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Passos N.70, Março 2006

SOCIEDADE - ISLÃ

Um ponto de partida para a liberdade religiosa - Entrevista com Magdi Allam

por Alessandro Banfi

As charges contra Maomé, o homicídio de padre André, na Turquia, a reação do Ocidente, o Conselho em prol do Islã. O que está acontecendo no relacionamento com o mundo islâmico? Conversamos sobre a situação com o vice-diretor do jornal italiano Corriere della Sera

Ele se define muçulmano laico e cidadão italiano. O jornalista Magdi Allam, vice-diretor do Corriere della Sera é, certamente, o representante da opinião pública mais ouvido hoje na Itália, sobre as relações entre o Ocidente e o mundo árabe e islâmico. Ele aceitou essa entrevista e fala sobre os últimos acontecimentos dramáticos que envolveram a Europa.

Comecemos falando da crise em relação às charges sobre o Islã.
Primeiramente, é oportuno esclarecer que estas charges foram feitas por desenhistas dinamarqueses e foram publicadas em um jornal dinamarquês no dia 30 de setembro do ano passado. Chargistas e jornais dinamarqueses fizeram uso de um direito legítimo que é o da liberdade de expressão, um dos eixos da civilização ocidental. A meu ver, este é um direito intangível, que não pode ser cerceado mesmo que eu não concorde com as opiniões. No caso dessas charges, acho em particular, muito discutível aquela que mostra Maomé com um turbante em forma de bomba, pronto a explodir. Não me agrada porque identifica a religião islâmica com o terrorismo. Ao mesmo tempo, acho que algumas outras são até educativas, como aquela que mostra Maomé no paraíso dizendo aos camicases que chegam por lá: "Chega, chega, não existem mais virgens à disposição".

É uma sátira política?
Sátira que zomba da absurda promessa feita aos terroristas, certamente não pela religião. Tudo isso para dizer que, na Europa, é normal discordar desta ou daquela opinião, mas parece absurdo, justamente, pretender impor a própria opinião aos outros. Quando Theo Van Gogh zombou duramente dos judeus foi denunciado ao tribunal e perdeu a causa. Quando ofendeu os muçulmanos foi, primeiro, condenado e, depois, morto.
Porém, quem critica as charges sustenta que elas desencadearam a ira de uma comunidade inteira de fiéis...
É preciso estar atentos e refletir sobre o fato de que alguns meses se passaram entre a publicação e a reação violenta nos países árabes e islâmicos. Por quê? Sabe-se que um jornal egípcio publicou novamente algumas destas charges em outubro e, na época, ninguém se escandalizou. A verdade é que, entre setembro e fevereiro, foi organizada uma campanha feita por alguns incitadores do terrorismo que mobilizaram grupos extremistas e condicionaram o governo. Uma campanha de publicidade e de ódio que, no fim, culminou com o incêndio das embaixadas européias. É uma violência de cunho terrorista e até diria "profissional". Não houve nada de espontâneo nestes "protestos" em massa.

Quanto ao homicídio do padre André Santoro, na Turquia, ele está ligado a este clima de confronto?
Está muito ligado. É distorcido e também um pouco hipócrita pensar que foi culpa de um jovem exaltado e um pouco instável emocionalmente. Na Turquia, é difundida uma cultura anti-ocidental, anti-judaica e anti-cristã e este é o verdadeiro contexto no qual aconteceu o homicídio do padre italiano. São países onde não há liberdade religiosa e onde as igrejas cristãs têm uma vida clandestina. Em alguns casos o proselitismo é um crime penal, e o de apostasia, segundo a legislação dos Estados, pode levar à pena de morte.

Não seria o caso de tentar o caminho do diálogo, por exemplo, como o realizado com o assim chamado Islã moderado, ao invés de escolher o da sátira corrosiva?
O Ocidente, e entre os mais lúcidos que esclareceram isso sempre esteve o Papa Bento XVI, é um Ocidente que odeia a si mesmo, que não sabe defender a própria identidade e as próprias raízes espirituais. Reduz essa sua fraqueza que, ao pé da letra, se chama vontade de diálogo, embora seja somente a abdicação do próprio papel. Se, por exemplo, o valor da vida de todos é reduzido, é um erro estender a mão. Em segundo lugar, a Itália, em particular, não tem uma estratégia de integração verdadeira dos imigrantes estrangeiros. 95% dos islamitas que moram na Itália conhecem pouco a língua italiana, respeitam pouco ou nada a cultura local e a religião católica. Não se sentem parte da sociedade italiana. Antes de falar de diálogo, as autoridades políticas deveriam elaborar uma séria estratégia de integração, pois não há nenhuma além das escolas para crianças que já estão em idade escolar. A cidadania italiana pode ser conseguida de modo casual, burocrático. Ao contrário, os imigrantes, não só os islamitas, deveriam sentir-se parte integrante de uma italianidade que se manifeste de várias maneiras.

O Conselho Italiano em prol do Islã, constituído pelo ministro Giuseppe Pisanu junto ao Ministério do Interior, também é uma idéia equivocada?
Não. Em si, é uma boa idéia. Dotar o Ministério do Interior de um organismo que ajude o governo a conhecer os problemas, como veículo de uma maior integração, pode ser muito útil. É pena que a iniciativa tenha chegado no final do governo, tendo, já a segunda reunião, acontecido em plena campanha eleitoral, e que tudo isso tenha um certo sabor oportunista. No jornal tenho discutido com Pisanu sobre a abertura dada por Nour Dachan, presidente da União das Comunidades e Organizações Islâmicas na Itália (Ucoii). A meu ver, o diálogo, mesmo dentro do Conselho, deve ser levado adiante depois de terem sido fixados alguns princípios.

Quais?
Dachan nega o direito de Israel à existência, queria impor a sharia e legítima os atentados aos soldados italianos. Não se deve dialogar com quem pensa que Israel deva ser destruído e que o holocausto nunca tenha existido. Repito: o diálogo não pode legitimar idéias tão equívocas. Aceitem o princípio da liberdade religiosa, da sacralidade da vida, o direito de Israel de existir e, então, poderemos dialogar.

Bento XVI foi convidado para ir à Turquia...
É bem vinda a visita do Papa à Turquia. Ali mata-se em nome de Deus e, muito freqüentemente, são mortas pessoas que estão em lugares sagrados. Por isso é importante que se afirme na Turquia, sobretudo na Turquia que tem uma história de inicial laicificação do Islã, o principio da liberdade religiosa. Um princípio praticamente negado, hoje, e que, na verdade, é essencial para o desenvolvimento da liberdade tout court. Desse modo seria possível começar um processo de verdadeira liberalização, um processo positivo. Libertar-se da violência dos extremistas também é um direito dos próprios muçulmanos.

O senhor chamou a atenção para o fato que se fica indignado com os atos contra os muçulmanos, mas não se fala nada sobre os ataques contra os cristãos.
Os ataques e os estragos na Nigéria contra os cristãos são quase ignorados. Não houve nenhuma indignação. Essa é a traição da classe política italiana, seja o governo que a oposição. O mal está no Ocidente, em uma política que pede desculpas e demite um ministro por causa das mortes entre os muçulmanos, mas não faz nada diante da morte dos cristãos.

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Bento XVI

Respeito: único caminho possível

Publicamos alguns trechos do discurso do Papa Bento XVI ao receber Ali Achour, novo embaixador de Marrocos junto da Santa Sé. Roma, 20 de fevereiro de 2006

No contexto internacional que conhecemos atualmente, a Igreja Católica continua convencida de que, para favorecer a paz e a compreensão entre os povos e entre os homens, é necessário e urgente que as religiões e os seus símbolos sejam respeitados e que os crentes não sejam objeto de provocações que possam ferir as suas condutas e os seus sentimentos religiosos. Em nenhum caso a intolerância e a violência podem ser admitidas como forma de resposta às ofensas, porque não são respostas compatíveis com os princípios sagrados da religião. Por isso, é preciso denunciar claramente aqueles que se aproveitam deliberadamente da ofensa causada aos sentimentos religiosos para fomentar atos violentos, tanto mais que isso produz fins alheios à religião. Para os crentes, como para todos os homens de boa vontade, o único caminho que pode conduzir à paz e à fraternidade é o do respeito pelas convicções e as práticas religiosas do outro, a fim de que, de forma recíproca em todas as sociedades, seja realmente assegurado a cada um o exercício da religião livremente escolhida.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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