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Passos N.79, Fevereiro 2007

SOCIEDADE - América Latina / CDO

Razon de vivir - Sementes de vida lançadas em todo lugar

por Roberto Fontolan

Enquanto os países sul-americanos elegiam presidentes ou assistiam ao declínio de economias inteiras, nasciam novas formas de vida que testemunham uma mudança. A Assembléia da Companhia das Obras foi um pequeno ponto na imensidão das necessidades da América Latina, reunindo mais de 500 pessoas, de 10 a 12 de novembro, em Santiago, para três dias de diálogo e de juízo

Uma canção argentina, Razon de vivir, foi cantada de modo magistral na sala da Universidade Católica de Santiago, no Chile. É um canto de amor, doce e apaixonado, cheio de arrebatamento pelo amado e que fala de espera, interesse, paixão e do próprio sentido do tempo que passa. A Assembléia começou de imediato. As perguntas choviam sobre o palco onde estavam sentados Bolivar Aguayo, que dirige a Companhia das Obras (CdO) da América Latina; Raffaello Vignali, presidente da CdO e Giorgio Vittadini, diretor da Fundação pela Subsidiariedade. No segundo dia, durante a terceira sessão de trabalhos, o encontro, que Bolivar organizou com muita determinação, teve seu ápice. Tudo girou em torno do tema da obra: o que a gera, como amadurece, qual o seu objetivo, se realmente é capaz de responder às necessidades, se se torna frágil, se é um fator de desgaste, se é pequena, se vai à falência, se divide em vez de unir, se desilude em vez de potencializar. Descrições de experiências ao mesmo tempo mínimas e grandiosas; aventuras dolorosas e entusiasmadas; histórias densas de amizade e de luta. E muitas surpresas. Incontáveis fatos inesperados e desconhecidos, acontecidos quem sabe como e quem sabe quando e, depois, relatados aqui, na bela capital chilena, em um encontro intenso e sem pausas que teve início no dia 10 de novembro, com uma programação que não conseguiu, evidentemente, se ater aos conteúdos previstos.

Um fervilhar de obras
Enquanto a América Latina elegia novos presidentes e assistia ao declínio de economias inteiras, enquanto uma Europa cada vez mais paralisada e uma América do Norte cada vez mais hipnotizada pelo Islã indagavam, enquanto se percebia o vento de novos nacionalismos e se curvava diante das eternas misérias, enquanto se via a transformação da Itália (que não possui mais uma política nem uma economia para a América Latina) e o agigantar-se da Espanha, enquanto se combatia os tráficos de todo gênero e se deixava enredar por tráficos de todo gênero... Enquanto esses episódios aconteciam e novas modas se afirmavam, sementes de vida, lançadas em todos os lugares, frutificavam. Hoje, no inventário dessa parte do continente americano, encontramos escolas, creches, laboratórios, centros de saúde, uma clínica para doentes terminais, enfermarias, centros de ajuda à vida, programas de assistência alimentar e de higiene, de reestruturação urbana, de ajuda aos incapacitados, de formação profissional, bancos alimentares, estruturas e redes de acolhida, escritórios de advocacia, sociedade de consultoria, serviços à empresa e à pessoa, estudos profissionais, artistas, artesanato, colocação trabalhista, importação-exportação, trabalhos agro-alimentares, tecnologia, turismo, vinho, automação industrial, rádio e portais de informação. Mais de 500 pessoas foram a Santiago para falar sobre as obras de uma América Latina que nunca pára de mudar, mesmo que quem esteja no outro hemisfério não perceba. São 132 iniciativas no ramo empresarial, 58 no do trabalho, 71 na universidade, 114 na educação, 47 na saúde, 72 sem fins lucrativos e 39 no âmbito da política.

Os testemunhos
A Assembléia foi colocada no centro da programação, depois da abertura de Bolivar e de Vittadini, e de um primeiro round de encontros plenários com mesas redondas e grupos de trabalho temáticos.
Da Colômbia: “Acolho 50 crianças em uma pequena obra. Mas as crianças em risco, que vivem em condições extremas, são mais de um milhão. E não sei o que fazer”. Do Brasil: “Muitas vezes, nos descobrimos vítimas do nosso próprio ativismo, na tentativa quase desesperada de resolver os problemas”. Da Argentina: “Éramos piqueteiros, protagonistas e vítimas de um protesto infinito e habitual ao governo. Não agüentávamos mais não ser independentes, não ter um trabalho; procurei novos caminhos e aqui estou”. Do Paraguai: “Nossa escola começou com uma sala e uma professora. Nasceu para responder ao pedido de algumas famílias. Depois, ano após ano, chegamos a oito anos de ensino”. Do Chile: “Quais são as perspectivas, que passos devemos dar?”.
O ponto que Vittadini salientou várias vezes é que a obra não é uma questão de dimensão e não deve ser medida pela capacidade de resolver as necessidades. E que, em termos de consciência, à obra que já existe não falta nada, realmente nada. “Na obra, nas vossas obras, já existe tudo. E esse tudo é a experiência de um sujeito livre. Uma forma de vida nova que testemunha a mudança. Com certeza, é apenas um ponto diante da imensidão das necessidades e da pobreza. Mas, neste ponto, todo o nosso eu está compreendido, toda a nossa liberdade se exprime. A plenitude humana, a libertação, não chega depois, não está no fim de um caminho. Acontece agora, ou nunca. Você não pode dizer para suas 50 crianças que não adianta nada fazer algo por elas porque existem mais um milhão delas que sofrem. Aquelas lhe foram dadas, ame-as. A salvação delas é a salvação do mundo.”

Civilidade: companhia de homens
Os beneditinos dos mosteiros medievais, os jesuítas das Reducciones barrocas – história excepcional e esquecida por todos, até pelos homens da Igreja – servem de exemplo e de inspiração. A civilidade floresceu a partir de uma companhia de homens que não deixavam que os limites nem as contradições os impedissem, nem mesmo paravam na percepção da desproporção. Então, não fiquem presos pela ânsia dos projetos e das perspectivas. “Existir é o modo de construir”, conclui Vignali.
Esta obra, este ponto, este início de sociedade nova é a alternativa real em uma América Latina onde brilham os ídolos do estadismo e o horizonte do pensamento é, ainda hoje, fortemente impregnado pela Teologia da Libertação ou pela fuga do espiritualismo individualista. Atenção, não é o “projeto” de uma alternativa, mas é uma alternativa em ato, real e tão crível porque não prevista, não elaborada na universidade ou nos jornais. Nascida de homens e mulheres simples, de famílias como as outras, a rede de obras latino-americana estende-se de modo desigual e imperfeito, seguindo as trajetórias desordenadas e imprevisíveis da vida. Aos 50 anos, o brasileiro Benedito, pai de quatro filhos, adotou um quinto e faz parte, assim, da obra Famílias para a Acolhida que, agora, está no Brasil e na Argentina. A sua história nasceu a partir da Casa Novella de Belo Horizonte, uma casa-família para crianças abandonadas ou em situação de risco, e muda de direção quando uma amiga que trabalha ali como voluntária lhe conta sobre as orações noturnas das crianças: “Dá-nos, ó Senhor, um pai e uma mãe de verdade”.

O desafio
Marta não gostava muito do Paraguai, seu país natal: já se formou há alguns anos e imaginava um futuro em uma organização internacional trabalhando como diretora de projetos na área da saúde. Mas os amigos a desafiaram: leve seu país a sério, leve-nos a sério. Marta fica e começa a trabalhar para o Banco de Alimentos (uma idéia um pouco maluca para quem conhece o Paraguai): no terceiro ano de atividade, ajudam 65 instituições de caridade e têm convênio com as empresas DHL e Unilever. No Chile, fundaram a Edudown, uma obra de ajuda a crianças de zero a seis anos portadoras da síndrome de Down. Psicomotricidade, fonoaudiologia e kinesiologia: sessões cotidianas de educação com o objetivo de favorecer a integração das crianças na escola. Os serviços da estrutura – localizada em um bairro de periferia – são totalmente gratuitos e ajudam famílias que, de outra forma, estariam condenadas à exclusão. A fantasia dos criadores da Edudown convenceu dezesseis mil (16.000!) pessoas a se associarem ao sistema de financiamento: graças a um convênio, quem possui cartões de crédito emitidos por grandes lojas e por um determinado banco, destinam à escola uma pequena cota das despesas mensais. Hoje, cem crianças são assistidas pelo centro e, num futuro próximo, serão 400.
Impossível numerar todas as iniciativas ou ter noção da dedicação, do envolvimento, do fervilhar de encontros e de possibilidades. As obras da América Latina, aqueles “pontos de vida nova” vividos com o realismo de quem sabe que mora no continente mais contraditório, vital e emotivo do mundo, expressam juventude e universalidade. Do Meeting de Santiago, a CdO já tem novo encontro marcado no Meeting de Rímini.

AGENDA

A vez da América Latina


Este é o terceiro Meeting da CdO na América Latina. O primeiro, aconteceu no Rio de Janeiro, em 2003, e o segundo, em Buenos Aires, em 2005. “Cada encontro nos revelou um crescimento, mas o que vemos hoje, é realmente surpreendente”, disse o diretor, Bolivar Aguayo, no encerramento. “E exatamente por isso, devemos crescer como consciência, como conhecimento.” Os trabalhos foram divididos em relações e mesas redondas, de forma plenária, e sessões temáticas em sete grupos de trabalho sobre: empresa, trabalho, associações sem fins lucrativos, educação, universidade, saúde e política. As mesas redondas tiveram a participação de responsáveis por obras com ou sem fins lucrativos (como a brasileira Gisela Solymos, diretora do Centro de Recuperação e Educação Nutricional – Cren – de São Paulo, programa de educação e assistência pediátrica que acompanha 250 crianças; o venezuelano Alejandro Matiur, que dirige uma empresa de tecnologia e o italiano Giambattista Bolis, da universidade peruana Sedes Sapientiae) que discutiram com políticos (como o subsecretário do trabalho do governo chileno, Zarko Luksic) e empresários (o brasileiro Mario Garnero e o chileno Juan Francisco Lecaros). “A vez da América Latina” foi o título de uma esperada investigação política que teve como participantes Roberto Formigoni, Governador da Região da Lombardia (Itália), em conexão via satélite, e o ex-senador chileno Josè Viera Gallo, que falaram sobre as perspectivas de um continente atormentado pelos velhos males e pelo novo nacionalismo e, no entanto, cheio de esperança por um desenvolvimento considerável da identidade latino-americana. A Igreja chilena também manifestou toda a sua cordialidade ao trabalho da Companhia das Obras, pela presença do Bispo Auxiliar de Santiago, Riccardo Ezzati.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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