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Passos N.113, Março 2010

SOCIEDADE - BRASIL | PNDH

Direitos humanos e experiência elementar

por Francisco Borba Ribeiro Neto

Numa sociedade pluralista e frequentemente individualista, nem sempre é fácil distinguir direitos fundamentais de interesses particulares. Apenas a atenção à experiência elementar pode nos conduzir por um caminho solidário de construção do bem comum

Às vésperas do último Natal, o governo Lula lançou o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH). Logo de início, passou quase despercebido, chamando atenção apenas pela questão da revisão dos crimes cometidos durante o período da ditadura, que colocava em oposição militares e defensores dos direitos das vítimas da repressão política daquele período. Posteriormente, percebeu-se que o plano era um documento gigantesco, com propostas que impactavam os mais diferentes aspectos da vida nacional, da vida nas famílias à estrutura fundiária nacional.
Diante da chuva de protestos dos mais diferentes setores, o governo procurou amenizar seu impacto. Como o plano não tem força de lei, suas deliberações têm que ser enviadas ao Poder Legislativo para serem implementadas e, neste nosso mundo, sempre acontece alguma tragédia, como o terremoto do Haiti, algum escândalo político, como o caso do governador de Brasília, que nos faz esquecer as coisas... Mas este Plano de Direitos Humanos é provavelmente a mais evidente manifestação das implicações sócio-políticas da cultura secularizada de nosso tempo. Por isso, é importante compreendê-lo, bem como aos problemas que carrega em sua concepção e operacionalização.

Uma trajetória que vem de longe. Engana-se quem pensa que o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos é uma criação típica e exclusiva do governo Lula. Com seus erros e acertos, o plano é fruto de uma longa trajetória, que reúne duas tendências internacionais. Uma se fortalece a partir de 1993, quando a Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, em Viena, sugeriu que os países tenham seus planos nacionais de direitos humanos, para que o respeito a estes direitos seja garantido de forma orgânica e sistemática em todas as esferas da vida nacional.
Nesta perspectiva, o Brasil já teve promulgados dois planos nacionais de direitos humanos, em 1995 e 2002. Os especialistas inclusive apontam que o plano atual está em estreita consonância com os planos anteriores. Muitos aspectos deste plano, dos mais evidentes – como o combate à discriminação racial – aos mais polêmicos – como a proposta de casamento entre homossexuais – já estavam presentes nos planos anteriores.
A outra tendência é a da ampliação do elenco de direitos humanos. Além dos direitos fundamentais reconhecidos, por exemplo, na Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas, de 1948 (direito à vida, à liberdade, à segurança, ao trabalho, etc.), passaram a serem considerados outros direitos, por vezes polêmicos, como o direito ao aborto, ao uso de drogas, etc.
Particularmente esta segunda tendência é que gerou maiores polêmicas neste 3º Plano Nacional. Ainda que muitos destes elementos polêmicos já venham dos planos anteriores, um conjunto de fatores internos ao próprio texto (como uma polêmica citação ao agronegócio que não tem nenhum efeito prático) e externos a ele (como o fato de estarmos em ano eleitoral) incendiou o debate sobre estes temas.

Quando os interesses se tornam direitos. Dom Giussani ensinava que a falsidade de uma proposição se revela no fato de que, para aceitá-la, temos sempre que esquecer ou negar algo. O grande problema destes novos direitos é que, na verdade, alguns deles transformaram interesses particulares em direitos fundamentais – e para fazer isto algum aspecto da realidade tem de ser negado.
Na vida em sociedade, sempre haverá conflitos de interesses, e uma das funções do sistema legal é justamente dar condições para que estes conflitos sejam adequadamente administrados. Contudo, não pode haver um conflito entre direitos fundamentais, pois eles são obrigatoriamente universais, isto é, aplicáveis a todos. Um exemplo bastante evidente: o aborto não pode ser um direito. Sem dúvida, a mulher grávida tem o direito de ter condições para ser feliz, para se realizar – mas o feto que está em seu útero, que evidentemente é outro ser humano (qualquer pai e qualquer mãe sabem disto), também tem este mesmo direito. No aborto, para se defender o direito à autonomia e à realização da mãe, temos que esquecer o direito à vida do filho.
Outras vezes, o que vem esquecido são as implicações práticas da afirmação de certos direitos – que correspondem mais a interesses de grupos particulares do que a verdadeiros direitos universais. Por exemplo, a proposta de reconhecer a profissão de prostituta. Não se pode desconhecer o grave problema social vivido pelas prostitutas, condenadas à discriminação, à criminalização, à falta de seguridade social, etc. Mas, reconhecer esta profissão significaria aprovar um modo de vida reconhecido como insalubre e moralmente degradante, para o qual as mulheres vão mais frequentemente por falta de alternativas ou por violência do que por opção. Legaliza r não soluciona o problema.
Talvez a maior esquecida na polêmica sobre o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos tenha sido a solidariedade. Em parte, culpa do plano (ou daqueles que o apresentaram ao público) que abriga vários interesses de grupos, elevando-os à condição de direitos, sem criar uma clara escala de prioridades, fundada na gravidade e na universalidade dos direitos desrespeitados. Assim, corre o risco de se perder em questões particulares, ao invés de ser um instrumento de enfrentamento das violações dos direitos humanos no país. Mas também culpa daqueles que atacam o plano, pois eles também se perdem muitas vezes nas questões que lhes interessam, sem enfrentar os grandes temas sociais do país, aqueles que exigem a solidariedade de todos para serem resolvidos.

O ataque à Igreja. Um dos pontos mais descabidos no 3º Plano é uma proposição para a retirada de símbolos religiosos de prédios públicos, em nome da laicidade do Estado. Pobre da religião que depender de símbolos nas paredes para chegar ao coração dos homens! Mas também pobre do homem que se sentir agredido por um símbolo em uma parede! É evidente, neste caso, que a proposição não está ali para defender os direitos das pessoas de diferentes credos, mas para tentar reduzir o direito de expressão particularmente dos católicos, que são o grupo religioso mais numeroso do país.
Por que esta insistência contra a Igreja, numa questão como esta? Justamente porque a Igreja representa, historicamente, a voz que procura não esquecer nada, que procura abraçar a totalidade da pessoa humana, inclusive aqueles espaços escuros de sua alma que ela gostaria de manter ocultos e esquecidos. Calar a Igreja significa poder esquecer-se dos direitos dos que estão por nascer; da complexidade que cerca a sexualidade quando sua realização não coincide com o amor entre homem e mulher, esquecer-se até mesmo que o bem comum não pode nascer de um Estado protetor cuidando de pessoas individualistas, mas pelo contrário, exige a responsabilidade solidária de todos.
Por isso, a resposta mais adequada que a Igreja pode dar aos ataques que vem recebendo da mentalidade laicista é continuar a convidar todos - católicos, evangélicos, ateus, etc. - a não esquecer nada de sua humanidade.

Uma batalha cultural. O 3º Plano Nacional de Direitos Humanos ilustra bem a batalha cultural que estamos vivendo. Mas esta é uma batalha que não se pode vencer derrotando ao adversário, mas apenas encontrando-o. A radicalidade do cristianismo não se contenta com o diálogo e com a tolerância. Eles devem existir, mas não satisfazem plenamente a ânsia de verdade e de totalidade que constitui a nossa vida. Só o encontro com o outro, a descoberta daquele traço de verdade em comum que reside no coração de cada um de nós, pode nos satisfazer.
Para nós, tudo é ocasião de encontro, de descoberta de si e do outro, de construção da solidariedade. Mas, para isto, como padre Carrón tem insistido, temos que estar atentos à nossa experiência elementar, para aquele desejo de realização e de felicidade que habita o nosso coração. Só um homem atento à própria experiência elementar pode ser livre e aberto para encontrar verdadeiramente o outro. Só ele pode caminhar procurando não esquecer nada. Só ele pode construir uma sociedade que realmente respeite os direitos humanos em todas as suas facetas.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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