos o que encontraram. Os evangelhos nasceram da paixão por testemunhar a todos os homens a experiência vivida; por isso, ainda que tenham sido escritos depois da morte e ressurreição de Jesus, transmitem notícias verdadeiras sobre Ele. Lendo os relatos evangélicos, entramos em contato com o Jesus real, como afirma Bento XVI em seu recente livro Jesus de Nazaré.

Vamos aproximar-nos desse personagem histórico, Jesus, conhecer mais profundamente sua personalidade, para crescer também no amor por sua pessoa. Com esse objetivo, retomaremos, partindo de uma perspectiva mais histórica, alguns discursos e acontecimentos evangélicos que o Papa comenta em seu livro. Estamos conscientes de que, entre todos os aspectos envolvidos no estudo exegético dos evangelhos, a questão mais importante e decisiva é demonstrar que os evangelistas testemunham fatos vividos, uma história realmente acontecida.

Concentraremos a atenção em aspectos problemáticos, aos quais o Papa faz referência em seu livro, referentes a certas palavras de Jesus a propósito dos seguintes temas: o reino de Deus, a finalidade das parábolas, o valor histórico de alguns relatos de milagres, a instituição do primado de Pedro.

Queremos oferecer a todos uma viagem por etapas, como exemplo de comparação com as preocupações que levaram Bento XVI a escrever seu livro sobre Jesus. É uma ajuda para quem deseja aproximar-se dos evangelhos com plena razão, levando em conta também a pesquisa histórica, consciente de uma situação dramática para a fé: estamos imersos num contexto para o qual Cristo não é um fato acontecido em determinado momento da história; uma situação na qual – escreve o Papa – “a íntima amizade com Jesus, de quem tudo depende, corre o risco de pairar no vazio”.




Por ocasião do Congresso da diocese de Roma, o Papa comentou com estas palavras o motivo da publicação do seu livro Jesus de Nazaré: “Só quem conhece e ama Jesus Cristo pode levar os irmãos a ter uma relação vital com Ele. Foi movido por essa necessidade que pensei: seria útil escrever um livro que ajudasse as pessoas a conhecer Jesus”.

A finalidade do livro, portanto, é dar a conhecer Jesus tal como ele é apresentado pelos evangelhos, e não a partir das interpretações dos estudiosos, que se revelaram puras invenções. “Quis – afirma Bento XVI na premissa – tentar apresentar o Jesus dos Evangelhos como o Jesus real, como Jesus histórico, em sentido verdadeiro e próprio. Estou convencido – e espero que o leitor também se convença – de que essa figura é muito mais lógica e, do ponto de vista histórico, também mais compreensível do que as reconstruções com as quais tivemos que nos defrontar nas últimas décadas. Acho que justamente esse Jesus – o dos Evangelhos – é uma figura historicamente sensata e convincente”.

Por isso, a fonte histórica utilizada no livro são os evangelhos. Os relatos evangélicos, porém, não são sempre imediatos e simples; seu conteúdo nem sempre é claro. Às vezes, encontramos palavras ou narrativas obscuras, de difícil compreensão, como demonstra eficazmente o trecho do evangelho de Mateus no capítulo 11, versículo 12, que o próprio Bento XVI considera “palavras difíceis de explicar”. Procuremos encontrar um possível esclarecimento do enigma que se encerra nessas palavras.



O texto de Mateus

Para começar, recordemos o texto de Mateus: “Desde os dias de João Batista até agora, o Reino dos Céus sofre violência, e os violentos se apoderam dele”. De qual violência Jesus está falando? Quem são esses violentos?

As respostas oferecidas pelos estudiosos variam muito. Segundo alguns, com João Batista iniciou-se um movimento de renovação moral com o fim de antecipar a vinda do reino; os violentos que dele se apoderam são aqueles que aceitam a pregação do Batista: eles querem impor pela força o reino dos céus sobre a Terra. Contra essa interpretação pode-se levantar a súplica do Pai-Nosso: “Venha a nós o vosso reino”. Com essas palavras, Jesus dá a entender que a vinda do reino de Deus é exclusivamente obra de Deus; pode-se pedir que ela se realize, mas não se pode forçá-la mediante a ação humana.

Outros autores modernos viram nessas palavras de Jesus uma alusão aos zelotes, um grupo religioso-político daquela época. A principal característica deles era a luta violenta contra o poder romano, com o objetivo de libertar o território da Palestina, pois o único dono da terra de Israel é o Senhor. Para restaurar a soberania de Deus, os zelotes chegaram até a declarar guerra ao império romano, entre os anos 66 e 70. Dois fatos tornam impossível essa interpretação das palavras de Jesus: 1) o movimento dos zelotes começou antes que João Batista iniciasse sua pregação de penitência; 2) Jesus manteve uma posição crítica em relação a tal uso da violência.

Outros viram ali uma alusão à posição hostil dos escribas e fariseus, que fechavam as portas do reino de Deus aos homens e não deixavam entrar aqueles que o desejam (cf. Mt 23,13). Se fosse assim, a primeira parte do discurso se esclareceria, tornaria-se inteligível, mas a segunda permaneceria totalmente obscura. Para poder dar-lhe um sentido, esses estudiosos são obrigados a traduzir deste modo: “Desde os dias de João Batista até hoje o reino dos céus sofre violência e os violentos o arrancam (do coração daqueles que desejam nele entrar)”. O fato de ser necessário acrescentar um parênteses indica que essa tradução é forçada. Além disso, segundo o original, aquilo de que os violentos se apoderam é o reino dos céus; e é lógico supor que se apoderam para se tornarem os seus donos, não simplesmente para afastar os outros dele.



A solução do enigma

A fim de encontrar uma solução para esse enigma, é preciso partir de um dado histórico: a atitude de Jesus em relação aos publicanos e pecadores. Segundo o judaísmo da época de Jesus, Deus era misericordioso com os pecadores, mas não com os pagãos. Além disso, não tinha piedade dos judeus que viviam como pagãos, por comportamento e profissão: sobre eles pesava a maldição. A esse grupo pertenciam, entre outros, os judeus que praticavam o jogo de azar, os usurários, os pastores e os publicanos. Jesus, portanto, anuncia a esses pecadores “imperdoáveis” a boa nova da misericórdia divina, com palavras e gestos. Durante seu ministério público, Jesus proclamou que esses homens seriam acolhidos e perdoados por Deus, e que inclusive eles seriam chamados a participar do reino de Deus, ou seja, seriam convidados a entrar no âmbito em que Deus exaure definitiva e inequivocamente os desejos do coração humano. Assim, quando Jesus proclama que Deus deseja tornar esses pecadores partícipes da felicidade e que ele próprio era o símbolo dessa salvação, mediante o acolhimento e refeição em comum com eles, escandalizava os judeus ortodoxos; daí a hostilidade deles em relação a Jesus. Um claro testemunho desse escândalo e dessa hostilidade são as seguintes palavras, citadas por Jesus no evangelho de Mateus: “Com efeito, veio João, que não come nem bebe, e dizem: ´Um demônio está nele´. Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizem: ´Eis aí um glutão e beberrão, amigo dos publicanos e pecadores´”. (Mt 11,18ss). Está claro que nesse discurso, como naquele que estamos tentando explicar, o Senhor cita palavras dos escribas e fariseus escandalizados.



Publicanos e pecadores

Mas se Jesus afirma que publicanos e pecadores são acolhidos por Deus em seu reino, que também eles são convidados a participar dos bens salvíficos, os quais são representados como estando presentes num espaço habitado por Deus, para os escribas e fariseus esse anúncio significava uma violência sobre o reino dos céus: aqueles que eram excluídos entram nele violentamente, se apoderam de (ou roubam) algo que não lhes pertencia. Em outras palavras, o reino dos céus sofre violência porque nele ingressam homens que, segundo a lei hebraica, estavam excluídos dele; e os violentos que roubam esse reino de Deus são os publicanos e os pecadores “imperdoáveis”.

Jesus diz algo semelhante na parábola do filho pródigo: os protestos do filho mais velho, que não quer se unir à alegria do pai pelo retorno do filho pecador, parecem significar que, segundo ele, o irmão mais novo entrou com violência na casa de seu pai, ocupada merecidamente somente por ele, que durante toda a vida obedeceu ao pai sem jamais transgredir suas ordens (cf. Lc 15,29ss.).

Por isso, essas palavras de Jesus, nas quais ressoa o eco do pensamento dos seus adversários, não expressa um lamento, mas antes uma exclamação de júbilo, que consola os pecadores, tão desprezados pelos fariseus e escribas. É uma ousada declaração de Jesus frente à obstinada hostilidade deles.



Um lugar no qual se entra

Como se sabe, a pregação de Jesus gira em torno do anúncio do reino de Deus. Na tradição judaica, a expressão “reino de Deus” relaciona-se com o domínio de Deus, com a afirmação do seu reinado. Jesus, sem romper de todo com essa concepção, introduz uma novidade radical, pois em seus lábios essa expressão reflete uma imagem concreta: a de Deus como o rei ideal, em cujos domínios são satisfeitos os desejos mais profundos do homem, os desejos que formam o coração humano.

“De fato – afirma Sverre Aalen – a terminologia característica usada nos evangelhos em relação ao reino de Deus é completamente diferente, nas frases e nas expressões, daquela que destacamos como tipicamente judaica. Por exemplo, nos evangelhos é essencial a metáfora de alguém que entra no reino (cf. Mt 5,20ss.; Mc 9,47; 10,15.23). Essa idéia de entrar é amplamente aplicada nos discursos de Jesus, fazendo parte do núcleo do seu material expressivo. Entra-se também na vida (eterna) (Mc 9,43; Mt 19,17). O servo bom e fiel entra na (participa da) alegria do seu senhor (Mt 25,23), ou entra-se pela porta estreita (Lc 13,24). É inegável o fato de que o reino de Deus, nesses textos, é concebido como um território, uma área”.

Na mesma categoria de imagens especiais colocam-se as palavras de Jesus que indicam um banquete – que se celebra num espaço fechado –, a mesa no reino de Deus (Mt 8,11; Lc 14,15), as chaves do reino dos céus (Mt 16,19), o fechamento do reino dos céus (Mt 23,13), a expulsão do reino (Mt 8,12).

Portanto, se no judaísmo o termo “reino” (malkut) serve para designar a realeza, a soberania de Deus, na tradição evangélica geralmente não designa uma qualidade de Deus, mas sobretudo os bens envolvidos na salvação de Deus, concedida ao homem por meio de Jesus Cristo.

Um claro exemplo dessa concepção é o discurso de Jesus em Mt 11,12, que acabamos de examinar. Nele o reino de Deus indica um lugar no qual se entra para participar da plenitude da vida; o que significa que não se pode reduzi-lo à soberania de Deus. A imagem do reino de Deus manifestada pelas palavras de Jesus – insistimos – é aquela de um território, uma área na qual se entra ou para a qual se caminha; um espaço habitado por Deus, e no qual o homem é convidado a entrar, para assim participar dos bens que satisfazem de modo completo e definitivo todas as suas necessidades e sua radical indigência.


“A questão fundamental diz respeito ao relacionamento entre reino de Deus e Cristo: disto depende, depois, como devemos entender a Igreja” (Joseph Ratzinger)

“A nova aproximação do reino do qual Jesus fala é Ele mesmo. (…) A partir deste dado central se ligam os diversos aspectos aparentemente contraditórios” (Joseph Ratzinger)

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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