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Passos N.113, Março 2010

POLÍTICA - SERVIÇO AO POVO

Um coração comovido

por Marco Montrasi

Em ano de eleições, os desafios da vida pública se tornam mais evidentes. Mas o encontro com uma companhia de amigos verdadeiros salva, hoje, das tentações do poder. Um pouco da experiência de Marcos Zerbini

Na edição de 23 de janeiro, a revista Época publicou uma reportagem de seis páginas dedicada ao trabalho da Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo (ATST), dirigida por nossos amigos Cleuza e Marcos Zerbini. Uma jornalista se inscreveu na associação e durante seis meses frequentou as reuniões propostas como uma entre as mais de cem mil pessoas que fazem parte da ATST. A reportagem não é um ataque direto, mas falou em particular de Marcos Zerbini e, se de um lado aparecem juízos negativos sobre sua atividade política, de outro lado são citados testemunhos de importantes homens políticos, elogiando-o. Evidentemente, a jornalista em seis meses de vida de Associação não deve ter visto uma experiência tão negativa; precisava concluir sua reportagem e tentar “convencer”, inserindo informações que pudessem suscitar reações adversas. Quanto ao Movimento de CL, também citado na reportagem, queremos afirmar que não estamos preocupados em nos expandir, nem em crescer numericamente, como é possível ler nas entrelinhas da reportagem. O que o Movimento continua a buscar é que se difunda um olhar que abrace todo o humano (o maior testemunho de Cristo presente hoje), e que isso ajude o homem a percorrer um caminho de certeza, para ser fonte de esperança para seus irmãos.
Aproveitando a oportunidade que nos é dada por essa provocação, desejamos entender melhor um pedaço da nossa história, dirigindo algumas perguntas a Marcos Zerbini.

Para você, o que significou essa reportagem? O que você falou para os amigos e para você mesmo nos dias seguintes, pensando nas coisas que essa jornalista contou?
A primeira tentação quando se lê uma matéria dessas é reduzi-la a uma reação: a matéria é ruim porque faz insinuações negativas da Associação e de mim, ou olhando algumas das coisas positivas que aparecem pinceladas no meio do texto, dizer que no final acabou sendo positiva. Mas o caminho que Dom Giussani e Carrón nos ajudam a fazer não nos permite parar na aparência das coisas. Lendo a matéria, as perguntas que afloraram foram: por que uma jornalista de uma revista de dimensão nacional fica seis meses investigando a Associação para escrever uma matéria? Por que alguém olha para a Associação e dá a ela uma dimensão maior do que nós mesmos damos? E pensando sobre essas perguntas, nos demos conta de que a Associação tem hoje uma dimensão muito maior do que imaginávamos e, conhecendo nossos limites, nossa inadequação, foi inevitável dizer: Quem és Tu, ó Cristo, que nos confia uma tarefa muito maior que nós mesmos? Quem és Tu, ó Cristo, que usa o nosso nada para mudar a vida de milhares de pessoas? E nos vem uma sensação de inadequação, mas ao mesmo tempo de profunda gratidão. Sentir-se abraçado com tamanha ternura nos comove.

Muitas pessoas seguem você e a Cleuza. Isso significa muitas responsabilidades e muitas preocupações. O que move vocês todas as manhãs quando têm que começar o dia?
O que nos move é um coração comovido. A certeza de que não somos capazes de construir uma história assim bonita, mas que somos usados para construí-la. A gratidão por nos darmos conta de que somos amados muito além da nossa própria capacidade de amar e a companhia de muitos amigos, como você, que são o rosto concreto de Cristo em nossas vidas.

Quando se arrisca – ainda mais quando se joga a vida de uma forma tão pública – você está exposto ao juízo de todo mundo. Eu vejo sempre uma audácia e uma paz, mesmo dentro dos problemas que sempre aparecem. O que deixa vocês tranquilos?
Os valores desse mundo não são os nossos valores. Se nos deixamos determinar pelos valores desse mundo acabamos sendo determinados pelo que a sociedade espera de nós e não pelo que é verdadeiro. Quando Carrón, no encontro internacional de responsáveis de Comunhão e Libertação, em 2007, disse “Deus nos amou de um amor tão verdadeiro que enumerou cada fio do nosso cabelo”, em uma fração de segundo eu e Cleuza vimos passar por nossa cabeça o filme da nossa vida e nos demos conta de como aquelas palavras eram verdadeiras. Como havíamos passado por momentos dramáticos na vida e como era evidente a presença de Deus em cada um desses momentos. Foi como tirar uma venda dos olhos e começar a enxergar. A partir daquele momento entendemos que não havia nada mais a temer. A única coisa que precisamos é dizer “sim” ao que Cristo nos pede através da realidade. Cristo, em nossas vidas, foi verdade no passado, é verdade no presente e continuará sendo verdade no futuro. O que temos a temer?

Sempre me marcou que, quando vocês falam da história, fica evidente que vocês sempre tiveram um mestre, um amigo que seguiram. Por exemplo, muitas vezes falaram do Mário Covas, da grande importância que ele teve na vida política e pessoal de vocês. O que ele significou na vida de vocês? Que importância teve o Covas?
Ele foi um grande amigo, ou seja, uma verdadeira testemunha do que é colocar a vida a serviço dos outros. Na época, não entendíamos o que entendemos hoje, depois do encontro com Comunhão e Libertação. Para nós, hoje, é evidente como a nossa vida foi marcada pelo fato de seguirmos, mesmo sem nos darmos conta, pessoas que viviam uma diversidade humana, pessoas que nos testemunhavam uma forma mais verdadeira de viver a vida, e o que nos marcou profundamente no homem Mário Covas foi a forma com que ele nos abraçava, seu apreço à verdade. Para mim, ele teve a importância que um pai tem para o filho. Foi ele que me ensinou que é possível viver a política com verdade, não nos deixando determinar pela busca do poder, mas verdadeiramente pelo bem comum, pelo amor às pessoas, e fazer da política vocação. Era impressionante como ele era apaixonado pelos movimentos populares, pela organização social. Em seu governo, foram criados inúmeros programas para incentivar a participação popular, como, por exemplo, o repasse de recursos para as APMs (Associações de Pais e Mestres) nas escolas estaduais, para que elas mesmas contratassem e fiscalizassem obras de ampliação e reforma das escolas. O problema foi o fato de serem programas tão avançados que as organizações sociais não estavam preparadas para usá-los. Ele, sem dúvida, foi um homem além do seu tempo. É raro o dia em que não faço memória dele, em que não me recordo de alguma coisa que me ajuda a viver a minha realidade presente. Fico muito marcado por um pedido que ele repetia com muita insistência: “Peço a meus verdadeiros amigos que rezem por mim todos os dias, para que eu durma e não acorde corrompido”. Ele nunca se corrompeu e mantém aceso em mim o mesmo pedido.

E agora, quem é Carrón para vocês? Porque vocês sempre falam dele, de como hoje segui-lo é fundamental para tudo.
Carrón é hoje nosso maior amigo. Porque quem mais lhe ajuda a viver com verdade a vida é seu maior amigo. Foi ele que o Mistério escolheu para levar a frente o carisma de Dom Giussani. Isso é um fato, independe da minha ou da sua vontade, é um fato. Segui-lo significa reconhecer a importância que Comunhão e Libertação teve em nossa vida. O que marcou a minha vida e a da Cleuza foi que nós sempre arriscamos a vida naquilo que encontrávamos e que nos dávamos conta que era verdadeiro, mas isso era uma intuição, não entendíamos bem porque fazíamos. O encontro com CL explicou nossa vida e transformou em certeza o que era apenas uma intuição e, se nós arriscamos a vida pelo que era apenas uma intuição, imagine o que somos capazes de fazer por uma certeza. Seguir a Cristo presente na realidade – hoje, nos damos conta disso – foi o que salvou nossa vida. Seguir a Carrón é seguir a Cristo que se manifesta num rosto concreto. Todos aqueles de CL que verdadeiramente seguem Carrón carregam no olhar um brilho, vivem a vida com alegria, enquanto aqueles que resistem, que não se deram conta de que o Mistério escolheu se fazer presente através dele, vivem da melancolia do passado. Seguimos Carrón porque queremos ter os olhos sempre brilhando, queremos a alegria de quem vive a vida com uma terna familiaridade com o Mistério.

Carrón, um dia, falou para nós, num dos nossos encontros de responsáveis: “Quero ver o que vai nascer da amizade entre vocês”. Depois de um ano de caminhada, o que você diria dessa frase?
Digo que é impressionante como ele, mais do qualquer um de nós, se dá conta do que é que verdadeiramente muda o mundo. É impressionante ver como realmente nasceu e cresceu uma amizade, não só entre nós do Brasil, mas de toda a América Latina, e como essa amizade mudou e está mudando a vida de milhares de pessoas. É uma maravilha indescritível. E o que me impressiona é que o ponto comum dessa amizade é, nada mais nada menos, que o desejo de seguir um homem: Carrón.

Estamos cansados de ouvir notícias sobre escândalos políticos, mensalões, batalhas pelo poder. Na reportagem, uma coisa que ficou clara: é que, para você, a política é ligada à vida do seu povo. Mas mesmo reconhecendo isso, alguém tem a coragem de atacar uma experiência desse tipo. O que significa hoje, para você, fazer política?
A política só tem sentido se realmente é entendida como mecanismo para a construção do bem comum. Quando ela é usada como meio para atingir o poder é muito comum ver pessoas, até mesmo de bem, com ótimas intenções, se perdendo. É muito difícil resistir às tentações do poder se você não tem um grupo de amigos que o ajudam cotidianamente a lembrar os verdadeiros motivos que o levam a fazer política. Eu tenho a bênção de ter esses amigos. Não é a minha capacidade pessoal ou uma postura ética incomum que me ajuda a não desviar o caminho, mas o rosto concreto das pessoas que eu represento e que vejo cotidianamente. Sem a consciência de que eu pertenço a um povo e fui escolhido para representá-lo e a companhia cotidiana dessas pessoas eu teria caído na tentação do poder.

Para vocês, qual é o sentido da Associação? Qual é o valor de uma obra? Qual é o valor da obra que é a Associação agora? Como mudou com relação aos primeiros anos?
Quando começamos a Associação, fomos impulsionados pelo desejo de construir uma sociedade mais justa, pela vontade de ajudar as pessoas a terem uma casa e viverem com dignidade. Depois do encontro que fizemos com CL, entendemos que as pessoas continuam precisando de casa, educação, saúde, mas aprendemos que só Cristo pode responder ao desejo de plenitude do coração humano. Por isso, continuamos a lutar pela dignidade das pessoas, porque Cristo não é abstrato e passa pela concretude da vida, mas nossa preocupação maior hoje é ajudar as pessoas a encontrarem o que nós encontramos: um Cristo encarnado no rosto preciso dos amigos. Amigos que vivem uma diversidade humana e nos testemunham a vitória de Cristo no mundo.

Concluindo, podemos dizer que o Movimento de CL não coincide com a Associação, que tem seu estatuto e suas regras. Mas pelos fatos acontecidos nestes anos, sentimos a Associação como uma coisa nossa e só temos a agradecer pelo encontro com vocês e pelo frescor que deram ao Movimento e pela febre de vida que contagiou muitas pessoas no Brasil e em toda América Latina. Muito obrigado!

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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