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Passos N.81, Abril 2007

DESTAQUE - Dom Giussani, os Bispos, os Papas

Uma história de fidelidade

por Massimo Camisasca

A audiência de Bento XVI no dia 24 de março na Praça São Pedro pelos 25 anos de reconhecimento pontifício da Fraternidade de CL. Ocasião para renovar a nossa fidelidade a Pedro – pilar estabelecido para a nossa vida de fé – e à sua Igreja.
Uma fidelidade que mercou a nossa história e toda a vida de Dom Giussani, para o qual – como lemos na Escola de Comunidade – “os Apóstolos e os seus sucessores (Papas e
Bispos) constituem na história a viva continuação da autoridade que é Cristo... como rocha definitiva e segura: infalível. ‘Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja’” (O Caminho para a verdade é uma experiência).
Nestas páginas, contribuições para termos mais consciência da importância do encontro com o Papa



Dom Giussani foi obediente? Ele, que educou milhares de pessoas à obediência, entendida como adesão à vida, ao Ser, àquilo que faz crescer e, portanto, às autoridades que a vida coloca no nosso caminho, obedeceu à Igreja, aos Bispos, ao Papa?

Dez anos depois do nascimento do Movimento, que se deu em setembro de 1964, foi publicado, por ocasião dos três dias de início de ano em Varigotti, um livro chamado Apontamentos de Método Cristão (agora em: O Caminho para a verdade é uma experiência, Ed. Companhia Ilimitada, São Paulo 2006). Nestas páginas, dedicadas ao relacionamento com a autoridade, podemos ler: “Àquele ponto de referência tudo deve ser interior e geneticamente subordinado e, eventualmente, sacrificado”. Seis meses depois disso, Dom Giussani deverá afastar-se do Movimento e viajar para os Estados Unidos. Talvez, enquanto escrevia aquelas linhas, já pressentisse o que aconteceria. Ficará longe da Itália e dos seus amigos apenas por alguns meses, mas o que existia do Movimento seria confiado a outros. O sacrifício foi grande, mesmo que ele nunca tenha falado sobre isso nos quarenta anos seguintes, sinal de que a ferida jamais cicatrizou. Giovanni Colombo, seu Arcebispo de Milão, foi quem ordenou esta longa separação.


Montini: “Continue assim”
Antes de Colombo, foi eleito para a cátedra de Milão, Giovanni Battista Montini. O relacionamento entre Giussani e o Cardeal Montini sempre foi intenso.

Chegaram a Milão no mesmo ano mas não se conheciam; alguém falou ao Arcebispo sobre Dom Giussani e, desse modo, ele lhe confiou a evangelização dos estudantes dentro da grande Missão para Milão com a qual inaugurou o seu ministério na principal cidade da região da Lombardia. Giussani e Montini tiveram uma formação e uma sensibilidade profundamente diferentes. No entanto, o futuro fundador de CL soube capturar a atenção, a curiosidade e o respeito do Arcebispo. Dezenas de cartas documentam isso. Montini não escondia as críticas que alguns setores da diocese dirigiam a Dom Giussani e as comunicava a ele com um tom delicado e paterno, confirmando sempre a sua estima pela maneira de trabalhar do sacerdote da Brianza (região da Itália onde nasceu Dom Giussani; nde). Quando, por fim, as críticas chegaram de Roma, da Ação Católica Central, Montini disse a Dom Giussani palavras que ele jamais esqueceria: “Eu não entendo suas idéias e seus métodos, mas vejo frutos, e lhe digo: continue assim”. Essa abertura favoreceu o nascimento e amadurecimento em Dom Giussani de uma devoção filial, de um desejo de obediência. Em uma carta de 1962, escreveu ao seu Bispo: “Com certeza, não existe em nós tradução maior do nosso amor a Cristo do que o desejo ativo de servir à Santa Igreja de Deus em nosso Bispo. Não desejamos desagradá-lo jamais e lhe oferecemos todas as nossas energias vitais”.


Colombo: obedecer “de pé”
Em 1963, Dom Giovanni Colombo sucedeu Montini, eleito Papa, com o nome de Paulo VI. Ele era o reitor do seminário de Venegono nos tempos de Dom Giussani e foi um dos seus professores mais importantes. Os dois, portanto, já se conheciam, e muito bem. O relacionamento entre Dom Giussani e o novo Arcebispo foi atormentado e, freqüentemente cheio de incompreensões. Colombo tinha uma grande estima por Dom Giussani, a quem considerava um de seus melhores alunos. Ele queria que seus dons fossem colocados a serviço da diocese ensinando Teologia, e relutava em aceitar vê-lo às voltas com um Movimento que crescia em número e gerava descontentamento nas paróquias e associações tradicionais. Por seu lado, Dom Giussani afirmava não fazer outra coisa senão viver e propor aos jovens os ensinamentos que o próprio Colombo lhe tinha conferido durante os anos de seminário.

Foi então que aconteceu o afastamento de Dom Giussani para os Estados Unidos. Voltando de lá, começou a dar aulas na Universidade Católica de Milão. No centro de seus ensinamentos, que se tornariam, depois, o PerCurso, texto básico da Escola de Comunidade, a catequese comum de CL, estão estas afirmações: “A fonte normal de um conhecimento último seguro não é o estudo teológico ou a exegese bíblica, mas as articulações da vida comum da Igreja, ligada ao magistério ordinário do Papa, e dos Bispos em comunhão com ele”. Muitos anos mais tarde, dirá: “A autoridade é a forma contingente que a presença de Jesus ressuscitado utiliza como expressão operante da sua amizade com o homem, comigo, com você, com cada um de nós”.

Pode-se dizer, então, exatamente pela análise do relacionamento entre Dom Giussani e o Cardeal Colombo, que Dom Giusanni costumava obedecer “de pé”: apresentava à autoridade, continua e insistentemente, as próprias razões, não a deixava sossegada. Ao mesmo tempo, o seu relacionamento com seus Bispos era carregado de profunda ternura. Em uma carta ao Cardeal Colombo, de 1973, por ocasião dos dez anos de sua eleição como Arcebispo de Milão, Dom Giussani escreveu: “Há dez anos o senhor é o sinal e o instrumento do Senhor para a vocação da minha vida. [...] Quando meu rosto e minha história poderão fazer meu Pai feliz? É o pedido que elevo a Nossa Senhora neste dia, dominado pela mesma comoção de dez anos atrás, quando o vi entrar na Duomo”. Como testemunho dessa obediência viril, Dom Giussani escreverá, em 1975, ao seu Arcebispo: “Se a minha pessoa com a história que carrega representa um impedimento, peço ao senhor que não demore em pôr-me à parte”


Na Praça São Pedro com Paulo VI
Naquela época, o Arcebispo Montini tinha se tornado Papa Paulo VI. No último período de seu pontificado, em meio à confusão geral que dominava a vida da Igreja, começou a olhar CL como um acontecimento animado pela fidelidade à grande Tradição e, portanto, ao Papa. No Domingo de Ramos de 1975, os membros de CL foram convocados por ele para comparecer à Praça São Pedro, em Roma. Foram dezoito mil os presentes. Temia-se que a Praça ficasse vazia; corria o Ano Santo e aquela celebração tinha sido contestada. Comovido por aquele gesto de generosa fidelidade, Paulo VI, encontrando Dom Giussani na porta da Basílica, enquanto os celebrantes entravam, retomou, provavelmente sem se lembrar, exatamente as palavras que o fundador de CL já tinha ouvido dele: “Este é o caminho: continue assim! Coragem, coragem, o senhor e seus jovens, porque este é o caminho bom”. Porém, desta vez, não disse: “Não entendo”.


João Paulo II: uma sintonia
O Papa com quem Dom Giussani teve o relacionamento mais intenso foi, sem dúvida, João Paulo II. Suas vidas se entrelaçaram profundamente, inclusive na doença e na morte. Desconhecido da maioria até o dia de sua eleição ao trono pontifício, Karol Wojtyla já era conhecido por Dom Giussani e alguns membros do Movimento a quem tinha encontrado em umas férias no Monte Tatra, na Polônia, alguns anos antes. A sintonia entre a experiência do Papa polonês e a do fundador de CL era profunda e emergiu com clareza desde os primeiros meses de pontificado. Depois da primeira audiência, em janeiro de 1979, Dom Giussani escreveu a todo o Movimento: “Sirvamos a Cristo neste grande homem com toda a nossa existência” e delineou os dois pontos principais de convergência com o Santo Padre: Jesus Cristo, verdade de todo homem, e a fé como forma de toda a vida que se exprime como cultura e se comunica como educação.

Quando, alguns meses depois, foi publicada a primeira encíclica de João Paulo II, Redemptor hominis, ela se tornou o texto de trabalho da Escola de Comunidade. Dois anos mais tarde, o Movimento se mobilizou com reuniões e com um trabalho capilar para difundir o discurso pronunciado pelo Santo Padre na Unesco onde ele abordou organicamente os temas da cultura e da educação.

Desde o início de seu pontificado, João Paulo II colocou-se a pergunta: “Quem está perto de mim? Quem pode me ajudar?” e viu nos Movimentos leigos a resposta a esta sua exigência. Preocupou-se, assim, em conhecê-los, valorizá-los e, enfim, reconhecê-los também canonicamente. Ele foi a voz da Igreja que disse “sim” àquilo que nascera de Dom Giussani, um sim que o sacerdote de Desio esperava há décadas e que parecia impossível até alguns meses antes de 11 de fevereiro de 1982, quando a Fraternidade de Comunhão e Libertação foi reconhecida pela Santa Sé. João Paulo II reconheceu, em seguida, os Memores Domini, a Fraternidade São Carlos e as Irmãs de Caridade da Assunção.


Os encontros com o Cardeal Ratzinger
Nos anos oitenta, Dom Giussani, por iniciativa de Dom Angelo Scola e na minha presença, vinha uma ou duas vezes por ano a Roma para jantar com o Cardeal Ratzinger. Os encontros, que aconteciam no hotel Cappellette, se desenrolavam sempre da mesma maneira. Dom Giussani pedia a Ratzinger confirmação da ortodoxia das próprias posições e recebia dele sempre novas razões que sustentavam sua verdade e fecundidade.

A proximidade entre Dom Giussani e João Paulo II durante os anos oitenta deu lugar a um inexaurível florescimento de iniciativas. Aquela aliança assustou. Houve quem tentou afastar os dois homens, cavar um abismo entre eles, mas a realidade da sintonia que tinham demonstrou-se mais forte do que qualquer lógica. Os últimos anos da vida de João Paulo II e de Dom Giussani, marcados por uma profunda comunhão na doença e na oferta de si mesmos a Cristo, foram ainda diferenciados por uma correspondência
epistolar muito intensa e significativa.

O encontro de maio de 1998 é quase emblemático deste relacionamento. Na Praça São Pedro, diante de milhares de pessoas, falaram o Papa e quatro fundadores de Movimentos, entre eles, Dom Giussani. No final de sua colocação aproximou-se do Papa, subiu os degraus e, então, ajoelhou-se, como que oferecendo a toda a Igreja aquilo que nascera dele. Este foi o último encontro que tiveram.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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