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Passos N.75, Agosto 2006

DESTAQUE - Educação, uma batalha da liberdade

A proposta educativa de Luigi Giussani

por Dom Filippo Santoro

Nos dias 15 e 16 de julho de 2006, no Teatro da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, reuniram-se cerca de 400 pessoas para discutir o tema da Educação em encontro promovido pelo Movimento Comunhão e Libertação. Para a abertura da quarta edição deste evento anual foram convidados Dom Filippo Santoro, Bispo de Petrópolis, e Fabrizio Foschi, Diretor da Associação italiana Didática e Escola (Diesse). As colocações tiveram como base o livro Educar é um Risco, de Luigi Giussani, e discorreram sobre as implicações pessoais e didáticas desta obra. O encontro foi enriquecido, ainda, por cinco sessões paralelas que discutiram o tema da educação sob diversos aspectos. Os participantes se reuniram nos seguintes grupos: Educação no mundo da escola; Educação na família; Educação no mundo do trabalho; Educação na universidade; Educação e política.

> Nestas páginas os textos, na íntegra,
das duas colocações iniciais do encontro.


A apresentação dos pontos-chave do livro Educar é um Risco e o exemplo dessa experiência educativa na própria vida. A seguir a primeira palestra do IV Encontro Nacional de Educadores realizada pelo Bispo de Petrópolis

essencial do grande carisma de Dom Giussani. No livro “Educar é um Risco” (Edusc, São Paulo 2005; nde) onde ele aborda diretamente a temática da educação, na introdução afirma: “A idéia fundamental de uma educação voltada para os jovens vem do fato de que através deles se reconstrói uma sociedade. Por isso, o grande problema da sociedade é, antes de mais nada, educar os jovens (o contrário daquilo que acontece hoje)”1. Os fatos que presenciamos nestes dias, de forma muito violenta, em São Paulo2, mas também no Rio de Janeiro e em outras grandes cidades, no fundo mostram a falta da educação.
Todas as políticas públicas falam da educação como prioridade, mas no momento oportuno isso não acontece. É como uma lembrança no início, mas que depois não tem seguimento; ou se tem seguimento é algo limitado a alguns aspectos, sem enfrentar o coração do problema educacional. Aquilo que Dom Giussani quer fazer é uma proposta viva do núcleo essencial da experiência educativa.

Originalidade da proposta de Dom Giussani
Quero apresentar de forma sintética os pontos que caracterizam a originalidade da proposta educativa de Dom Giussani. O professor Giorgio Chiosso, docente de Pedagogia Social e Geral na Universidade de Turim (Itália), que é um dos maiores educadores e especialistas da educação, também no mundo acadêmico, escreveu um manual sobre a História da Pedagogia3 e reserva a Dom Giussani, pela originalidade de sua contribuição, um lugar específico entre os grandes educadores do nosso tempo, ao lado de Dewey, Piaget e Paulo Freire, dentre outros.
1) Em primeiro lugar o que marca a proposta de Dom Giussani é considerar a educação como a educação do humano: “O tema principal para nós, em todos os nossos discursos, é a educação: como nos educar, em que consiste e como se desenvolve a educação, uma educação que seja verdadeira, ou seja, correspondente ao humano. Educação, portanto, do humano, do original que está em nós, que em cada um se desdobra de forma diferente, ainda que, substancial e fundamentalmente, o coração seja sempre o mesmo”4.
Parece simples afirmar que a educação seja a educação do humano que está em nós. Mas é o contrário do que dizem as correntes pedagógicas dominantes, que reduzem a educação a técnicas ou metodologia de aprendizagem. Muitas escolas têm essa tendência. Ou então apresentam a educação como doutrina e não como a possibilidade de desenvolver plenamente a própria humanidade. O educador é um doutrinador ideológico, funcional direta ou indiretamente ao partido. Outra tendência, ainda, é ao niilismo sutil e alegre. Em nossos trópicos é difícil encontrar alguém que diga que a vida não é nada, que tudo é nada. Diante do sol, da praia, do culto do corpo etc, como é possível dizer que nada existe? No fundo, porém, se se pergunta o que tem ultimamente valor; o que tem significado pleno; por que vale a pena viver; nos encontramos diante de um vazio profundo. As grandes perguntas que deveriam ser aquelas que constituem a principal preocupação educacional, normalmente são ignoradas. Então, dizer que o objetivo principal da obra educativa é educar é humano não é uma coisa óbvia. E aqui está a primeira genialidade de Dom Giussani.
2) Em segundo lugar destacamos a definição sintética de educação dada por Dom Giussani que retoma o teólogo austríaco, J.A. Jungmann: “A educação é a introdução à realidade total”5. Estamos diante de uma afirmação de um carisma todo especial. Com efeito, observando os sistemas pedagógicos hoje dominantes, alguns afirmam que a educação deve pragmaticamente introduzir à sociedade e à cidadania; outros ao mundo da produção; outros ao mundo do trabalho; outros à tecnologia avançada. Nunca se escuta falar de introdução à realidade total, que é o fundamento de toda a formação humana. Sociedade, cidadania, trabalho são aspectos da realidade total. É necessário educar a usar os critérios para enfrentar a realidade em todas as suas dimensões.
Parece simples, mas façamos só uma leve referência às “Leis de Diretrizes e Bases” de 1996 que orientam o ensino nas escolas do Brasil. De início diz, retomando a Constituição Brasileira, que a educação tem por objetivo a formação integral da pessoa, mas, depois, toda a ênfase no desenvolvimento da Lei não é nessa direção. Toda a ênfase é na educação à cidadania, ao mercado do trabalho e à produção. No declinar do texto legislativo, aquele fator mais humano é ignorado, escondido, silenciado. Uma verdadeira educação forma a sensibilidade para viver o mundo do trabalho, da produção e da cidadania segundo o seu verdadeiro fundamento que é constituído pela não-eliminável dignidade da pessoa humana, pelo seu valor infinito e pelo seu significado último. Neste sentido a dimensão religiosa não é um acréscimo à educação, como se fosse uma benévola concessão do Estado, mas uma sua dimensão estrutural que deve ser reconhecida e valorizada, não de maneira confusa ou redutiva como quando o ensino religioso é reduzido a ética.
A dimensão religiosa do homem não é apenas a busca do Mistério por parte do homem, mas é também a experiência da resposta que o Mistério dá comunicando a si mesmo. Por isso a formação religiosa deve apresentar as várias maneiras nas quais o Mistério se oferece à liberdade do homem. Daqui nasce a exigência de um ensino confessional e plural nas escolas públicas, pois a educação religiosa é essencial para o pleno desenvolvimento do educando. Trata-se de uma questão de liberdade na qual o Estado não impõe a sua idéia de religião, mas valoriza as tradições culturais e religiosas presentes na sociedade.
A temática do ensino religioso é um aspecto particularmente interessante em que se joga a batalha mais ampla da liberdade de educação.
É este o desafio educativo que Dom Giussani lançou ao nosso tempo, não apenas àqueles que o seguiram ou apenas aos católicos: um desafio leigo de civilização e de liberdade, que convida a superar a parcialidade das ideologias e o fascínio sutil do niilismo alegre – que parece hoje dominar a cena – para deixar entrar o chamado de atenção à experiência da verdade na vida individual, social e política.
3) Terceiro aspecto, marcante e decisivo do carisma educativo de Dom Giussani: a educação como comunicação de si mesmo. Não comunicar o que temos que fazer ou o que não temos que fazer segundo a orientação de uma pedagogia moralista, mas comunicar o que me convence, o que é decisivo para o meu viver, qual é o significado do meu viver.
Dom Giussani afirma: “Esse realismo pedagógico especifica-se do seguinte modo: a realidade jamais será verdadeiramente afirmada se não for afirmada a existência de um significado. Um significado para a realidade total subentende então o processo da educação: dele fica embebida a consciência do indivíduo no primeiro estágio de sua introdução ao real...”6.
O significado permite a identificação e o desenvolvimento de todo o itinerário pedagógico que é impossível sem a referência a algo que dá sentido a realidade toda. Nesta problemática ecoam outras definições da educação, como, por exemplo, aquela de Paulo Freire quando afirma: “Educação é impregnar de sentido cada ato cotidiano”.
Sem um sentido não existe um ato humano, nem ato educativo. O “sentido” é uma exigência não-eliminável, reconhecida por Paulo Freire, mesmo circunscrevendo este sentido a alguns parâmetros sócio-históricos: a pessoa só pode crescer na perspectiva de um significado. O desenvolvimento é possível dentro de um significado. Para Dom Giussani “impregnar de um sentido” é afirmar um sentido pleno, total, que não pode ser reduzido à dialética de opressores e oprimidos, mas implica a perspectiva do destino. Mesmo nas circunstâncias concretas da história e da sociedade, a referência à realidade total implica principalmente a questão da estrutura da razão humana e a experiência de um significado total. Assim, o texto Educar é um Risco está profundamente conexo com uma outra obra fundamental de Dom Giussani, O Senso Religioso (Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2000).
O trabalho educativo supõe que exista um significado que, por sua vez dá consistência ao eu. Somente assim pode acontecer um encontro entre o eu do mestre e o eu do educando. Assim, educar é comunicar quem sou eu. Muitas vezes as pessoas ficam perdidas porque quando se interrogam “quem sou eu?” há um grande silêncio e um grande desconcerto. Por isso, nesta total confusão, a coisa mais humana que existe é a comunicação de si mesmo. É “uma comunicação de experiência” que chega a interessar-se pela outra pessoa até considerar o seu destino.
Na Pedagogia dominante hoje, o educador é considerado o organizador do trabalho. Ele organiza o trabalho enquanto os meninos devem construir sozinhos. É claro que há também o aspecto de organização do trabalho, mas o educador é fundamentalmente o comunicador de uma vida. Ele não tem apenas uma função mecânica, mas sim uma função gerativa, no risco da liberdade, sem substituir a pessoa do outro. O mestre não é um intruso, é alguém que propõe; não diz o que o educando deve fazer, mas é uma testemunha da experiência que ele mesmo vive.
4) E, em quarto lugar, outra contribuição original de Dom Giussani é considerar a educação como risco. Exatamente porque a educação não é um fato mecânico. Ela é sempre uma atividade do eu, daquela realidade misteriosa que é o nosso eu, da liberdade de uma pessoa que encontra a liberdade do outro. É um desafio recíproco, sem ficções e sem formalismos e isso comporta sempre um risco.
A temática do risco revela a natureza da educação como relacionamento. Não é uma técnica. Não é principalmente a comunicação de um saber, de noções e teorias aprendidas, mas consiste no meu eu que vive um relacionamento com uma outra pessoa, que se joga com a sua liberdade dentro de um relacionamento. E a liberdade de se relacionar com o outro suscita e provoca a liberdade de uma resposta.
Neste sentido me permito contar o que aconteceu quando comecei a dar aula na Universidade Católica do Rio de Janeiro. Eram os tempos mais difíceis e radicais da Teologia da Libertação. Dois professores tinham sido demitidos da Faculdade de Teologia por causa da orientação puramente sociológica e filo-marxista de certas afirmações suas. Cheguei naquele período e todos os alunos me olhavam com um gelo terrível: “você foi mandado por Roma para substituir os nossos professores”. Como eu podia responder diante desta situação? Ou com o mesmo gelo, ou com uma atitude diferente, não digo de compreensão e, menos ainda de justificativa, mas de atenção à humanidade destes alunos, de respeito pelas perguntas verdadeiras que, no meio de tanta confusão, carregavam consigo. Foi este tipo de relacionamento humano que determinou uma diferença e por isso a reação deles também foi diferente. Se a resposta tivesse sido igual a deles, estávamos perdidos, seria gelo contra gelo, muro contra muro. Tudo dependia da minha modalidade de encontrá-los: “Vou arriscar-me no relacionamento com essas pessoas; eu quero ter esse diálogo, esse encontro de liberdades”. Era um risco muito grande, pois podia não dar certo. Porque o risco nunca é programado, é sempre uma aventura, um ato totalmente livre. Afirma Dom Giussani: “A Deus, ao Mistério do Ser, àquela medida que nos fez, que nos excede de todos os lados e que não é comensurável por nós, é a Este que o amor do educador deve confiar o espaço sempre maior das vias imprevisíveis que a liberdade do homem novo abre no diálogo com o universo”7. Não é tanto o risco do que o outro dirá, do que ele fará, mas o risco de se deixar tocar e atrair pelo verdadeiro, o risco de se aventurar no mar da verdade, no mar às vezes desconhecido do mistério do outro. Essa é a grande aventura do risco. E, como Platão já dizia: “o risco é belo”9. Arriscar é belo, é esta a grande aventura da vida. Não é o cálculo das probabilidades que me permite movimentar-se em um terreno garantido.

O fascínio de um educador
A força da proposta educacional de Dom Giussani nasce do fato que ele não escreveu livros de Pedagogia, mas viveu uma dinâmica intensa de educador. Eu encontrei Dom Giussani quando freqüentava a Universidade Gregoriana de Roma, que na área da Teologia era uma das melhores que existiam. Estou falando do período de 1968 a 1972, quando eu realizei os meus estudos teológicos em Roma. Era um período de grande contestação estudantil na Europa, no Brasil e no mundo inteiro. As várias universidades e escolas viviam uma profunda contestação das estruturas, das instituições, julgadas como opressivas e sem vida, totalmente esclerosadas, ignorando a liberdade e a criatividade das pessoas. Eu tinha, na Universidade Gregoriana de Roma, professores de altíssimo nível, como R. Latourelle, J. Alfaro, M. Flick, Z. Alszeghy, J. Galot, K. Rahner e tantos outros. Eles me ensinaram os conteúdos do cristianismo na forma mais rigorosa e atualizada do pós-concílio. A diferença no encontro com Dom Giussani estava no método. Ele me mostrava como esses conteúdos podiam ser experimentados e assim tornar-se meus, tornar-se parte da minha vida. Com ele o cristianismo deixava de ser uma coisa bela, grande, mas distante e do passado, e começava a tocar a minha vida. Antes do encontro com Dom Giussani estes belos conteúdos não captavam o meu interesse de jovem que de fato ficava mais atraído pelas pas-seatas políticas daqueles anos. Mas, também em relação ao movimento estudantil o relacionamento com Dom Giussani era diferente. Na sua proposta a vida era provocada na sua totalidade. Ele não falava apenas a um aspecto da minha vida, como podia ser a luta política, mas era a totalidade da experiência que era tocada, abraçada e colocada diante de um fato que ele me comunicava: a presença de Cristo. Algo que de forma misteriosa tinha a ver com tudo, dava novo sentido a tudo, me abria à realidade inteira. Tudo virava novamente interessante: a cultura, a política, a sociedade, o grito dos pobres, a arte, a convivência. Tudo era iluminado por um sentido novo, por uma proposta que eu descobria olhando para a vida dele e para a realidade.
Essa é a grande diferença entre o ensino da academia teológica, os companheiros das passeatas políticas e Dom Giussani: a diferença do método, antes que do conteúdo. Com a possibilidade de fazer uma experiência nova, como era comunicada por Dom Giussani, também diante da ideologia dominante do marxismo, a proposta do cristianismo era vitoriosa, sem complexos de inferioridade. Porque era verificada e experimentada no nível da minha pessoa e imediatamente colocada dentro de uma tradição, de uma história, sem renegar nada do passado. Esse aspecto, de método mostra como Dom Giussani era capaz de conjugar toda a tradição com o presente que eu estava vivendo, iluminando o meu sentido crítico.

Os passos de um método
Na minha experiência se manifestam os passos do método educativo de Dom Giussani: em primeiro lugar a retomada do passado com o valor da tradiçãoe da autoridade, palavra detestada naquele tempo, como ainda hoje. Não existe educação sem o encontro com uma hipótese explicativa da realidade. Esta hipótese constitui a experiência que vem do passado e que é comunicada a nós. O encontro com o educador é o encontro com aquele que permite o descobrimento do meu eu, das minhas exigências verdadeiras. Desde os tempos mais antigos, esta é a característica fundamental da educação. Por exemplo, na grande filosofia grega, quando os discípulos encontravam Sócrates, o que aprendiam? O que ele ensinava? Ele ensinava a se perguntar sobre o valor da vida, sobre o significado da virtude, sobre a essência do eu, sobre o valor da realidade, sobre o significado da alma e do destino. Quem encontrava Sócrates, encontrava um mestre que ajudava a pessoa a pensar, a ter um juízo sobre a realidade, a ter um juízo sobre as coisas, a ter um olhar atento sobre a sua própria vida.
Séculos depois, no grande encontro dos Apóstolos com Jesus, acontecia algo semelhante e mais profundo ainda. O encontro com Jesus era o encontro com o mestre exterior, mas também o encontro como o magister intus, como o chama Santo Agostinho, o mestre que está em cada um de nós, que está exatamente no nível do nosso coração. Encontrar Cristo era encontrar a voz que explicava a vida, iluminava a verdade e se fazia companhia ao destino. O encontro com Jesus não era apenas o encontro com alguém que dizia coisas sublimes, mas era o encontro com a manifestação humana do mistério infinito que cada coração deseja. Voltando à minha experiência, o encontro com um mestre significou o encontro com alguém que me permitiu o descobrimento do meu eu. Assim, educar é ajudar a pessoa a descobrir o seu eu, as suas exigências verdadeiras, e não apenas as exigências induzidas pela sociedade e pelo ambiente cultural no qual nós estamos.
Outro passo do método educativo indicado por Dom Giussani é a retomada do presente. O passado é oferecido ao meu presente, àquele tecido de interesses e de provocações que nascem no presente, com todos os seus problemas. Afirma Dom Giussani: “O passado só pode ser proposto aos jovens se apresentado dentro de uma vida vivida num presente que sublinhe a correspondência deste passado com as exigências últimas do coração. Ou seja, dentro de uma vida vivida no presente que dá as razões de si”9.
Este segundo passo foi o elemento que na minha experiência pessoal despertou o meu interesse: encontrar alguém profundamente mergulhado na problemática do presente, com todas as sua inquietações, sem renegar o passado, aliás, valorizando-o e desenvolvendo uma capacidade de dar razões mais verdadeiras que aquelas propostas pela ideologia dominante no contexto universitário.
E assim se chega ao terceiro passo do método educativo, que é a formação de uma consciência crítica. E aqui Dom Giussani faz o famoso exemplo da criança que, crescendo mexe na mochila na qual tinham colocado os elementos provenientes do passado. Até os dez anos (talvez até antes, hoje em dia), a criança ainda pode repetir: “quem disse isso foi a professora, quem disse isso foi minha mãe”. Por quê? Porque, por sua natureza, quem ama a criança coloca na sua mochila, sobre suas costas, aquilo que de melhor experimentou e escolheu na vida. Mas, a um certo ponto, a natureza dá a quem era criança, o instinto de pegar a mochila e colocá-la diante dos olhos (em grego se diz “pro-ballo”, do qual deriva “problema”). Deve, portanto, tornar-se problema aquilo que nos disseram! Se não se tornar problema nunca amadurecerá e será abandonado ou mantido irracionalmente. Uma vez trazida diante dos olhos remexe dentro da mochila. Sempre em grego, este “remexer dentro” se diz krinein, krisis, do qual deriva “crítica”10.
Esse ponto da formação de uma consciência crítica é um aspecto inovador de Dom Giussani em relação à tradição laicista que fala da “neutralidade”. É indispensável, pelo contrário, ter um critério preciso com o qual abordar os vários conhecimentos e a realidade toda. Por exemplo, em relação ao ensino religioso, muitas escolas católicas (sem falar das estatuais) em vez de formar um critério de juízo segundo a visão católica da vida, têm como ideal apresentar todas as religiões e depois o aluno, sozinho, escolhe a sua, se quiser. Mas uma escolha é possível quando se possui um critério. E com qual critério eu posso decidir o valor de uma religião em lugar de uma outra? O que acontece é que se passa um critério baseado no ceticismo sobre todas as religiões ou que é indiferente ter uma religião ou uma outra. Mas Dom Giussani explica como se forma uma consciência crítica e onde se encontra o critério para julgar a realidade. Aqui se manifesta outra intuição original quando no livro O Senso Religioso12 Dom Giussani fala da “experiência elementar” do homem e afirma que o critério é o coração. O critério é interno a mim, não é um fator externo: o critério é o conjunto de exigências e evidências constitutivas do nosso ser, que é meu próprio coração. Por isso neste ponto, falando da consciência crítica e do coração como critério, Dom Giussani diz: “Nós queremos – e esse é nosso objetivo – libertar os jovens: libertar os jovens da escravidão mental, da homologação que os torna mentalmente escravos dos outros”13.
A educação tem como objetivo a formação de uma capacidade crítica que se baseie em algo intrínseco ao sujeito, não extrínseco a ele, definido pelo poder ou pelas modas. Isso é muito importante numa sociedade muito permissiva na moral e nas atitudes, e totalmente conformista no modo de pensar. Aqui reside a grandeza de uma obra educativa: ajudar a desenvolver os critérios que se encontram no sujeito libertando-o do poder das ideologias ou do ceticismo e da indiferença em relação ao valor verdadeiro das coisas. Educar a pessoa a descobrir o seu coração, isto é, as suas exigências fundamentais e a utilizar o coração como critério para se relacionar com a realidade toda.
Isso implica também educar o coração (que segundo a visão bíblica assumida por Dom Giussani é feito de razão e de afeição) na sua abertura ao infinito, na sua abertura ao mistério. O risco da liberdade se realiza exatamente abraçando e enfrentando as circunstâncias com este critério, que está em cada um de nós, que é constituído pelo próprio coração. Assim começa a grande aventura do encontro e do impacto com a realidade. Em cada circunstância entra em ação o coração, em cada circunstância é possível reconhecer e avaliar o que corresponde a estas exigências fundamentais e o que não corresponde. O critério não vale só para alguns momentos, não vale só para algumas situações, mas tem a ver com tudo, incluindo a dimensão do mistério. A hipótese que o passado, os pais, os educadores comunicam, deve ser, assim, verificada no relacionamento com a realidade. A verificação torna familiar esta hipótese e oferece uma abertura à realidade toda sem censurar nada.

Um método para ser vivido
Queria concluir retomando a minha experiência e indicando três aspectos pelos quais fico muito agradecido pela minha história e também porque são o testemunho de que esse método pode ser vivido. Ele não constitui algo bonito, mas que na realidade não funciona; é algo fascinante que funciona, como funcionou na minha história e na de muitas outras pessoas.
Em primeiro lugar o encontro com um educador produziu na minha pessoa uma capacidade de levar a sério o meu eu, de encontrar e de olhar as minhas exigências verdadeiras, de descobrir o meu ser.
Em segundo lugar, o encontro com um mestre, com um educador, me levou a estar atento à realidade e a comparar tudo com as exigências do meu coração, com as exigências da minha pessoa. E, assim, foi possível o encontro com a realidade total, um critério com o qual eu posso julgar todas as coisas.
E, em terceiro lugar, o encontro com um mestre tornou possível o gosto pela liberdade, o gosto da realização plena da minha pessoa, o gosto de uma busca incessante daquilo que me corresponde.
Nesta perspectiva o texto Educar é um Risco nos ilumina sobre o que significa ser educador. Bem mais que comunicar noções ou técnicas, ser educador significa ser dominado por uma paixão pelo destino do outro, acompanhar os passos dos educandos sem se substituir a eles. Mas isso é possível se nós somos marcados por uma paixão pelo nosso próprio destino, o que se esclarece e se torna vibrante quando na minha vida, na vida do educador, por meio de um encontro humano o próprio destino se comunica oferecendo sua companhia e seu abraço amigo na caminhada. Este é o valor da experiência da fé na nossa vida: o impacto com o Destino que revela o seu rosto bom e se faz meu companheiro, apaixonado pela plenitude da minha pessoa. Esta é a experiência da salvação que vem de um outro e é oferecida à minha liberdade. O educador é o rosto humano da presença do Destino, do Verbo feito carne. Para mim isso aconteceu no encontro com Dom Giussani, mestre externo e visível que me coloca em relação com o mestre interior, com o Magister intus, que é mais eu que eu mesmo, para usar as palavras de Santo Agostinho.
É possível educar, é possível não reduzir tudo a pura técnica; é possível uma verdadeira paixão pela nossa vida e por toda a realidade. A obra de Dom Giussani é para todos uma proposta clara e vibrante.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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