Propomos a leitura de um artigo publicado em “Eco di Bergamo”, dia 11 de junho de 2006
Falando no encontro da diocese de Roma, em São João de Latrão, Bento XVI disse: “A fé e a ética cristãs não querem sufocar, mas tornar sadio, forte e verdadeiramente livre o amor: é esse justamente o sentido dos Dez Mandamentos, que não são uma série de nãos, mas um grande sim ao amor e à vida”.
Eis uma afirmação não meramente edificante, mas que vai ao ponto focal, controverso, da relação entre cristianismo e modernidade. No curso dos últimos 150 anos, a acusação que a cultura moderna faz ao cristianismo é do tipo “psicológico”. A fé cristã é rejeitada não enquanto doutrina falsa, mas como posição que torna doente, enfermo, o espírito humano. O cristianismo seria uma doença espiritual, patologia que ataca um organismo originalmente sadio, uma debilitação das energias, privadas de toda força.
Nietzsche, como se sabe, é o principal construtor dessa crítica, ao fazer dela o eixo de toda a sua incansável demolição do cristianismo.
A revolução cristã abateu os poderosos e ergueu os humildes. Isso significa, na vulgata nietzschiana, que ele enfraqueceu os melhores, nivelou o homem pelo degrau mais baixo, tirou o vigor das virtudes heróicas e viris dos pagãos. Ao inverter os valores antigos, a doença triunfa sobre a saúde. “O cristianismo – escreve Nietzsche – tem a necessidade da doença, mais ou menos como para os gregos era necessária uma saúde de ferro; fabricar doentes é a verdadeira intenção de todo o sistema salvífico próprio da Igreja. [...] O cristianismo se contrapõe também a toda bem-resolvida estruturação intelectual – ele pode utilizar somente a razão doentia, enquanto razão cristã; toma posição em prol de tudo o que é idiota, pronuncia a sua maldição contra o ‘espírito’, contra a soberba do espírito sadio” (O Anticristo, par. 51 e 52).
Complexo de inferioridade
O cristão, tal como o príncipe Myskin, protagonista do romance de Dostoevskij, é um “idiota”. Alguém que renuncia à vida, que chama de bom aquilo que nos torna doentes, e de mau o que nos torna saudáveis. O cristianismo é uma posição inatural, contra a natureza, em antítese ao naturalismo antigo, pagão e solar.
A acusação de Nietzsche, que se inscreve no filão do neoclassicismo alemão, de Goethe a Walter Otto, não mereceria ser levada em conta se não evidenciasse o preconceito que há por trás de grande parte da cultura “laica”. O laicismo baseia-se, em larga medida, não tanto em sólidas razões teóricas, e sim na convicção psicológica da não-adequação “humana” do cristianismo. A posição cristã é percebida, por uma parte da cultura moderna, como “restritiva”, opressiva. Ser cristão não é um complemento de humanidade, mas uma sua diminuição. É essa convicção que impede muitos jovens de se aproximarem da Igreja.
Podemos observar que convicção semelhante existe também, com certa freqüência, até dentro da Igreja. Para muitos cristãos, a impressão decepcionante de não estar adequado à modernidade, de estar fora do leito das oportunidades, das modas, das ideologias correntes, se traduz num “complexo de inferioridade” que prenuncia um desejo de legitimação: não ser diferente dos outros, ser como os demais. Desejo que confirma, a seu modo, a interpretação de Nietzsche.
Cristianismo moralista
Se os próprios cristãos se vêem como não plenamente realizados no plano humano, então a acusação do ateu moderno está justi-ficada: o cristianismo não é a plenitude do homem, mas a sua humilhação.
A afirmação de Bento XVI corrige essa perspectiva: a fé torna saudável, forte e livre o humano. É uma afirmação que responde conscientemente a Nietzsche e ao ateísmo moderno. Ela também responde àquelas posições que, presentes na Igreja, de certo modo tornam, se não justificadas pelo menos compreensíveis, as reações laicas. Posições segundo as quais o cristianismo acolhe essen-cialmente asserções negativas, numa ascese sem alegria, num sobrenatural visto como inimigo da natureza. O cristianismo moralista dos últimos séculos é um cristianismo “naturalista”, reduzido à observância das “regras”.
Por isso, escrevia Emmanuel Mounier em A Aventura Cristã: “o jovem cristão, em vez de ser levado a mergulhar, desde o início, nas perspectivas completas do amor, recebe – em 80% dos casos – uma injeção maciça de ‘moralina’, e a primeira palavra dessa tática moralista é a desconfiança, a repressão: a desconfiança contra o instinto e a luta contra as paixões. O primeiro sentimento que é inculcado naquele que deveria se tornar um exemplo de saúde moral e um apaixonado pelo infinito é o medo da força que deve servir de fundamento para o seu impulso individual”.
O resultado está aí: uma série de religiosos modernos que, em meio a significativas exceções – como Filipe Néri e João Bosco –, são marcados não pela alegria, mas pela tristeza. Assim, fica faltando alguma coisa.
A experiência da mudança
A vida cristã, desprovida de atrativo, torna-se um lugar de resistência, de “reati-vidade”. É determinada pelo negativo, não pela positividade. O cristianismo resvala assim para o declive do ressentimento, da insatisfação. Torna-se solução para o ancião.
Para o jovem, fica a sensação de que, com o passar dos anos, desperdiçou oportunidades, usufruiu menos da vida. No plano de um cristianismo moralista, não há outra alternativa. Nem se pode pensar que a saída esteja numa religiosidade “hedonista”, estética, pós-moderna. A redução teatral da fé é simplesmente patética.
O que torna verdadeiras as palavras do Papa é a educação a um “afirmativo” que vem antes de tudo. Este afirmativo, Jesus Cristo, quando reconhecido, é Aquele que permite valorizar a integralidade da existência, do espaço e do tempo. Aquele que permite dar sentido aos fragmentos perdidos da vida, ao absurdo da morte. O cristianismo torna-se a introdução na realidade total, princípio de uma experiência de comprovação da correspondência entre o Mistério, encontrado em seu aspecto humano, e as exigências mais profundas do próprio espírito. Nessa comprovação o homem pode medir o incremento de humanidade, alegria, paciência, ternura, força, que lhe é dado. Um incremento pelo qual o atrativo cristão é mais forte do que o do mundo, que motiva a afeição por Aquele que é fonte da alegria. O amor cristão nasce da gratidão, não do dever. É um amor que surge da experiência de mudança. Um cristianismo que parte do “não” não pode responder à provocação moderna. Só a experiência do sobrenatural pode fazê-lo.
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón