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Passos N.113, Março 2010

CULTURA - SANTIAGO DE COMPOSTELA

No Pórtico da Glória

por Giuseppe Frangi

Um imenso “livro de pedra”, que fala a todos os peregrinos que o percorrem. Mas o que ele diz? No Ano Santo do Caminho de Santiago, um ensaio e uma exposição analisam cada detalhe do extraordinário Pórtico da Catedral. Dos significados da obra-prima românica à humilde assinatura do grandioso Mestre Mateus. Um homem que soube esculpir “o esplendor da esperança”

Mais que um livro de arte ou um livro de cultura religiosa, este parece um verdadeiro livro de pesquisa. Pesquisa em torno de um dos mais célebres e mais venerados monumentos da tradição cristã: o Portal da Glória, aberto na fachada ocidental da Catedral de Santiago de Compostela. Todos conhecem a extraordinária capacidade de atração que esse lugar exerceu no decorrer dos séculos, meta da peregrinação de milhões de fiéis (mas não só isso). Quem esteve lá pelo menos uma vez conhece o simples ritual que acompanha a chegada e o ingresso na Catedral, justamente passando por esse grandioso Pórtico. Mas pouco se conhece dos significados que esse monumento quer comunicar a quem os atravessa. Como um imenso livro de pedra, o Pórtico dialoga, fala com os peregrinos. E o que diz?
É esse o tema da pesquisa que Félix Carbó realizou e que agora, no Ano Santo de Santiago, se transformou num livro (El Pórtico de la Gloria. Misterio y sentido), num site (www.porticodelagloria.com) e numa exposição documental. Tudo apoiado por um conjunto fotográfico extraordinário, que permite “descobrir” detalhes aparentemente secundários.
A pesquisa começa procurando explicar uma anomalia referente à história do Pórtico: porque, seguindo os traços históricos, fica claro que o atual Portal não é o original da Catedral, cuja construção terminou por volta de 1122, como refere Aymeric Picaud, monge cronista desse período, no Códice Calixtino. Na realidade, o Pórtico que nós vemos hoje é obra do célebre Mestre Mateus, que viveu cinquenta anos depois, como atestam numerosos documentos e como confirma, de modo incontroverso, a assinatura aposta em latim na obra toda: “No ano da Encarnação do Senhor 1188, dia 1º de abril, foram colocadas pelo Mestre Mateus as arquitraves do portal maior da igreja de Santiago”. Por que o Pórtico foi refeito, depois de apenas algumas décadas, prolongando a Catedral? A hipótese de Carbó é que se tratou de uma decisão tomada por quem “tinha autoridade sobre o canteiro de obras da Catedral”, tendo julgado a precedente porta “não adequada para representar a potência da Glória de Cristo”.

Pedra angular. Assim, entra em cena o Mestre Mateus, personagem que, segundo os documentos, devia gozar de enorme prestígio, pois em 1168 o rei Fernando II, que reinava sobre Leon, Galícia e Astúrias, lhe destinou uma rica renda vitalícia. Fernando II era filho de Afonso VII, que, por sua vez, era sobrinho do Papa Calisto II, que em 1126 havia instituído o Ano Compostelano, isto é, um “ano santo” que caía todo ano em que a festa de São Tiago acontecesse num domingo. Para Santiago, teve início um período de extraordinário florescimento cultural, que fez convergirem para lá, entre outros, alguns dos melhores arquitetos e escultores da Europa.
E é no coração de uma cidade tão vital que se insere a grande obra do Mestre Mateus. O Pórtico da Glória é um conjunto de rara riqueza e complexidade, com mais de duzentas figuras; sua estrutura arquitetônica se impõe com tal força que se torna quase que o centro (e não mera entrada) da própria igreja. É constituído por três aberturas: à esquerda, a porta da Velha Aliança, coroada pela representação do Limbo; à direita, a da Nova Aliança, coroada pelo Purgatório; no centro, a abertura mais majestosa é a dedicada à Glória de Cristo. E é em especial nessa que se encontra a chave para se entender todo o significado do Pórtico: domina a cena um grande e majestoso Cristo, que parece inspirar-se no modelo bizantino do Cristo Pantocrator. Mas, diferentemente da iconografia bizantina, aí Cristo não está isolado na mandorla (auréola oval em forma de amêndoa), mas circundado por muitas figuras em ação. Antes de tudo, os quatro Evangelistas, representados no ato de escrever, como verdadeiros cronistas de uma corte real. Há também os anjos, mostrando os símbolos da paixão. Na parte mais alta a presença inesperada do povo: à esquerda, o povo de Israel; à direita, o povo cristão. “A genialidade do Mestre Mateus realiza uma composição inteiramente nova”, explica Félix Carbó. “O Cristo do Pórtico é um Cristo Pantocrator, mas é um Cristo com seu povo.” E o fato de ter dado espaço igual ao povo judeu é explicado com a referência contida na Carta aos Efésios: “Ele, de fato, é a nossa paz, aquele que de dois povos fez um só, abatendo o muro de separação que havia entre eles, isto é, a inimizade” (Ef 2,14).

A certeza de um povo. Outro ponto enigmático do Pórtico é, sem dúvida, a figura colocada atrás da pilastra central que divide o arco maior. Na frente da pilastra há a célebre figura de São Tiago; atrás, a figura ajoelhada de um penitente, voltada para o altar maior. Por antiga tradição, sempre se pensou que esse era um autorretrato do Mestre Mateus, cuja popularidade era tão grande que se lhe atribuía inclusive a fama de santo. Segundo escritos antigos, no rolo de pergaminho que está à sua esquerda lia-se, em certo período, a palavra architetus. Ainda hoje lê-se, na mesma pedra, a letra “f”, que poderia ser a inicial da palavra latina fecit (criador). Portanto, há muita probabilidade de que se trate, de fato, do Mestre Mateus: um fato quase único na escultura medieval, que em geral tendia a anular as individualidades na dimensão coletiva da obra. Em Santiago, a individualidade destaca-se como capacidade de captar mais em profundidade uma certeza que era de todo o povo. “Essa imagem ressalta as características do personagem”, explica Félix Carbó, “penitente e humilde frente ao Mistério. Em certo sentido, é realmente a sua assinatura”.
A pesquisa de Félix Carbó, obviamente, mostra muitíssimos outros detalhes, cujos significados são abordados um a um, e quase sempre esclarecidos com certeza. Ao final de sua viagem, o autor cita uma passagem da encíclica de Bento XVI, Spe salvi (Salvos pela esperança), como chave para se entender a atualidade que o Pórtico da Glória conserva inclusive para os homens do nosso tempo. Diz o Papa que, em geral, os artistas sofrem a tentação de fazer prevalecer o aspecto “ameaçador e lúgubre” do juízo sobre a representação do “esplendor da esperança”. Mestre Mateus é um daqueles artistas que, sem hesitação, optou por dar forma de pedra ao “esplendor da esperança”.

Ano Santo Compostelano

O ano de 2010 é considerado o Ano Santo Compostelano, pois o dia 25 de julho, dia do martírio de São Tiago, cai em um domingo. No Ano Santo, a pessoa que peregrinar até Santiago de Compostela, na Espanha, pode receber a indulgência plenária.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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