Agradecer é sinal de reconhecimento diante de uma graça alcançada. A promessa é o lugar da manifestação da fé que nos acompanha. Neste artigo, um samba do grande compositor Ary Barroso, onde, a partir de uma promessa realizada há a entrega de um ex-voto como sinal de retribuição
Ary Barroso (1903-1964) nasceu em Ubá (MG) e viveu no Rio de Janeiro. Foi radialista, apresentador de programas de calouros, pianista, locutor esportivo, vereador, trabalhou com Walt Disney, foi descobridor de talentos e apaixonado por futebol, tendo o Flamengo como time do coração. Teve suas canções interpretadas pelos maiores nomes da MPB, como Carmem Miranda, Orlando Silva e Silvio Caldas, dentre outros. Ele é um dos mais conhecidos compositores brasileiros e fez sambas como Aquarela do Brasil, Isto aqui o que é?, Rio de Janeiro (Isto é o meu Brasil), só para citar os mais importantes. Nas letras aparece um deslumbre diante das paisagens singulares do Brasil e uma evocação ufanista dos tipos, lugares e características do povo brasileiro. Ary Barroso foi um dos compositores que elevou ao máximo o nosso sentimento de patriotismo pelo Brasil.
O amor pela Bahia e pelo Senhor do Bonfim
Ary Barroso se tornou mundialmente famoso por canções que falam da Bahia, descrevendo os tipos humanos, a magia da terra e suas belezas. Esse Estado aparece como tema de muitas canções como Bahia imortal, Bahia, Na baixa do sapateiro, No tabuleiro da baiana, Quando eu penso na Bahia. Note que em alguns sambas há referências diretas ao Senhor do Bonfim, ou a Nosso Senhor, presença constante na obra do autor, inclusive nos clássicos sambas Camisa Amarela e Aquarela do Brasil, como podemos perceber nessa pequena antologia de trechos de sambas onde a presença do Senhor do Bonfim está relacionada aos mais diversos interesses do autor. Ao lado de Dorival Caymmi, Ary Barroso é dos compositores brasileiros aquele que mais levou a imagem da boa terra à imortalidade da música popular.
O seu amor pela Bahia nasceu de uma viagem que fez em 1929. Essa viagem revelou a ele um mundo novo desconhecido até então, e que povoou a sua imaginação pelo resto da vida. Sérgio Cabral, biógrafo do compositor, assim descreve como se deu essa relação de amor pela Bahia: “Nenhuma viagem foi tão importante para o compositor do que a de janeiro de 1929. Ary Barroso ficou, literalmente, apaixonado pela Bahia. Tão apaixonado que nenhum autor – nem o baiano Dorival Caymmi – fez tantas músicas exaltando a boa terra. Como confessou numa das suas obras-primas, Na baixa do sapateiro, a Bahia jamais lhe saiu do pensamento. Em entrevista à revista Manchete, em dezembro de 1962, falou dos efeitos da magia baiana na sua obra de compositor: ‘Outro erro em que incidem é o de suporem que descobri musicalmente a Bahia. Não é verdade. Eu é que me descobri na Bahia. Os seus ritmos, os seus candomblés, suas capoeiras, sua gente em geral, foram uma revelação para mim. Fiquei de tal modo impressionado que o jeito foi exteriorizar a minha admiração através da música. Mas, antes de mim, Pixinguinha já havia composto dois ou três sambas sobre a boa terra. Um deles dizia: Ah! Eu queria ir uma vez à Bahia... Depois veio o Dorival Caymmi, cantando as praias, os coqueiros, os pescadores, a Lagoa de Itapuã’” 1.
O pesquisador transcreve no livro uma carta do compositor, onde ele relata à sua esposa, Ivone, como foi que se deu este encontro com a Bahia: “(...) A primeira coisa que fiz quando aqui cheguei foi visitar a igreja do Bonfim. Fiquei abismado de ver tanto milagre praticado por ele. Mais de 200 muletas de paralíticos que se curaram ali; uma infinidade de retratos, com declarações das pessoas que foram beneficiadas pelo Senhor do Bonfim. Uma coisa formidável. Fiz ali uma fervorosa oração pela nossa felicidade – e pelo meu futuro. Saí da igreja com o coração alegre, por ter podido cumprir essa obrigação. Troquei lá essas fitinhas que te mando. São bentas e milagrosas. Aqui, chamam-nas de ‘medidas do Senhor do Bonfim’. Servem para um caso de moléstia e para serem atadas à cabeceira da cama. São de um poder extraordinário” 2.
Aqui está a gênese do samba Faixa de Cetim: um maravilhamento diante de muitos sinais da fé e dos milagres operados pelo Senhor do Bonfim. É possível notar que muitos aspectos dessa carta estarão presentes na estrutura do samba (como o pedido de felicidade, pelo futuro, pela promessa que se cumprirá, etc.).
Faixa de cetim: samba da promessa realizada e do ex-voto
Diante de tantos sinais visíveis da fé, Ary Barroso mostra-se tocado pelas muitas evidências e essa certeza o acompanha no seu retorno ao Rio de Janeiro. A impressão causada por sua viagem à Bahia e a visita de 1929 à Basílica do Senhor do Bonfim foi eternizada no samba intitulado Faixa de cetim, no qual o autor agradece as graças recebidas em vida e oferece um ex-voto ao Senhor do Bonfim, como forma de gratidão.
Faixa de cetim é um samba onde aparece explicitamente a relação “promessa e milagre”, pois há o reconhecimento de uma graça recebida (felicidade, carinho, afeto, vocação) e a entrega de um bem (a faixa de cetim que o cobriu quando criança) faz parte de uma prática uma vivência que contém uma estrutura estável, conforme observa a historiadora de arte Lélia Frota: “o momento da vicissitude que originou o voto; a manifestação do sobrenatural; a resolução do impasse; os preparativos para o cumprimento da promessa (encomenda ou execução de objeto pelo miraculado, confecção de vestimenta apropriada para o desempenho ritual, etc.) a peregrinação ao centro religioso sob a invocação do orago 3; e finalmente, o momento em que o crente concretiza a sua promessa, no espaço do sagrado do templo” 4.
O que mais chama a atenção é que quem dá a felicidade, a vocação, é Cristo, o Senhor do Bonfim, nosso padroeiro de coração, não o oficial, que é o missionário jesuíta São Francisco Xavier (1506-1552), padroeiro de Salvador e da Bahia, proclamado por Pio XII, que salvou a cidade de uma epidemia de colera morbus, no ano de 1855.
A resposta de toda a vida vem de Cristo e o autor reconhece que assim como somos, Ele responde e oferece certezas na vida, assim como expressa Ary Barroso neste samba.
Note que a vida é uma promessa que se realiza. Em especial essa música poderia ser a síntese de uma vida porque tudo o que foi pedido ao Senhor do Bonfim foi respondido por Ele no espaço de uma vida, que pode olhar para si e reconhecer-se como portador de uma esperança que foi realizada.
Bahia,
terra de luz e amor
Foi lá onde nasceu Nosso Senhor
Bahia de iaiá e ioiô
Da mãe preta carinhosa
Que no colo me embalou
Quando eu nasci
Na cidade baixa
Me enrolaram numa faixa
Cor de rosa de cetim
Quando eu cresci
Dei a faixa de presente
Pra pagar uma promessa
Ao meu Senhor do Bonfim
Pedi que me abrisse o caminho
Da felicidade
Pedi que me desse um carinho
Pra minha mocidade
Sou feliz,
Ninguém mais feliz que eu,
Bahia!
Senhor do Bonfim me atendeu
(Faixa de cetim, Ary Barroso, 1943)
Notas
[1] Cabral, Sérgio. No tempo de Ari Barroso. Lumiar Editora: Rio de Janeiro, 1993, pp.47-8
[2] Op. cit., p.48.
[3] O Santo da invocação que dá nome a uma capela ou templo (cf. dicionário Aurélio Século XXI, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1999)
[4] Frota, Lélia Coelho. Promessa e Milagre nas Representações coletivas de ritual católico, com ênfase sobre as tábuas pintadas de Congonhas do Campo, Minas Gerais. In Promessa e milagre no Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, Congonhas do Campo, Minas Gerais, Ministério da Educação e Cultura, Secretaria da Cultura, Fundação Nacional Pró Memória, Brasília, 1981, p. 22.
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Voto e ex-voto: promessa e milagre
O ex-voto é uma experiência de fé. É uma manifestação visível da fé popular que reconhece os milagres que recebeu, estabelecendo uma relação direta com o divino, onde há uma retribuição final, após alcançar uma graça. A experiência da promessa e do milagre atravessa os séculos. Câmara Cascudo assim se refere aos ex-votos: “Ex-voto. Do latim votum, coisa prometida. ‘O que se promete deve ser pago’, diz o ditado. Ex-voto é o que se promete ao santo de devoção para se receber a graça, ou o que se oferece por tê-la alcançado. Não é exclusivo do mundo católico; encontra-se em toda parte, tendo sido registrado desde a Antigüidade, entre os assírios. O ex-voto reflete tudo o que tem afligido ou exaltado o ser humano ao longo dos séculos; testemunho da fé que se fortaleceu com o sofrimento, um ex-voto pode ser: vela, foto, flor, partes do corpo feitas em cera, barro ou madeira, e outros objetos. Há também orações especiais para graças pedidas ou alcançadas. Muitas igrejas, no Brasil, têm sua sala de milagres, onde ficam expostos os ex-votos para o público visitante, inclusive os estudiosos” 1.
Lélia Coelho Frota, estudando os ex-votos de Congonhas do Campo (MG), nos oferece uma detalhada historiografia dessas manifestações de fé: “Promessa e milagre – voto e ex-voto – testemunham a reciprocidade de dons trocados entre o humano e o divino, no plano da organização religiosa. Através de ação corporal e/ou oferta material, o indivíduo agradece à entidade sobrenatural, que o acudiu em momento de vicissitude, o benefício recebido. Tal procedimento é verificável entre as mais diversas sociedades no curso da história. Das réplicas de membros do corpo humano, observadas nos templos egípcios pelos cronistas contemporâneos, aos textos impressos hoje nas páginas de periódicos brasileiros, cumprindo promessa feita ao Menino Jesus de Praga ou ao Divino Espírito Santo, a prática do voto e ex-voto é constatável através de usos socialmente estabelecidos. V.F.G.A (Votum fecit gratiam accepit, fez um voto e recebeu uma graça) é inscrição freqüente na epigrafia romana. O desempenho da promessa revela-se tanto individual como coletivo, quando vemos toda a população da cidade oferecer a Esculápio uma ilha inteira no Tibre, por haver livrado Roma da peste. Ainda em Roma encontra-se o pequeno navio, hoje transformado em fonte, de Santa Maria Alla Navicella, que atesta com inscrição o seu caráter votivo original. Toda uma secular iconografia serial de ex-votos pintados será localizada na região mediterrânea da Itália, irradiando-se pelas costas da França, Espanha e Portugal. As mesmas iniciais V.F.G.A. – constantes das numerosíssimas tabulae pictae romanas, se encontram regularmente nas pinturas votivas italianas dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, transcrevendo muitas vezes literalmente a frase latina, como registra Cervin (1968: 188). Na Idade Média vê-se francamente disseminada a prática votiva nas representações religiosas católicas. Igrejas e templos menores, erigidos em decorrência de promessa, são contemporâneos das grandes peregrinações que Emile Mâle (1952:26) indica serem forma de culto acrescentadora da iconografia da época, e que possuem estreita vinculação com o cumprimento de votos. Surgem freqüentes retábulos pintados, com o doador agradecendo à divindade a mercê obtida. Ligado comumente ao fato da preservação da vida do ofertante, o ex-voto associa de imediato a idéia de morte, constituindo o paralelismo destas duas noções um dos grandes pares de categorias antitéticas que presidem a sua expressão” 2.
Notas
[1] Cascudo, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro, 10ª edição, São Paulo: Global, 2001, p.220.
[2] Frota, Lélia Coelho. Promessa e Milagre nas Representações coletivas de ritual católico, com ênfase sobre as tábuas pintadas de Congonhas do Campo, Minas Gerais. In Promessa e milagre no Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, Congonhas do Campo, Minas Gerais, Ministério da Educação e Cultura, Secretaria da Cultua, Fundação Nacional Pró Memória, Brasília, 1981, pp. 17-19.
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