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Passos N.80, Março 2007

DOCUMENTO PAPA

“A alegria do Senhor é a vossa força”

por Bento XVI

Discurso do Papa Bento XVI à Cúria Romana para a apresentação dos Bons Votos de Natal. Sala Clementina do Palácio Apostólico. Sexta-feira, 22 de Dezembro de 2006.

O ano que chega ao fim permanece na memória com a marca profunda dos horrores da guerra que se verificou, quer perto da Terra Santa, quer em geral pelo perigo de um confronto entre culturas e religiões, um perigo que ainda ameaça este nosso momento histórico. O problema dos caminhos rumo à paz tornou-se, assim, um desafio de primária importância para quantos se preocupam com o homem. Isto é válido de modo especial para a Igreja, para a qual a promessa que acompanhou o seu início significa ao mesmo tempo uma responsabilidade e uma tarefa: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por ele amados” (Lc 2, 14).
Esta saudação do anjo aos pastores na noite do nascimento de Jesus, em Belém, revela uma ligação inseparável entre a relação dos homens com Deus e a sua relação recíproca. A paz na terra não se pode encontrar sem a reconciliação com Deus, sem a harmonia entre o céu e a terra. Esta correlação do tema “Deus” com o tema “paz” foi o aspecto determinante das quatro Viagens Apostólicas deste ano: gostaria de voltar a falar delas neste momento.

Na Polônia
Em primeiro lugar, a Visita Pastoral na Polônia, o país natal do nosso amado Papa João Paulo II. A viagem na sua pátria constituiu para mim um profundo dever de gratidão por tudo o que ele, durante os 25 anos do seu serviço, deu a mim pessoalmente e sobretudo à Igreja e ao mundo. O seu maior dom a todos nós foi a sua fé inabalável e a radicalidade da sua dedicação. Totus tuus era o seu mote: nele se refletia todo o seu ser.
Sim, ele em nada se preservou, deixou-se consumir até ao fim pela chama da fé. Assim, mostrou-nos como, enquanto homens do nosso hoje, se possa crer em Deus, no Deus vivo que se tornou próximo de nós. Mostrou-nos que é possível uma dedicação definitiva e radical de toda a vida e que, precisamente no doar-se, a vida se torna grande, ampla e fecunda.
Na Polônia, em todas as partes onde estive, encontrei a alegria da fé. Fiquei profundamente comovido pela grande cordialidade com que fui recebido em todas as partes. O povo viu em mim o sucessor de Pedro ao qual está confiado o ministério pastoral para toda a Igreja. Viam aquele ao qual, apesar de toda a debilidade humana, então como hoje está dirigida a palavra do Senhor ressuscitado: “Apascenta as minhas ovelhas” (cf. Jo 21, 15-19); viam o sucessor daquele ao qual Jesus disse perto de Cesaréia de Filipe: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a Minha Igreja” (Mt 16, 18). Pedro, em si, não era uma rocha, mas um homem frágil e inconstante. Mas o Senhor quis fazer precisamente dele a pedra e demonstrar que, através de um homem frágil, Ele mesmo edifica firmemente a sua Igreja e a mantém na unidade.

Força unificadora
Assim, a visita na Polônia foi para mim, no sentido mais profundo, uma festa da catolicidade. Cristo é a nossa paz que reúne os separados: Ele, além de todas as diversidades das épocas históricas e das culturas, é a reconciliação. Mediante o ministério petrino experimentamos esta força unificadora da fé que, sempre de novo, partindo de numerosos povos, edifica o único povo de Deus. Fizemos, realmente com alegria, esta experiência que, provindo de muitos povos, nós formamos o único povo de Deus, a sua santa Igreja. Por isso o ministério petrino pode ser o sinal visível que garante esta unidade e forma a unidade concreta. Por esta experiência comovedora de catolicidade desejo agradecer à Igreja na Polônia mais uma vez de modo explícito e de todo o coração.
Nos meus deslocamentos na Polônia não podia faltar a visita a Auschwitz-Birkenau, no lugar das atrocidades mais cruéis da tentativa de cancelar o povo de Israel, de vanificar desta forma também a eleição feita por Deus, de expulsar o próprio Deus da História. Foi para mim motivo de grande conforto ver aparecer no céu o arco-íris no momento em que eu, diante do horror daquele lugar, com a atitude de Job, gritava a Deus, abalado pelo receio da sua aparente ausência e, ao mesmo tempo, amparado pela certeza de que Ele, também no seu silêncio, não deixa de permanecer conosco. O arco-íris era como que uma resposta: “Sim, Eu estou aqui, e as palavras da promessa da Aliança, que pronunciei depois do dilúvio, também hoje são válidas” (cf. Gn 9, 12-17).

Na Espanha
A viagem a Valência, na Espanha, foi totalmente dedicada ao tema do matrimônio e da família. Foi belo ouvir, diante da assembléia de pessoas de todos os continentes, o testemunho de casais que abençoados por um grande número de filhos se apresentaram diante de nós e falaram dos respectivos caminhos no sacramento do matrimônio e no âmbito das suas famílias numerosas.
Não esconderam o fato de também terem tido dias difíceis, de terem atravessado tempos de crise. Mas precisamente na fadiga da suportação recíproca dia após dia, precisamente no aceitar-se sempre de novo no crisol dos afãs cotidianos, vivendo e sofrendo profundamente o sim inicial, precisamente neste caminho do “perder-se” evangélico, tinham maturado, tinham encontrado a si mesmos e tinham se tornado felizes.
O sim que tinham se prometido reciprocamente, na paciência do caminho e na força do sacramento com que Cristo os tinha ligado, tinha se tornado um grande sim diante de si mesmos, dos filhos, do Deus Criador e do Redentor Jesus Cristo. Assim, do testemunho destas famílias acrescentava-se uma onda de alegria, não de uma alegria superficial e mesquinha que se dissolve depressa, mas de uma alegria maturada também no sofrimento, de uma alegria que chega ao íntimo e redime verdadeiramente o homem. Diante destas famílias com os seus filhos, diante destas famílias nas quais as gerações se dão as mãos e o futuro está presente, o problema da Europa, que aparentemente quase não quer mais ter filhos, penetrou a minha alma.
Para o estrangeiro, esta Europa parece estar cansada, aliás, parece que se quer despedir da História. Por que acontece assim? Eis a grande pergunta. Certamente as respostas são muito complexas. Antes de procurar essas respostas é um dever agradecer aos numerosos casais que também hoje, na nossa Europa, dizem sim aos filhos e aceitam as fadigas a que isto obriga: os problemas sociais e financeiros, as preocupações e as canseiras dia após dia, a dedicação necessária para abrir aos filhos o caminho para o futuro. Mencionando estas dificuldades talvez também se tornem claras as razões pelas quais o risco de ter filhos parece demasiado grande.
A criança precisa de atenção amorosa. Isto significa: devemos dar-lhe um pouco do nosso tempo, do tempo da nossa vida. Mas, precisamente esta fundamental “matéria-prima” da vida, o tempo, parece faltar cada vez mais. O tempo que temos à disposição é suficiente apenas para a própria vida; como poderíamos cedê-lo, concedê-lo a outrém? Ter tempo e oferecer tempo é, para nós, uma maneira muito concreta para aprender a doar-se a si mesmos, a perder-se para se encontrar a si mesmos. A este problema acrescenta-se o cálculo difícil de quais normas somos devedores à criança para que siga o caminho justo e de que modo devemos, ao fazer isto, respeitar a sua liberdade. O problema também tornou-se muito difícil porque não temos mais a certeza de quais normas devemos transmitir; porque já não sabemos qual seja o uso justo da liberdade, qual o modo justo de viver, o que é moralmente um dever e o que, ao contrário, é inadmissível.

A certeza da fé
O espírito moderno perdeu a orientação, e esta falta de orientação impede-nos de sermos para outros indicadores do caminho reto. Aliás, a problemática é ainda mais profunda. O homem de hoje é inseguro acerca do futuro. Pode-se admitir enviar alguém neste futuro incerto? Em conclusão, é bom ser homem? Esta profunda insegurança acerca do próprio homem em paralelo com a vontade de ter a vida toda para si é talvez a razão mais profunda, pela qual o risco de ter filhos para muitos apresenta-se como algo que já não é sustentável.
De fato, podemos transmitir a vida de modo responsável unicamente se somos capazes de transmitir algo mais do que a simples vida biológica, isto é, um sentido que resista também nas crises da História vindoura e uma certeza na esperança que seja mais forte do que as nuvens que obscurecem o futuro. Se não aprendermos de novo os fundamentos da vida, se não descobrirmos de maneira renovada a certeza da fé, ser-nos-á cada vez menos possível confiar aos outros o dom da vida e a tarefa de um futuro desconhecido. Por fim, relacionado com isto, está também o problema das decisões definitivas: pode o homem ligar-se para sempre? Pode dizer um sim para toda a vida? Sim, pode. Ele foi criado para isto. Precisamente assim se realiza a liberdade do homem e assim se cria também o âmbito sagrado do matrimônio que se alarga tornando-se família e constrói o futuro.
A este ponto não posso deixar de manifestar a minha preocupação pelas leis sobre os casais de fato. Muitos destes casais escolheram esta vida porque, pelo menos no momento, não se sentem capazes de aceitar a convivência juridicamente ordenada e vinculante do matrimônio. Assim, preferem permanecer no simples estado de fato. Quando são criadas novas formas jurídicas que relativizam o matrimônio, a renúncia ao vínculo definitivo obtém, por assim dizer, também uma marca jurídica. Neste caso, quem já tem dificuldade, tomar uma decisão torna-se ainda mais difícil. Depois acrescenta-se, para a outra forma de casais, a relativização da diferença dos sexos. Desta forma, é igual o estar juntos de um homem e de uma mulher ou de duas pessoas do mesmo sexo.
Com isto são implicitamente confirmadas aquelas teorias funestas que privam de qualquer importância a masculinidade e a feminilidade da pessoa humana, como se se tratasse de um fato meramente biológico; teorias segundo as quais o homem, isto é, o seu intelecto e a sua vontade, decidiria autonomamente sobre o que ele é ou não é. Há nisto um aviltamento da corporeidade, do qual deriva que o homem, pretendendo emancipar-se do seu corpo da “esfera biológica” termina por se destruir a si mesmo. A quem diz que a Igreja não deveria interferir nestes assuntos, nós podemos apenas responder: porventura não nos interessamos pelo homem? Os crentes, em virtude da grande cultura da sua fé, não têm porventura o direito de se pronunciarem sobre tudo isto? Não é, aliás, o nosso dever levantar a voz para defender o homem, aquela criatura que, precisamente na unidade inseparável de corpo e alma, é imagem de Deus? A viagem a Valência foi para mim uma viagem na busca do que significa ser homem.

Na Alemanha
Prossigamos mentalmente rumo à Baviera München, Altötting, Regensburg, Freising. Ali pude viver dias inesquecivelmente belos de encontro com a fé e com os fiéis da minha pátria. O grande tema da minha viagem na Alemanha era “Deus”. A Igreja deve falar de muitas coisas: de todas as questões relacionadas com o ser humano, da própria estrutura e do próprio ordenamento, e assim por diante. Mas o seu tema verdadeiro e, sob certos aspectos, único, é “Deus”. E o grande problema do Ocidente é o esquecimento de Deus: é um esquecimento que se difunde.
Definitivamente, cada um dos problemas podem ser reconduzidos a esta pergunta, disto estou certo. Por isso, naquela viagem a minha intenção principal era colocar bem em realce o tema “Deus”, recordando-me também do fato de que em algumas partes da Alemanha vive uma maioria de não-batizados, para os quais o cristianismo e o Deus da fé parecem coisas que pertencem ao passado. Ao falar de Deus, tocamos também precisamente o assunto que, na pregação terrena de Jesus, constituía o seu interesse central. O tema fundamental dessa pregação é o domínio de Deus, o “Reino de Deus”.
Com isto não se expressa algo que acontecerá uma vez ou outra num futuro indeterminado. Nem sequer se compreende com isto aquele mundo melhor que procuramos criar passo após passo com as nossas forças. Na palavra “Reino de Deus”, a palavra “Deus” é o genitivo subjetivo. Isto significa: Deus não é um acréscimo ao “Reino” que, talvez, se poderia também ignorar. Deus é o sujeito. Reino de Deus significa dizer na realidade: Deus reina. Ele mesmo está presente e é determinante para os homens no mundo. Ele é o sujeito, e onde falta este sujeito nada permanece da mensagem de Jesus. Por isso Jesus diz-nos: O Reino de Deus não vem de modo que se possa, por assim dizer, pôr-se na beira da estrada a observar a sua chegada. “Está no meio de vós!” (cf. Lc 17, 20s.).

“O sacerdócio” e o “diálogo”
Ele desenvolve-se onde é realizada a vontade de Deus. Está presente onde há pessoas que se abrem à sua chegada e assim deixam que Deus entre no mundo. Por isso é o Reino de Deus em pessoa: o homem no qual Deus está no meio de nós e através do qual nós podemos tocar Deus, aproximar-nos de Deus. Onde isto acontece, o mundo salva-se.
Com o tema de Deus estavam e estão relacionados dois temas que deram uma marca aos dias da visita na Baviera: “o sacerdócio” e o “diálogo”. Paulo chama Timóteo – e nele o Bispo e, em geral, o sacerdote – “homem de Deus” (1 Tm 6, 11). É esta a tarefa central do sacerdote: levar Deus aos homens. Certamente pode fazê-lo apenas se ele mesmo provém de Deus, se vive com e por Deus. Isto é expresso maravilhosamente num versículo de um Salmo sacerdotal que nós, a velha geração, pronunciamos durante a admissão ao estado clerical: “O Senhor é parte da minha herança e meu cálice: nas tuas mãos está a minha vida” (Sl 16 [15], 5). O orante-sacerdote deste Salmo interpreta a sua existência a partir da forma da distribuição do território estabelecida no Deuteronômio (cf. 10, 9). Depois da tomada de posse da Terra, cada tribo obtém, por meio do sorteio, a sua porção da Terra santa e, com isto, participa do dom prometido ao pai Abraão. Só a tribo de Levi não recebe terreno algum: a sua terra é o próprio Deus. Esta afirmação tinha certamente um significado totalmente prático. Os sacerdotes não viviam, como as outras tribos, da cultivação da terra, mas das ofertas. Contudo, a afirmação é mais profunda. O verdadeiro fundamento da vida do sacerdote, o solo da sua existência, a terra da sua vida é o próprio Deus. A Igreja, nesta interpretação antico-testamentária da existência sacerdotal – uma interpretação que emerge repetidamente também no Salmo 118 [119] – viu com razão a explicação do que significa a missão sacerdotal no seguimento dos Apóstolos, na comunhão com o próprio Jesus. O sacerdote pode e deve dizer também hoje com o levita: “Dominus pars hereditatis meae et calicis mei”.
O próprio Deus é a minha parte de terra, o fundamento externo e interno da minha existência. Esta teocentricidade da existência sacerdotal é necessária precisamente no nosso mundo totalmente funcionalista, no qual tudo está fundado sobre prestações calculáveis e verificáveis. O sacerdote deve conhecer verdadeiramente Deus a partir de dentro e assim levá-lo aos homens: este é o serviço prioritário do qual a humanidade de hoje tem necessidade. Se numa vida sacerdotal se perde esta centralidade de Deus, esvazia-se pouco a pouco também o zelo do agir. No excesso das coisas externas falta o centro que dá sentido a tudo e o reconduz à unidade. Ali falta o fundamento da vida, a “terra”, sobre a qual tudo isto pode estar e prosperar.
O celibato, que está em vigor para os Bispos em toda a Igreja oriental e ocidental e, segundo uma tradição que remonta a uma época próxima da dos Apóstolos, para os sacerdotes em geral na Igreja latina, pode ser compreendido e vivido, em suma, só em base a esta orientação de fundo. As razões apenas pragmáticas, a referência à maior disponibilidade, não são suficientes: esta maior disponibilidade de tempo poderia facilmente tornar-se também uma forma de egoísmo, que se poupa aos sacrifícios e às fadigas exigidas pelo aceitar-se, pelo suportar-se reciprocamente no matrimônio; poderia assim levar a um empobrecimento espiritual ou a uma dureza de coração.

Deus como realidade
O verdadeiro fundamento do celibato pode estar contido apenas na frase: Dominus pars – Tu és a minha terra. Pode ser apenas teocêntrico. Não pode significar permanecer privados de amor, mas deve significar deixar-se arrebatar pela paixão por Deus, e aprender depois, graças a um estar com Ele mais íntimo, a servir também os homens. O celibato deve ser um testemunho de fé: a fé em Deus torna-se concreta naquela forma de vida que só tem sentido a partir de Deus. Apoiar a vida nEle, renunciando ao matrimônio e à família, significa que acolho e experimento Deus como realidade e, por isso, posso levá-lo aos homens. O nosso mundo que se tornou totalmente positivista, no qual Deus entra em jogo no máximo como hipótese, mas não como realidade concreta, precisa deste apoiar-se em Deus do modo mais concreto e radical possível. Tem necessidade do testemunho por Deus que se encontra na decisão de acolher Deus como terra sobre a qual se funda a própria existência. Por isso o celibato é tão importante precisamente hoje, no nosso mundo atual, mesmo se o seu cumprimento nesta nossa época está continuamente ameaçado e posto em questão.
É necessário uma preparação cuidadosa durante o caminho rumo a este objetivo; um acompanhamento persistente da parte do Bispo, de amigos sacerdotes e de leigos, que apoiem juntos este testemunho sacerdotal. É necessária a oração que invoca incessantemente Deus como o Deus vivo e se apoia nEle, quer nas horas de confusão, quer nos momentos de alegria. Desta forma, contrariamente ao trend cultural que procura convencer-nos que não somos capazes de tomar tais decisões, este testemunho pode ser vivido e assim, no nosso mundo, pode voltar a pôr em jogo Deus como realidade.

Compromisso comum
O outro grande tema relacionado com o tema Deus é o do diálogo. O círculo interno do complexo diálogo que hoje é necessário, o compromisso comum de todos os cristãos pela unidade, tornou-se evidente nas Vésperas ecumênicas na Catedral de Regensburg, onde além dos irmãos e irmãs da Igreja católica, pude encontrar muitos amigos da Ortodoxia e do Cristianismo Evangélico. Na recitação dos Salmos e na escuta da Palavra de Deus estávamos ali todos reunidos, e não é insignificante que esta unidade nos tenha sido doada. O encontro na Universidade era dedicado ao que é próprio daquele lugar: o diálogo entre fé e razão.
Por ocasião do meu encontro com o filósofo Jürgen Habermas, há alguns anos em München, ele dissera que teriam sido necessários pensadores capazes de traduzir as convicções cifradas da fé cristã na linguagem do mundo secularizado para as tornar eficazes de modo novo. De fato torna-se cada vez mais evidente, como o mundo tem urgentemente necessidade do diálogo entre fé e razão. Emanuel Kant, na sua época, tinha visto expressa a essência do Iluminismo na expressão sapere aude: na coragem do pensamento que não se deixa colocar em embaraço por preconceito algum. Pois bem, a capacidade cognitiva do homem, o seu domínio sobre a matéria mediante a força do pensamento, fez entretanto progressos então inimagináveis. Mas o poder do homem, que lhe cresceu nas mãos graças à Ciência, torna-se cada vez mais um perigo que ameaça o próprio homem e o mundo.
A razão totalmente orientada para se apoderar do mundo já não aceita limites. Ela já chegou ao ponto de tratar o próprio homem como simples matéria do seu produzir e do seu poder. O nosso conhecimento aumenta, mas ao mesmo tempo verifica-se um progressivo ofuscamento da razão acerca dos próprios fundamentos; acerca dos critérios que lhe conferem orientação e sentido. A fé naquele Deus que é em pessoa a Razão criadora do universo deve ser aceite pela Ciência de modo novo como desafio e oportunidade.
Reciprocamente, esta fé deve reconhecer de novo a sua amplidão intrínseca e o seu próprio bom senso. A razão precisa do Logos que está no início e é a nossa luz; a fé, por seu lado, tem necessidade do diálogo com a razão moderna, para se dar conta da própria grandeza e corresponder às próprias responsabilidades. Foi isto que procurei ressaltar na minha lição em Regensburg. É uma questão que não é absolutamente apenas de natureza acadêmica; nela trata-se do futuro de todos nós.
Em Regensburg o diálogo entre as religiões foi tratado apenas marginalmente e sob um duplo ponto de vista. A razão secularizada não é capaz de entrar num verdadeiro diálogo com as religiões. Se permanece fechada perante a questão de Deus, isso acabará por levar ao conflito entre as culturas. Outro ponto de vista referia-se à afirmação que as religiões devem encontrar-se na tarefa comum de si, porém, ao serviço da verdade e, por conseguinte, do homem.

Na Turquia
A visita à Turquia ofereceu-me a ocasião para ilustrar também publicamente o meu respeito pela religião islâmica, um respeito, de resto, que o Concílio Vaticano II (cf. Decl. Nostra aetate, 3), nos indicou como atitude obrigatória. Gostaria neste momento de expressar mais uma vez a minha gratidão às Autoridades da Turquia e ao povo turco, que me acolheu com tão grande hospitalidade e me ofereceu dias inesquecíveis de encontro.
Num diálogo a ser intensificado com o Islã deveríamos ter presente o fato de que o mundo muçulmano se encontra hoje com grande urgência diante de uma tarefa muito semelhante à que foi imposta aos cristãos a partir dos tempos do Iluminismo e que o Concílio Vaticano II, como fruto de uma longa pesquisa fadigosa, levou a soluções concretas para a Igreja católica. Trata-se da atitude que a comunidade dos fiéis deve assumir face às convicções e às exigências que se afirmaram no Iluminismo.
Por um lado, devemos contrapor-nos a uma ditadura da razão positivista que exclui Deus da vida da comunidade e das organizações públicas, privando assim o homem dos seus específicos critérios de medida. Por outro lado, é necessário aceitar as verdadeiras conquistas do Iluminismo, os direitos do homem e especialmente a liberdade da fé e da sua prática, reconhecendo neles elementos fundamentais também para a autenticidade da religião.

A justa posição da fé
Como na comunidade cristã houve uma longa busca acerca da justa posição da fé face àquelas convicções, uma busca que certamente nunca será concluída definitivamente, assim também o mundo islâmico com a própria tradição se encontra perante a grande tarefa de encontrar em relação a isto as soluções adequadas. O conteúdo do diálogo entre cristãos e muçulmanos será, neste momento, sobretudo o de se empenhar neste compromisso para encontrar as soluções justas. Nós, cristãos, sentimo-nos solidários com quantos, precisamente com base na sua convicção religiosa de muçulmanos, se empenham contra a violência e pela sinergia entre fé e razão, entre religião e liberdade. Neste sentido, os dois diálogos de que falei completam-se reciprocamente.
Em Istambul, por fim, pude viver mais uma vez horas felizes de proximidade ecumênica no encontro com o Patriarca ecumênico Bartolomeu I. Há alguns dias ele escreveu-me uma carta cujas palavras de gratidão provenientes do fundo do coração me fizeram reviver a experiência de comunhão daqueles dias. Experimentamos o ser irmãos não só com base em palavras e acontecimentos históricos, mas do fundo do coração; de estarmos unidos pela fé comum dos Apóstolos até dentro do nosso pensamento e sentimento pessoal. Fizemos a experiência de uma unidade profunda na fé e rezaremos ao Senhor ainda com mais insistência para que nos conceda depressa também a plena unidade na comum fração do Pão.
A minha gratidão profunda e a minha oração fraterna dirigem-se neste momento ao Patriarca Bartolomeu e aos seus fiéis, assim como às diversas comunidades cristãs que pude encontrar em Istambul. Esperamos e rezamos para que a liberdade religiosa, que corresponde à natureza íntima da fé e é reconhecida pelos princípios da constituição turca, encontre tanto nas formas jurídicas adequadas como na vida cotidiana do Patriarcado e das outras comunidades cristãs, uma realização prática cada vez mais crescente.
Et erit pax, tal será a paz, diz o profeta Miqueias (5, 4) acerca do futuro dominador de Israel, do qual anuncia o nascimento em Belém. Aos pastores que apascentavam as suas ovelhas nos campos em redor de Belém os anjos disseram: o Esperado chegou. “Paz na terra aos homens” (Lc 2, 14). Ele mesmo, Cristo, o Senhor, disse aos seus discípulos: “Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz” (Jo 14, 27). Desenvolveu-se destas palavras a saudação litúrgica: “A paz esteja convosco”. Esta paz que é comunicada na liturgia é o próprio Cristo. Ele doa-se a nós como a paz, como a reconciliação além de qualquer fronteira. Onde ele é acolhido crescem ilhas de paz.
Nós homens teríamos desejado que Deus eliminasse de uma vez para sempre as guerras, destruísse as armas e estabelecesse a paz universal. Mas devemos aprender que não podemos alcançar a paz unicamente do exterior com estruturas e que a tentativa de a estabelecer com a violência conduz unicamente e sempre a novas violências. Devemos aprender que a paz, como dizia o anjo de Belém, está relacionada com a eudokia, com o abrir-se dos nossos corações a Deus. Devemos aprender que a paz só pode existir se forem superados o ódio e o egoísmo a partir de dentro.
O homem deve ser renovado a partir do seu interior, deve tornar-se novo, diverso. Assim, a paz neste mundo permanece sempre débil e frágil. Nós sofremos com isto. Precisamente por isso somos ainda mais chamados a deixar-nos invadir interiormente pela paz de Deus, e a levar a sua força ao mundo. Na nossa vida deve realizar-se o que no Batismo aconteceu em nós sacramentalmente: o morrer do homem velho e assim o ressurgir do novo. E rezaremos sempre de novo ao Senhor com toda a insistência: Comove tu os corações! Torna-nos homens novos! Ajuda a fim de que a razão da paz vença a irracionalidade da violência! Torna-nos portadores da tua paz! Obtenha-nos esta graça a Virgem Maria, à qual confio vós e o vosso trabalho. Bom Natal e bons votos também para o Ano Novo.

© Copyright 2006 - Libreria Editrice Vaticana

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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