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Passos N.69, Fevereiro 2006

CINEMA

As Crônicas de Nárnia

por Ana Cláudia Ribeiro de Souza

Algumas informações para apreciar melhor o filme As Crônicas de Nárnia, em exibição nos cinemas em circuito nacional. Um mundo mágico com figuras mitológicas e metáforas cria um universo de estórias fantásticas

Em dezembro do ano passado chegou ao cinema um dos contos das Crônicas de Nárnia, O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, de C.S. Lewis, escritor, professor universitário e autor de uma vasta obra literária, que aqui recorre a metáforas, a imaginação e a fantasia para re-propor a história e o sentido do cristianismo. Nesta obra afirma seu claro propósito de atrair a atenção do público para as verdades da fé cristã, uma catequese por meio desse mundo mágico de Nárnia. Aqui temos um tripé, nem sempre fácil de ser discutido: um filme, um autor e um conto. Como o autor já foi apresentado na última edição de Passos, isso permite que se forme um outro tripé: um filme, um conto, e a fantasia a qual eles remetem, reunidos nessa estória que se passa em dois mundos.
Esse conto ora filmado pela Disney, que resolveu encampar o projeto da Walden Media de adaptar para o cinema todos os sete contos das Crônicas de Nárnia, conta uma estória iniciada na Inglaterra sitiada durante a Segunda Guerra Mundial, quando os quatro irmãos Pevensie - Pedro (William Moseley), Susana (Anna Popplewell) e os pequenos Edmundo (Skandar Keynes) e Lúcia (Georgie Henley) – para fugir dos bombardeios de Londres são levados para o interior do país, onde ficam alojados na grande casa de um professor aposentado, Digory (Jim Broadbent). É lá que uma brincadeira de esconde-esconde revela um guarda-roupa encantado, onde Lúcia descobre uma passagem secreta que conduz ao universo paralelo de Nárnia.
Nárnia vive em um constante e tenebroso inverno, pois caiu sob magia da Feiticeira Branca, Jadis (Tilda Swinton), que obrigou seus habitantes a sofrerem 100 anos de frio e gelo sem direito ao Natal. No conto se evidencia que o problema em Nárnia não é o inverno ou o gelo, mas a triste sina de que o Natal não vem, isto é, não vem a alegria do viver, do significada da vida, e num mundo sem o Natal a vida daqueles que lá habitam é um constante e tenebroso inverso. A Feiticeira Branca castiga quem é contra seus domínios transformando-os em pedra, e mantém espiões pela floresta para garantir o seu reino. A chegada dos irmãos Pevensie pode mudar tudo isso, pois uma antiga profecia prenunciava que com a chegada de 'dois filhos de Adão' e 'duas filhas de Eva', poria fim ao poder de Jadis em Nárnia. Mas não eles sozinhos, surgem rumores de que Aslan, o rei leão que há tempos está desaparecido, chegaria junto com as crianças, pronto para reclamar seu trono.
A obra As Crônicas de Nárnia é formada por sete contos: O sobrinho do mago, O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, O cavalo e seu Menino, Príncipe Caspian, A Viagem do Peregrino da Alvorada, A Cadeira de Prata, e A Última Batalha, que se dão em parte ou totalmente em Nárnia, um mundo completamente imaginativo, mas que possui algumas “portas” para o nosso mundo. Os contos propiciam em si uma compreensão quando lidos separadamente, mas, há uma harmonia no conjunto dos acontecimentos da estória de Nárnia diluída entre os sete contos, que entrelaça personagens entre vários dos contos. A partir dessa fantasia Lewis criou num mundo lúdico onde feiticeiras, faunos e animais falantes são usados como analogias para fazer chegar aos jovens, numa linguagem atraente a eles, verdades como: tudo o que existe foi criado por Deus, há no mundo uma luta entre o bem e o mal, e cada um é chamado a reconhecer o seu desígnio.
É preciso destacar que o público alvo de Lewis são as crianças e os jovens para quem um mundo mágico, figuras mitológicas e metáforas são perfeitamente plausíveis e até desejáveis, num universo de estórias fantásticas, como nos dias de hoje o faz J.K. Rowling com sua escola de magia em Harry Potter. Esse gênero literário imaginativo de Lewis com As Crônicas de Nárnia não tem nada a ver com o esoterismo moderno desprovido de sentido, e criado por adultos vazios e sem referências culturais, onde o niilismo faz florescer lojas de fada e gnomos que, entretanto não remetem a uma identidade, a experiência de pertencer a uma história. Esse esoterismo tem como público-alvo adultos que preenchem o seu vazio como um nada.
Na leitura das Crônicas é possível perceber que o objetivo de Lewis era o de criar uma fantasia para nela melhor descrever a realidade. Colocar nas metáforas do imaginário a beleza da amizade, do encontro, do perdão, da criação, da graça, e assim educar o olhar de seus leitores ao Mistério presente na história, pois nas pessoas e nas coisas há a presença do Mistério, o qual por vezes não se reconhece ofuscados por uma cultura pseudo-racionalista, que diz que se deve acreditar naquilo que a ciência comprova, ou no que uma lei estatal determina.
Vários autores modernos como G.K. Chesterton, afirmam que o imaginário faz parte da experiência e da qualidade de vida humana, o próprio Cristo usava as parábolas durante os seus ensinamentos afirmando “aqueles que têm ouvidos para ouvir ouçam”, mas o mundo adulto parece desejar cada vez mais uma linguagem racionalista que é distante da linguagem infantil, essencialmente lúdica e imaginativa, que Lewis adota nesses contos.
Assim os acontecimentos de Nárnia são metáforas da vida, de possibilidades que há na vida de qualquer pessoa. Criando esse mundo imaginário, ele cria também seres bem distintos dos reais, usando figuras extraídas de vários mitos grego-romano ou nórdicos, como faunos, centauros e bruxas, mas as características atribuídas a todos eles é a da personalidade dos próprios homens, e aqui a fantasia remete ao real.
A metáfora mais provocadora é a de Aslam, e o leitor de C.S. Lewis só conhece a verdadeira importância do Leão Aslam conforme lê os sete contos, onde o personagem é uma analogia à Santíssima Trindade. E para se compreender isso se precisa conhecer pelo menos o conto O Sobrinho do Mago, na realidade escrita posteriormente ao Leão a Feiticeira e o Guarda-Roupa. Ele é o Criador, quem trouxe a vida para Nárnia. É Aslam quem determina as leis daquela terra, e assim Lewis instiga seus leitores mirins a se questionarem, se Aslam criou Nárnia, quem criou este mundo?
O ápice do conto é a morte de Aslam, metáfora da redenção de Cristo que morre por todos os pecadores, se oferecendo em sacrifício a Feiticeira Branca, em troca de Edmundo, seu prisioneiro, um mentiroso. Mas ele, criador de Nárnia, sabia que: “... se uma vítima voluntária, inocente de traição, fosse executada no lugar de um traidor, ... a própria morte começaria a andar para trás...”, acontecendo com isto a ressurreição de Aslam, que acaba com o constante e tenebroso inverno de Nárnia. Quem presencia este fato são as “duas filhas de Eva”, como no Evangelho que diz que as mulheres foram ao sepulcro e o anjo lhes anunciou a ressurreição do Senhor. Após a ressurreição Aslam vai com elas num lugar que Lúcia diz parecer um museu, pois tinha bicho e gente de pedra, eram aqueles a quem Jadis tinha transformado em estatuas de pedra por si oporem ao seu reino, mas Aslam soprando em cada um, pois Cristo veio para cada homem, devolve a vida a todos eles. Assim, não somente aqueles que estavam vivos podem comemorar o Natal, mas o sacrifício de Aslam é também por aqueles que já haviam “morrido”. Aslam é o Deus trino, criador, redentor e consolador, como se verá em outros contos.
Na adaptação feita pelo cinema o conto perdeu a força dos diálogos, a clareza das metáforas, e principalmente a centralidade em temas como amizade, perdão e Graça que se diluem num filme de figurinos e cenários bem elaborados, e de muitos efeitos visuais, é por isso que pelas lentes da Disney não é possível reconhecer em toda a sua força e beleza o anúncio cristão do conto de Lewis. Assim sendo, ao invés de apenas esperar pelos próximos filmes, bem melhor será já ler O Sobrinho do Mago.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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