Uma tarde de verão. Depois, a “revolução” no Brasil. Até a ruptura. Um dos primeiros participantes do Movimento relembra o encontro que não “o deixou mais em paz”. E o melhor, que aconteceu depois...
O Movimento é feito de pessoas que estão juntas para verificar a promessa de Cristo: “Quando dois ou três se reunirem em meu nome, eu estarei com eles”. Luciano Di Pietro, um dos primeiros membros de CL (na época chamava-se Gioventù Studentesca - GS) que partiu como missionário para o Brasil, hoje jornalista formado, nunca deixou de pensar assim da companhia que nasceu com Dom Giussani. “Não quero parecer um dos apóstolos, mas lembro-me a hora e o lugar do ‘chamado’. Eram 15h30 de uma tarde do final de verão de 1960, depois da quinta série, quando um amigo me convidou para ir a Varigotti: tinha surgido uma vaga. O que dizer? Fui tocado por um padre que via pela primeira vez, e por suas palavras, pelos silêncios, pelos cantos, pelas caminhadas até a torre do mar, pela ‘atenção ao outro’, como se dizia... Não poderia saber que tudo isso era o encontro com Cristo. Digamos que foi o encontro com uma doçura afetuosa e resplandecente. Desde então, passou-se meio século; com altos e baixos, com neblina e luz, com sussurros e gritos, o bom Cristo sempre tomou iniciativa, nunca me deixou em paz. Aliás, nunca nos deixou em paz, nem eu nem Luisella, minha mulher, que conheci no colégio um ano depois. Se tenho alguma nostalgia é que a história e provavelmente a índole levou-nos a viver um pouco solitários, transformando em desejo a experiência evocada pelas palavras do salmo: Como é doce e suave que os irmãos vivam juntos. ”
Muitas vezes, quando ouvimos falar desses jovens que partiram em 1964 para a América do Sul, corremos o risco de congelá-los naquele instante, e acabamos perdendo o melhor deles, que é o que veio depois. Porém, pensando neles hoje, ficamos impressionados. Jovens de dezoito anos, que tinham acabado de conhecer Dom Giussani, decidem largar tudo e partir. “Menos de três anos depois daquele encontro de Varigotti, no verão de 1963, com uma expressão decidida, digna do sopro do Espírito Santo (e com a silenciosa generosidade de meu pai que financiou minha ‘mudança’), juntei-me a uma companhia incrível para uma viagem ao Brasil: Dom Giussani em pessoa, o pintor William Congdon, Maretta Campi e Marcello Candia, hoje prestes a se tornar beato. Eu era um jovem de dezoito anos e ficava quieto, escutando, e havia muito para escutar. Naquela época, Dom Giussani viajava pelo Brasil, travando conhecimentos cada vez mais estreitos com personagens daquele país, tendo tido contatos anteriores que eu obviamente não conhecia.”
O bispo de Belo Horizonte aceitou, desejou e pediu a presença do Movimento. “E, assim, partimos em janeiro de 1964, em três – Pigi Bernareggi, Paolo Padovani e eu –, com destino ao seminário, para onde já tinha ido Alberto Antoniazzi. Não faltava a ‘ala laica’, com as jovens Nicoletta, Lidia, Mariarita... E começou a aventura. Queremos dizer que foi uma decisão arriscada? Podemos dizer que também foi. O entusiasmo do Estado nascente tinha dentro de si uma generosidade talvez não completamente disposta a escutar a prudência, um dos dons que na época o Espírito Santo, por seu lado, doou com parcimônia. Chegamos, então, ao Brasil, nos primeiros dias de 1964. Em abril daquele ano, levantamo-nos uma manhã e nos vimos dentro do golpe militar.”
Armadura de monges. A promessa original foi imediatamente colocada à prova em um contexto muito difícil. “Um seminário no Brasil nos anos 60 era algo que estava entre tradição e revolução, entre o barroco colonial do ponto de vista estético e a falta de uma mínima precisão em relação à proposta. Tentávamos mantê-la viva entre nós, do Movimento. Levávamos adiante aquela experiência que nos tinha impulsionado, mas pelo menos como grupo, como comunidade, não conseguíamos. Precisávamos ter armadura de monges. De fato, o único que permaneceu daquela primeira experiência foi Pigi Bernareggi, que sempre teve uma aparência de monge cisterciense. Foi em missão por santa obediência. Ouvia-se, naqueles dias, slogans do tipo: ‘Primeiro damos o pão, depois daremos Cristo!’. Nós colocávamos a nossa posição. Por instinto, de fato, nosso ensinamento era o contrário: ‘Cristo pensará em alguma maneira de dar o pão’. Só Cristo conseguiu, de fato, comunicar uma unidade de mensagem onde o pão e Deus são a mesma coisa. A Eucaristia significa exatamente isto. Mas a nossa, era uma pequena semente e foi retirada da terra árida daquelas contradições. Um fato, aparentemente banal, tocou-me de modo particular: todos tivemos amebíase e, graças ao Movimento, fomos tratados em um hospital de ricos. Os brasileiros, ao contrário, afetados pela mesma doença, a arrastavam pela vida e, algumas vezes, nunca se curavam. Naquela circunstância, pareceu-me constatar definitivamente uma diferença sócio-antropológica que, para mim, era intransponível. Impossibilidade de compartilhar até o fim. Orgulho, no fim das contas. A santidade como pretensão.” Aquele grãozinho, aquela semente tão profética pareceu desaparecer por completo. No Brasil, os jovens do Movimento viviam com uma dramaticidade fortíssima aquilo que todo o Movimento viverá alguns anos depois, em 1968. “Quando voltei para a Itália parecia estar entre diletantes da revolução, que brincavam de mocinhos e bandidos.”
Então, ao voltar para a Itália, também enfrentando grandes dificuldades pessoais e em busca de um novo caminho, ou melhor, procurando descobrir uma “nova vocação”, Luciano percebeu que se rompia o relacionamento com muitas pessoas do Movimento. Teve muitos desentendimentos, mas permaneceu o abraço de Dom Giussani: “É difícil não julgar e não ser julgado. Giussani conseguia fazer isso e olhava aquela semente que parecia morta, como aquele grão de mostarda do Evangelho: estava gerando, de modo imperceptível, uma nova vida. Nele havia uma abertura ao outro que não sei definir a não ser como algo infantil: ‘Se não vos tornares como criança...’ Para ele cada homem era uma possibilidade infinita. Não encontrava nenhuma pessoa sem aprender algo. Era capaz de colocar-se dentro daquilo que a pessoa vivia. Não julgava o outro por aquilo que deveria ter sido. E cada vez que nos encontramos o abraço foi sempre como no início”.
De modo que, em uma entrevista que Dom Giussani concedeu para a televisão suíça, o repórter era exatamente Luciano Di Pietro. A um certo ponto, ele tentou provocar Giussani: “O senhor assinaria embaixo da conhecida frase: ‘Não concordo com nenhuma de suas opiniões, mas estaria pronto a morrer para que você possa afirmá-las’?”. Giussani não hesitou: “Com certeza. Assinaria imediatamente uma frase assim. De resto, o Senhor também morreu pela nossa liberdade, inclusive a de errar, de pecar”.
Tão presente que podemos lutar com ele. Nunca entendi antes por que Dom Giussani tinha lágrimas nos olhos naquele vídeo. Estava falando a alguém do Brasil que parecia ter se afastado do Movimento. Esta é a medida do amor de Dom Giussani por seus filhos: a misericórdia. “Devo admitir – disse Di Pietro – que tive uma tal nostalgia desta companhia, que é como se ela nunca tivesse terminado, embora a tenha reconquistado, pelo menos como dimensão interior, só agora, nos últimos anos.”
Sim, porque o bonito veio depois, e ainda não foi contado. Acontece, de fato, algo ainda mais misterioso. Lorenzo, o único filho de Luciano e Luisiella, conhece o Movimento, certamente também graças ao fascínio das histórias paternas. Começa a participar de CL e, no fim, descobre sua vocação. Quer ser padre missionário da Fraternidade San Carlo. Deus é mais teimoso do que qualquer um. “No início, eu disse: ‘Jesus realmente quebra todas as barreiras!’. Deus é um perseguidor, tem senso de humor, mas nunca brinca. Como Amor, é alegre mas sempre sério. E chamou a atenção mais uma vez, chamando um filho. Sou casado e não posso pensar sozinho. E minha esposa é uma mulher do Antigo Testamento, carnal, impetuosa: a bênção de Deus significa ver os filhos e os filhos de seus filhos! Não recebeu bem a notícia. É uma pessoa que tem o direito de lutar com Deus, como Jacó, o sinal inequívoco de que Deus está em sua vida... Deus é, para ela, tão presente que podemos lutar com Ele sabendo porém, antecipadamente, quem é o vencedor. A vocação de Lorenzo foi uma luta com Deus. Naquele momento foi realmente um golpe. Aquele gesto de Deus, tão concreto, unívoco, radical, era um tipo de surpresa para mim, que tinha a pretensão de entender; e uma laceração para ela que, como os antigos hebreus, sentia-se atingida na carne, forçada por uma vontade superior. Rezo para que se torne cada vez mais verdadeiro para ela aquilo que disse um velho e sábio padre (raça em extinção): Realmente, quando Deus toma um filho, coloca-se em seu lugar.”
Diante da misericórdia de Cristo na carne, impossível não ficar maravilhados. Há um fio condutor que liga este jovem, já ordenado diácono, e a vida do pai, que já aos dezoito anos ardia de desejo de contar a todos sobre o acontecimento de Cristo. “É impressionante ver como, na própria forma da missão que vivíamos no Brasil, havia um embrião daquilo que Lorenzo vive hoje em Colônia, na Alemanha: a vida comum, um modo de entender a missão, os bispos que percebem cada vez mais a necessidade de uma presença viva do Movimento e pedem sua presença... O pequeno grão então morreu para dar seus frutos hoje. Agora, entendo que era apenas uma aparente contradição: estava embaixo da areia, para re-emergir como um rio caudaloso.” É preciso apenas a paciência da fidelidade. Deus realmente escreve certo por linhas tortas.
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón