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Passos N.115, Maio 2010

RUBRICAS

Cartas

A doença de Gianni: o caminho para a verdade de si
Publicamos a carta escrita por um estudante a um amigo no Cazaquistão
Caríssimo Fulvio, o inesperado aneurisma cerebral que acometeu meu grande companheiro de caminhada, Gianni, foi de algum modo o terremoto mais potente que me abalou nos últimos tempos. Foram semanas cheias de surpresas contínuas. A primeira, foi quando Gianni sofreu o ataque. E ficamos ali, em três ou quatro, segurando sua cabeça, controlando sua língua para que não sufocasse e segurando-o estirado para evitar que se contorcesse sobre si mesmo. Dentro da interminável confusão do momento, no susto e na incredulidade, vibrava na carne uma outra coisa. Não podíamos desligar Gianni de Jesus, daquela presença à qual ele havia dado a vida até um instante antes. No dia seguinte, voltamos para a escola. E foi uma surpresa. Sempre nos lamentávamos porque as belas noitadas, as belas reuniões de canto, os belos encontros com grandes testemunhos, de algum modo, normalmente não nos sustentavam no impacto com o cotidiano, sobretudo na sala de aula. Porém, dessa vez, voltamos para a escola, para o nosso lugar, e nunca estivemos tão atentos, apaixonados, despertos, vivos. Não queríamos perder nada porque, como Gianni sempre nos ensinou, quando alguém quer respostas, ajuda, companhia, a maior amiga, a mais fiel é a realidade. Depois, nos encontramos com Julián, que nos disse: “Que Mistério! Vocês precisam ficar atentos, precisam olhar todos os fatores, não desperdicem essa grande possibilidade. Através da doença de Gianni vocês estão sendo conduzidos ao verdadeiro”. Aí aconteceu a revolução, uma radicalidade nova, nos lançamos dentro da realidade por inteiro, não desejando “entender”, mas desejando o “verdadeiro”, Ele! Olhávamo-nos no rosto e o fator que dominava na experiência que estávamos vivendo era a dor, a dor não dava trégua, sentíamos a falta daquele pai. Então nos foi pedido exatamente para não censurar a dificuldade, o choro, a raiva, a superficialidade, a tristeza, tudo. Essa novidade gerou um olhar novo entre nós, fiquei comovido com a misericórdia com a qual começamos a nos olhar. A partir daí, nasceu a ideia de nos encontrarmos para estudar juntos, pelo desejo de fazer bem aquilo que éramos chamados a fazer, de responder à realidade à qual éramos chamados: a escola. Estudávamos até seis e meia, depois rezávamos o terço por Gianni e cada um ia para sua casa. Enfim, uma coisa que nunca tínhamos experimentado, estudávamos repletos da pergunta e do pedido: “Que possibilidade há para mim, hoje? Vem. Vem, Tu, surpreende-me! Tenho necessidade de Ti como nunca”. E este pedido começava a ganhar cada vez mais espaço. Uma manhã, estava atrasado e pisava no acelerador para chegar a tempo. Tenho dois possíveis caminhos para chegar à escola, um com os semáforos quase sempre no verde e outro, com os semáforos quase sempre no vermelho. Por um erro, peguei o segundo, cheguei no sinal e ele ficou vermelho. Disse a mim mesmo: “Ora bolas, estou indo para a escola para fazer o que devo fazer, por que o sinal fica vermelho para eu ter que parar? Já estou atrasado!” e, de repente, pensei em Gianni. Rezei o Angelus e tudo ficou claro. Foi como se tivesse me dito: “Calma, onde você está indo? Você ainda não se lembrou de mim!”. Desde aquela manhã, sempre pego aquele caminho, o semáforo está sempre vermelho, e todos os dias a mesma coisa se repete. Mas, uma noite, estava dirigindo e Giovanni estava comigo no carro. Meu carro é velho e com a lataria desgastada, e só o limpador de parabrisas do motorista funciona. Chovia, havia trânsito, fazia frio. A um certo ponto, disse a Giovanni: “Está acontecendo exatamente a mesma coisa. Olha, o meu limpador funciona e o seu não. Qual é a diferença? Simplesmente eu vejo mais claramente as mesmas coisas que você vê, portanto, os perigos, os buracos, as curvas, não são eliminados...”. E, com Gianni, estava acontecendo a mesma coisa, aquele terremoto que entrou em sua vida estava delineando mais claramente as coisas pelo valor que têm. Fizemos três dias de férias-estudo, e ali realmente aconteceu a surpresa maior. Estudando eletrotécnica, matéria da qual não gosto, comecei a oferecer: “Senhor, te ofereço o esforço desses dias de estudo pelo meu amigo Gianni, que está passando por uma reabilitação muito difícil”. Resolver os problemas, as expressões, fazer os cálculos foi exatamente como acompanhá-lo em seu recomeço, segurando-o nos braços nas escadas que deve subir todas as manhãs durante o horário de reabilitação. Há algumas semanas eu lhe telefonei, depois de um mês sem ouvir sua voz. Que comoção, paradoxalmente foi só naquele momento que ficou claro para mim o conteúdo do panfleto sobre o terremoto do Haiti: “A nossa vida pertence a um Outro”. Entre aqueles que assumiram o desafio que Julián nos lançou, o de não desperdiçar essa grande ocasião, nasceu uma capacidade de perdão, de abraço, de ternura, uma fraternidade. É realmente verdade que a doença de Gianni nos conduziu ao verdadeiro, tornou mais verdadeiras todas as coisas. Voltamos a falar com Julián depois que Gianni se recuperou e ele nos disse: “Rapazes, aconteceu!”. Agora é preciso se confrontar com o fato que aconteceu! Desde então sempre tenho em mente a pergunta que Jesus fez aos seus discípulos: “Vocês também querem ir embora?”.
Jaio, Milão – Itália

Nada nos pertence
No último sábado, eu, Rubens, Edilene, Ivone e Giorgio fizemos nossa Escola de Comunidade sobre o ponto “O Mistério é bem”, que fala justamente da consciência que devemos ter do tempo que passa e que esse não nos pertence, pertence a um Outro (Cristo). Entendi que as coisas que me agradam ou me desagradam não são decididas por mim, nenhuma situação da minha realidade foi criada por mim, e resolvida por mim, pois a Cristo é que pertence a minha vida. Como diz Giussani: “A inevitabilidade é como sinônimo mais esclarecedor dessa não pertença das coisas a nós...”, pois Ele vem e toma a minha vida, e quando Ele pede, eu só posso dizer “Sim, Senhor, eis-me aqui”. Também no retiro de Quaresma vivi coisas extraordinárias, desde o acordar cedo para levar meus filhos à casa de minha irmã, passando pela preparação dos equipamentos de som e vídeo. Em tudo, pedia sempre que Cristo me fizesse entender para quê eu tinha feito tantos esforços e sacrifícios para estar ali naquele momento. No fim, saí feliz por estar dentro dessa companhia
que me abraça do jeito que eu sou. Veni Sanctus Spiritus...
Erik Kleiner, Brasília – DF

Deus Charitas Est em São João del Rei
Deus charitas est em São João del Rei
Nesta última Semana Santa, minha família foi a São João del Rei para encontrar nossos amigos de Belo Horizonte: Dalvinha, Kika, Marco, Marcela e Ernane com seus filhos. Isso já seria demais, se não fosse ainda somado ao fato que ficamos todos hospedados na casa-escola da Bete e do Dener que ainda não conhecíamos. Foram quatro dias de cantoria, brincadeiras, contação de histórias ao redor da mesa farta que nos recebia. Tudo foi ficando tão no lugar que as crianças paravam de brincar para participar das longas celebrações e das procissões com prontidão e disponibilidade. Minha filha Beatriz fez aniversário nesses dias e não queria – de jeito nenhum – passar esse dia, em Minas, longe dos amigos, mas ganhou uma inesperada e afetuosa festa. Não havia ninguém da idade dela, mas a maneira verdadeira e boa como foi considerada pelos adultos fez com que não quisesse mais voltar para São Paulo: “Mãe, vamos faltar na 2ª feira, assim a gente fica um pouco mais, eu sou muito feliz aqui!” Na volta, tivemos uma conversa profunda sobre a amizade e o relacionamento sexual, de modo tão verdadeiro que eu me perguntava: o que é isso? De onde veio essa liberdade dela e nossa? Meu marido rezou conosco. Ninguém falou que era importante ou condição. Era uma experiência que alinhava cada detalhe. Na casa do Dener e da Bete, me senti como os discípulos de Emaús: quem são estes que me querem tão bem mesmo antes de me conhecer? O que foi isso que fez com que meu coração batesse mais forte enquanto arrumávamos a louça dos longos cafés da manhã? Na hora da despedida, abracei forte a Kika agradecendo: “Muito obrigada por essa oportunidade”. Mas ela respondeu olhando-me fixamente nos olhos: “Cecília, é o Senhor, é o Senhor!” Definitivamente, estávamos em Emaús.
Cecília, São Paulo – SP

A certeza
Sou psicopedagoga, e nas horas vagas sou voluntária em uma escola, próxima de minha casa. Ano passado, imbuída do desejo de ajudar ainda mais a comunidade, resolvi me candidatar à eleição do Conselho Tutelar da minha região. A candidatura foi muito problemática, com muitas provas, análise de currículo, análise da vida pessoal, análise psicológica, treinamentos e por aí afora. Passei em todas as etapas, mas, faltava a eleição que definiria a minha entrada no conselho ou não. No retiro de Natal, quando me foi perguntado o porquê dessa decisão, respondi que queria ter Cristo um pouco mais próximo a mim, para reconhecê-Lo mais. Fiz a campanha com a ajuda do pessoal do Movimento (do qual participo há mais de vinte anos), porém consegui somente sessenta e quatro votos, enquanto os demais tiveram acima de quatrocentos. Na verdade, a situação foi massacrante, pois algumas pessoas que não haviam passado nas primeiras etapas foram justamente as mais votadas, caracterizando a eleição como mais uma politicagem. Fiquei muito decepcionada, mas, ao mesmo tempo fiz uma entrega tão grande a Cristo que perder a eleição não determinou uma derrota na minha vida. Passaram as festas de fim de ano, e na metade de janeiro, contraí uma doença de nome Síndrome de Guillan Barre, causada por intoxicação alimentar. Essa doença paralisa todos os membros e, por causa disso, fui parar na UTI de um hospital, depois fiquei internada por mais vinte e quatro dias. Quando estamos em uma circunstância da qual não entendemos nada, olhamos para dentro de nós mesmos, em busca de respostas. Eu queria entender o que tinha acontecido, e resolvi que aceitaria a doença como parte de uma experiência que me lançaria ainda mais para Cristo. Eu estava (e ainda estou) muito otimista na cura e comecei a perceber, pelas visitas dos amigos, das pessoas da comunidade, dos abraços, das ofertas de ajuda e principalmente das orações dos familiares e dos amigos, que eu não estava só: era Cristo que vinha. Cada visita trazia Cristo para mim. Essa certeza me fez perceber também que eu estou passando por essa doença com fé e coragem porque não trouxe para ela nenhuma mágoa, nenhum rancor e nenhum remorso. Tudo o que podia perdoar eu o fiz durante a minha vida, mesmo a quem não pediu perdão e onde errei pedi o perdão, então eu estou livre em Cristo. Justamente eu que muitas vezes deixei de rezar o Pai Nosso porque não queria perdoar ninguém, até que o Movimento me ensinou que não rezando eu estava tirando de mim mesma a possibilidade de também ser perdoada. A conclusão sobre tudo isso que eu estou vivendo (a doença, a fisioterapia dolorosa e os pormenores do dia a dia) foi que eu pedi para ver Cristo numa circunstância e O vi em outra, e fiquei muito grata por isso, pois descobri que na circunstância do trabalho no Conselho Tutelar eu não teria dado conta. Não do trabalho em si, mas da politicagem que permeou a eleição e das pessoas que foram ilegalmente eleitas. Da doença, sim, estou dando conta, estou calma e estou grata. Grata ao meu marido, que me ama com um amor que me revela Cristo nos menores gestos. Grata às minhas filhas (Letícia e Mariana), que tiveram coragem e amor diante da adversidade. E grata ao Movimento, pois é na convivência com os amigos da Fraternidade, das assembleias e Escolas de Comunidade que me torno a cada dia uma pessoa melhor.
Sebastiana Fátima, Belo Horizonte – MG

Uma presença agora
Acredito que Deus seja muito insistente, porque não faz muito tempo que tudo aconteceu e parece que eu já me esqueci de muita coisa. Mas, por graça divina, posso escrever aos amigos e me lembrar do que aconteceu há dias, no encontro com Carrón em São Paulo. Faz muito tempo que espero, quase angustiada, por uma resposta de Deus. A resposta a uma pergunta que, às vezes, eu nem sei formular. Tenho claro que os raciocínios sobre o porquê das coisas, o porquê das circunstâncias – desde o relacionamento com a minha irmã, ou com o meu marido e com os filhos –, são, na verdade, o grito para que Ele venha e, como temos aprendido, “quando a pergunta é mais dramática significa que o Senhor está perto”. No domingo do encontro com Carrón, fui até a Lapa, novamente com uma grande pergunta sobre o que Deus quer comigo no Movimento. Dizia a mim mesma que, se algo grande não acontecesse naquele dia, eu iria embora. Eu não consigo viver de lembranças bonitas que não reacontecem, seja como for o reacontecimento. Eu lancei um grande desafio ao meu coração e a Deus. Cheguei àquele lugar, depois de ter atravessado a cidade, sem muito com que me alegrar. Moro longe de lá, entretanto, quando vi pessoas que moram em outras cidades, em outros estados do país, comecei a perguntar o que os movia a ir àquele encontro. Pensei que, talvez, fosse o mesmo que me movia: a necessidade de uma resposta às implacáveis perguntas do coração. Ao escutar as primeiras palavras, as primeiras perguntas, as primeiras respostas, algo mudava em mim, foi como se, ao escutar tudo que diziam, algo indicava que as perguntas têm, sim, uma resposta. Então, pude escutar a enfermeira que queria viver como o padre Aldo ao olhar seu paciente. Sua pergunta era, na verdade, um grito pedindo que o Senhor se fizesse presente. A resposta de Carrón, então, se mostrou a mim como um caminho: “este paciente é seu aliado para reconhecer a Cristo”. Depois desta afirmação, foi possível respirar novamente. Em todas as situações que vivo agora encontro os aliados para que Cristo venha. Cristo não como uma ideia que tenho a tentação de defender, mas como carne, como o material que tece meus dias. O primeiro resultado desta mudança foi não viver como se as angústias não existissem e olhar, inclusive reconhecendo e aceitando a dor, minha irmã, minha mãe, meus alunos, meus filhos e marido, e desejar, cada vez mais, que Cristo venha. Que Cristo venha, não para que o drama se desfaça e desapareçam os problemas, mas porque quero viver com coragem e ânimo tudo o que Ele me dá. Os dias passam, há dias em que estou mais tranquila e terna, em contrapartida há dias em que ajo com violência, mas nada está abandonado a sua própria sorte, porque Ele está perto. Peço que Deus não Se esqueça de me fazer companhia e, iluminando o meu olhar, faça que eu O reconheça quando Ele chegar. Sou muitíssimo grata a Carrón pela força e humanidade de suas palavras que, por graça, amoleceram e tranquilizaram o meu coração.
Angelica, São Paulo – SP

Um novo início
Caro padre Carrón, a situação econômica que estamos vivendo me obrigou a fechar o escritório de Agronomia que tinha em Varese, um sonho da juventude, e aos 50 anos foi-me pedido para recomeçar, abalando todas as minhas certezas e minha vida, já estruturada. Depois de alguns meses de pequenos trabalhos precários, promessas, desilusões, desemprego, apareceu uma proposta: ir para o Marrocos. Anos atrás teria ficado com raiva por causa da decepção de não conseguir, com o meu profissionalismo, manter minha atividade ou por causa da inegável dificuldade que a sistematização comporta nesse caso. Reagiria inclusive apoiando-me na ilusão de que cedo ou tarde algo poderia mudar, e eu poderia ficar em casa e não aceitar o desafio. A posição humana mais verdadeira, porém, encontrei dentro da nossa experiência, trabalhando sobre as palavras que nos dizemos. E, então, o juízo mais verdadeiro sobre essa minha dificuldade foi que as circunstâncias pelas quais Deus me faz passar são fatores essenciais e não secundários da minha vocação. Então, mudou minha maneira de pensar e até a distância da esposa e filhas, o ambiente diferente, os relacionamentos de trabalho nem sempre muito bons, fazem parte da tarefa que o Destino me confia: usar da realidade para afirmar que fui tomado por Cristo e que a cotidianidade deve exprimir este grito e este pedido a Ele para que se realize através de mim o Seu reino. E, portanto, não é mais apenas uma questão de uma renda segura, de realização profissional, de relacionamentos afetivos que nos fazem falta ou de renúncia a uma vida ocidental, mas trata-se de responder à realidade. Nessa obediência, não falta o cêntuplo: minha família está crescendo em responsabilidade; os amigos me fazem companhia com mensagens de e-mails e celular. Por último, descobri amigos do Movimento que trabalham aqui.
Giancarlo, Casablanca – Marrocos

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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