Um homem pobre (pobre em espírito, no sentido evangélico), foi como Rebora se apresentou a mim desde a primeira leitura, e essa pobreza, como já tive oportunidade de dizer, é definida pelo fato de captar a positividade do desígnio misterioso das coisas, misterioso mas positivo, de algum modo positivo. Quero exemplificar brevemente essa primeira afirmação com o Fragmento V da coletânea “Aos primeiros dez anos do século XX”:
Se entre o caixão e o berço
Se perpetua o homem, e suas cruzes
Madeira são de um tronco imortal
E suas tendas frágil rebento
De inexausto viço,
É isso passatempo de cego destino?
Se pelo universo circulam eternas vozes
E dos átomos aos sóis se conjuga
Entre glórias ardentes e tenebrosos erros
Uma grandeza infinita
Que o espírito entende,
É isto para nada?
Não é possível que tudo isso seja para nada. Essas perguntas, que permeiam o olhar que dirigimos ao universo, sugerem imediatamente a positividade de que falei antes. Não pode ser por nada; efetivamente, é assim que o homem, na sua companhia cósmica, caminha. Caminha, não fica parado (Fragmento XXVIII):
Tu, pelas casas, pelas pátrias, pela terra,
És a pisada e a pegada do ritmo seguido
Pelos passos que ergue e desfere
Entre metas e retornos
O gigante que ruma para o infinito.
De acordo com essa sensação imediata de positividade, o homem é um gigante que ruma para o infinito, “entre metas e retornos”, mas esse gigante vive um momento após o outro, trazendo, assim, um valor do ser ao instante efêmero. O instante efêmero não é efêmero (a cada momento, “o instante propagado/ no vasto palpitar que o fecunda”), mas demonstra sua conexão com o todo; cada instante, portanto, tem uma grande importância. A positividade torna grandioso o homem que caminha dentro da realidade, mas o faz na medida em que torna grandioso cada momento, cada instante. Essa característica fundamental do primeiro olhar que o homem dirige à realidade se reflete numa expressão em que vemos, mais que em qualquer outra, a grandeza do coração do homem e a sublimidade do instante.
***
Eu gostaria de intitular o segundo ponto: “O homem colabora com essa positividade”. Quando percebe, quando pressente essa positividade última da realidade, mesmo que ela seja misteriosa, quando percebe que tudo é dom, o homem se atira de boa vontade na colaboração. O homem que é, não o que se inventa, se torna colaborador da realidade: colaborador do sentido da realidade! Ele não é colaborador apenas de recortes da realidade, recortes feitos de acordo com seus preconceitos, ou de acordo com cálculos prévios, ou programas preestabelecidos.
Em primeiro lugar, essa colaboração é participação do movimento do cosmo (Fragmento VI):
Oh, da verdade do devir humano
Poderosa certeza irresistível,
Tece, tece com teus fios o pano
Que firmemente no tecido é história
E no desígnio eternamente é Deus:
Mas assim, cego e indolente,
Entre uma morte e outra, vil ritmo fugaz,
Também eu te terei feito; também eu.
Eu, portanto, participo. Nessa colaboração, participo da construção do universo. Participo da trama desse pano, do tecido que é história, do desígnio que é Deus: o Mistério. Ainda que eu seja como uma onda breve, “cego e indolente”, cego ante o mistério, indolente ante a enorme massa de energia do cosmo, “entre uma morte e outra, vil ritmo fugaz”, como uma nota entre uma morte e outra, ainda que eu seja tão mesquinho, “também eu te terei feito; também eu”.
Mas essa participação, na qual o homem de Rebora sente implicada toda a sua personalidade, é uma luta. E uma luta armada (Fragmento V):
Mas, tal como fechando o velame
Mais impetuosa a barca o vento enfrenta,
Queria eu que a alma atravessasse
a fúria contida da provação.
***
Chegamos à terceira questão, a mais importante quando se discute a poética de Clemente Rebora enquanto expressão de uma experiência pessoal da vida.
Parece-me que só há uma palavra que eu possa usar: “escolha”, ou o drama da escolha. Realmente, até aqui a positividade se detém, por assim dizer, numa confusão quase panteísta, e o que há de “são” na figura de Rebora é justamente o fato de que ele, não obstante a impossibilidade de uma clareza individual, se lança nessa grande confusão, se atira num ímpeto de colaboração.
Mas eis que no 62º de seus Fragmentos (O espaço poroso e sedento) ele diz:
Revelai, revelai a arcana forma [ó criaturas]
Do invisível amor
A nós, que, mesquinhos,
Marcamos com nossos selos
O trabalho de Deus
Gritando: Eu, eu, eu!
Ó coisas do mundo, revelem, façam-nos conhecer essa maneira misteriosa que o invisível amor tem de construí-las; mostrem-na a nós, que, mesquinhos como somos, acreditamos que as coisas que existem são aquelas que podemos tocar e moldar com as nossas mãos: “A nós, que, mesquinhos/ Marcamos com nossos selos/ O trabalho de Deus/ Gritando: Eu, eu, eu!”. Urge então a terrível escolha: “Dizer sim, dizer não/ A algo que eu sei”. Eu já sei, diz Rebora, eu já entendo, mas mesmo assim urge a terrível escolha. É justamente nessa dramaticidade que está a diferença entre o humano e o subumano, pois é nessa dramaticidade que o nível da natureza que se chama homem vive sobressaltado, e vive em meio a um vai-e-vem de pensamentos e sentimentos que, porém, sempre voltam ao nó da questão, ou seja, à intuição que já veio à tona.
***
Para o homem, cada momento começa e se encerra igual e desigual. Ele sempre se ilude achando que o drama se suspende, que o drama cessa, porque consegue fixar o termo ideal, a composição última da grande questão. Mas o tempo continua a existir, e esse tempo é o contrário da realidade subumana, sem sentimento. O tempo continua a existir, de modo tal que não cessa o seu tormento, “continua o meu sobressalto/ a todo tempo”.
Mas Rebora diz a mesma coisa numa poesia ainda mais sugestiva, uma de suas mais belas, Maternidade de Maria:
O cimo do freixo
aprova, desaprova,
em lenta avaliação,
o vai-e-vem do vento;
e no final sempre afirma
a tendência suprema ao céu:
lembra assim o cume da alma,
que da Divina Pessoa
se aproxima ou se afasta
no trânsito do tempo
rumo a um vértice eterno;
e misericordiosamente, a cada vez,
se confirma a união de amor
para a unânime glória.
([9 de outubro de] 1955)
***
O Deus escondido, “o evanescente Deus” - como dirá num outro poema - é o nível em que “o tronco da realidade” se abisma, é a verdade. Assim, toda a energia que o homem Clemente Rebora punha na colaboração com a realidade que julgava ser positiva lentamente se polariza para um tender a buscar o rosto desse Deus escondido.
Sua vida se transforma num tender a tirar o máximo possível de véus desse Deus escondido, num tender para Deus. Quero ler os dois trechos que considero os mais belos de toda a sua obra. O primeiro se intitula Gira o pião vivo.
Gira o pião vivo
Sob a correia, graças à correia;
Deixado a si mesmo, jaz inerte,
Grudado à terra, odiando a terra;
Enquanto jaz, olha para o chão;
Todas as coisas estão paradas,
E ele inveja o movimento, espreita o desconhecido;
Mas, quando se apóia num único ponto,
À medida que segue se fixa,
E percebe o entorno, vê seu entorno;
Seu círculo máximo está no alto,
Se ergue a cabeça, se sustenta o corpo;
No ar límpido ele fica em evidência,
Se levanta o corpo, se eleva a cabeça;
Gira - e o mundo multicor
Funde em sua brancura
Todos os contornos, todas as cores;
Gira - e o mundo desunido
Envolve em sua pureza
Todos os corações, por todos os dias;
Vive o pião e gira,
A correia Deus, a correia é o tempo:
O pião assim respira
O amor, rumo ao eterno.
E logo em seguida, a poesia mais bela de todas: Da imagem tensa. O mundo é como uma imagem que faz tender, que chama a algo além dele mesmo.
Da imagem tensa
Vigio o instante
Com iminência de espera -
E não espero ninguém:
Na sombra acesa
Espio a campainha
Que espalha imperceptível
Um pólen de som -
E não espero ninguém:
Entre quatro paredes
Estupefatas de espaço
Mais que um deserto
Não espero ninguém:
Mas deve vir,
Virá, se eu resisto
[se eu sou coerente com a minha natureza]
A desabrochar sem ser visto,
Virá de repente,
Quando menos o esperar:
Virá como perdão
De tudo o que faz morrer,
Virá para me dar a certeza
Do seu e do meu tesouro,
Virá como restauro
Das minhas e das suas penas,
Virá, talvez já esteja vindo
O seu murmúrio.
Mas esse tender, que leva Rebora a um empenho religioso que prevalece sobre qualquer outro empenho, ou, melhor dizendo, a um empenho religioso que penetra qualquer outro empenho de sua vida, faz com que ele perceba cada vez mais fortemente como existe, entre o homem que busca e o Deus que é buscado, uma condição triste - ele diz humilhante -, que é a morte: “Que o humilhante decompor-me vivo/ seja o indício da Tua vital chegada”. Sua tristeza não é mais um dado apenas negativo, é o ardor da espera de um ausente, como dizia Santo Tomás de Aquino. “Que o humilhante decompor-me vivo/ seja o indício da Tua vital chegada.” O homem se contorce na solidão, pois está sozinho nesse humilhante decompor-se vivo, e está sozinho também, contorcendo-se na solidão, nessa força virtuosa que traduz a decomposição no sinal de um ausente desejado que se aproxima. Mas tudo isso nos abre a um outro elemento que se destaca na poesia de Rebora, e que é a discussão que caracteriza toda a sua produção depois da conversão. Tal como o sol domina o panorama da realidade efêmera, a cruz domina o panorama da realidade que nunca acabará. Parece uma contradição, uma antinomia: a cruz, aceita como participação do Mistério. Mas não se trata de uma afirmação que permanece abstrata, desumana em sua abstração, ainda que continuemos a ter a tentação de reduzi-la a isso. De fato, a tentação humana é afirmar que tudo é mentira: “E se for uma ilusão?”.
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón