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Passos N.82, Maio 2007

CULTURA - Literatura / Clemente Rebora (1885-1957)

Dentro do limite - A descoberta do eterno

por Dado Peluso

A sofrida participação na Primeira Grande Guerra, a conversão ao catolicismo e a entrada na ordem rosminiana. A poesia, reflexo da agitação interior, mas também exigência de totalidade

Destacado intérprete do século XX, nascido em Milão, de família burguesa, em 1885, herda do ambiente de tradições laicas e garibaldinas uma profunda exigência moral de responsabilidade e de sentido das coisas. Liga-se, depois do colegial e dos estudos universitários, aos ambientes de La Voce, onde publica, em 1913, Fragmentos líricos. Sua inquietude cresce com a participação na Primeira Grande Guerra, onde vê o sofrimento e a morte de muitas pessoas humildes (foi dispensado por motivos de saúde, com o diagnóstico de “mania do eterno”), às quais se dedica como professor nas escolas técnicas noturnas, em Milão. Nesses anos, publica Cantos Anônimos (1922), em que emerge a sua paixão pelo alpinismo, pela música e pela poesia. Depois de uma trajetória complicada, a crise se resolve na conversão ao catolicismo, em 1929. Após um encontro com o Cardeal Schuster “cresce em mim a necessidade de permanecer firme, até que chegue a plenitude das palavras” (23 de dezembro de 1929); “ainda não sei nada de mim mesmo; aguardo a indicação, para então obedecê-la” (16 de novembro de 1930); decide entrar como noviço na ordem rosminiana, em 1931. Somente por obediência aos superiores é que voltará à poesia, no pós-guerra, com Curriculum Vitae e Cantos da enfermidade. Encerra sua vida terrena em 1957, depois de prolongados sofrimentos.

“Espírito nobilíssimo e atormentado”
Foram significativas suas traduções (Gogol, Tolstoi...), nos anos do seu relacionamento com a pianista russo-judia Lidia Natus, e seu interesse pelo messianismo eslavo, pela cultura judaica e pelo misticismo oriental (a respeito do qual publica uma coleção de textos religiosos). “Espírito nobilíssimo e atormentado” – segundo a definição de Ungaretti numa carta de 1917; com a experiência da guerra, viu-se em lugares “que são o Calvário da Itália” (carta à mãe, 1915); “Foi então que começou minha conversão... Dante ilustra isso no Inferno, na fala de Medusa, símbolo do desespero que deriva da realidade cotidiana”, escreve em 1925. Toda essa confusão – como Baudelaire e Eliot – ela a vê encarnada na cidade, sinal do sofrimento do homem moderno, em contraposição à zona rural, a Planície, tomada por um sentimento tipicamente lombardo e símbolo “do renascimento e da estabilidade”. É a mesma tensão polêmica de Eliot em relação à aridez da vida, à desilusão com um progresso que torna o universo humano vazio (de fato, de 1922 são A terra desolada, de Eliot; Ulisses, de Joyce, e os seus Cantos anônimos).
Raboni reconhece que sua poesia alcança os picos mais altos do século, porque nela está presente a história. Nisso segue as pegadas de Pasolini, quando, em Paixão e ideologia, de 1957, escreve: “Embora a alma, a vida interior, seja o lugar de Rebora, ele permanece na história; e encontra justamente em quem o protege, Deus, a razão que o obriga a se comprometer, a Igreja”.
Já em Fragmentos líricos, dedicados “aos primeiros dez anos do século XX”, a tensão em captar qualquer fagulha de verdade amplifica a percepção do eu, que se abre às coisas na tremenda consciência de uma escolha. Segundo Contini, primeiro grande crítico do poeta, são fragmentos que “se referem a um só poema que não será escrito, porque sobretudo vital, porque é a alma do homem e a moral de uma época” (1957).
A poesia está cheia desse maravilhamento com a vida, dentro do drama de viver. “É maravilhoso como tudo continua a viver” (carta a Monteverdi, 1912); e, ao mesmo tempo, está repleta da vontade de encontrar a verdade e da expectativa febril de um evento (ao irmão Pietro, na edição de 1947, escreve: “A atividade literária – se assim se pode chamá-la – para mim foi uma ardente busca dEle, para viver... dever-se-ia pelo menos roçar o inenarrável e imenso esforço do meu ser, como um peixe de boca escancarada às margens do Oceano divino”, “uma poesia toda voltada para o objeto como evento que não exige outra fidelidade senão a da tradução” (Bigongiari, 1958).
“Eu me debato na oposição entre o Eterno e o transitório, entre aquilo que percebo (e amo) como necessário e aquilo que gostaria que não fosse... se eu publicar alguns poucos fragmentos líricos – horríveis como poesia – você verá esses contrastes” (carta a Daria Malaguzzi, 4 de agosto de 1911).

Experiência lingüística
Pela primeira vez, depois de Manzoni, um poeta propõe algo novo, numa renovada relação objetiva com a realidade, sentindo o coração se interessar pelo destino dos outros (“Gostaria que meu coração revelasse/ em seu ritmo próprio/ o humano destino”), e uma nova paixão pelo mundo, numa sofrida exigência de totalidade. Assim, transforma a linguagem áspera e dura, eco daquela dantesca, e, ao mesmo tempo, lírica como a leopardiana, um Leopardi ´violentamente atualizado e atormentado” (P.V. Mengaldo,1979) na sua musicalidade; e recupera a matriz expressionista que reflete “a trágica desarmonia entre alma e vida” (carta a Malaguzzi, 19 de maio de 1911), numa incessante experiência lingüística que representa a sua vontade de transformar a realidade através de uma “palavra explosiva, que fosse além da palavra mesma” (G. Caproni, 1957), apegando-se a qualquer proeminência da linguagem para comunicar a própria vibração ao mundo, uma linguagem arremessada contra a realidade... com uma violência que ofende sobretudo o verbo, porque tende à representação da ação, em vez de à sua descrição” (Contini).

A voz de Deus
Dante continuará sendo, até em seus últimos textos, a referência mais alta, como se vê em Comédia (Ed. Hoepli), glosada pelo autor (e recentemente estudada), na qual os cantos XXVI do Inferno e XXXIII do Paraíso são os mais recheados de anotações. No primeiro, Ulisses é o arquétipo da busca humana; no segundo, morto o homem velho, “náufrago da vida”, Rebora se abre à Virgem Maria como “uma criança na escola da vida”. É finalmente o reencontro de si mesmo, tão sonhado no último poema dos Cantos, em que um sussurro do Mistério se manifesta ao homem; uma revelação que ecoa na lembrança de Montale, que visita o poeta: “A voz de Deus – dizia – é sutil, um murmúrio quase imperceptível. Se nos acostumarmos com ele, conseguiremos percebê-lo em todo lugar” (1957). Assim, a poesia “é a beleza que torna patente, como reflexo arcano, a Bondade infinita, que tem sim grandes braços... como veículo do invisível no visível, palpitação da única realidade do ser infinito” (12 de novembro de 1950), que com apreensão havia esperado, como um “anúncio longamente aguardado, mas talvez pelo Dulce hospes animae” (14 de agosto de 1951 e frase citada in R. Lollo, 1968).

 


Rebora. Nota biografica

Clemente Rebora nasceu em Milão, Itália, em 1885. Ali estudou e se formou em Letras, dedicando-se, posteriormente ao ensinamento. Participou da Primeira Grande Guerra como suboficial. Da sua experiência militar restará o atroz testemunho em algumas poesias escritas entre 1913 e 1918. Após este período ele prossegue na sua busca de certezas espirituais, capazes de dar um sentido para a própria vida. A dificuldade deste percurso está documentado nos Cantos anônimos, compostos entre 1920 e 1922. O encontro com a religião se conclui com a entrada na ordem rosminiana e sua ordenação sacerdotal em 1936. Pela intensa atividade pastoral, o exercício da poesia tornou-se cada vez mais esporádico: oito poesia religiosas entre 1936 e 1947. Uma retomada mais intensa se deu com os Cantos da enfermidade, entre 1955 e 1956, coincidindo com as paralisias que sofreu e o agravar-se da doença que o levou a morte, na cidade de Stresa, em 1957.


 

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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