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Passos N.69, Fevereiro 2006

SOCIEDADE - PÁDUA

Homens livres além das grades

por Paola Bergamini

O preparo de refeições, as oficinas de confeitaria, de papel reciclado, de manequins, de montagem e a central telefônica. Tudo dentro de uma prisão de segurança máxima. Para mais de 50 detentos, a possibilidade de trabalhar. Experimentando uma nova maneira de viver, de ser feliz


“Por favor, a carteira de identidade. A bolsa, você pode deixar no armário. Aqui está o crachá. Pode ir.” O guarda que está do outro lado do vidro abre a porta. Começa a minha viagem por Dois Palácios, prisão de segurança máxima em Pádua, norte da Itália, que abriga 750 detentos e 500 funcionários entre guardas, administradores e assistentes sociais. Longos corredores, outros portões com muitas grades que se abrem e se fecham às minhas costas depois dos controles normais de segurança. “É a primeira vez que vem a uma prisão?” Sim, é a primeira vez. Nicola Boscoletto, presidente do Consórcio Rebus, envolvido nas quatro cooperativas que administram as oficinas onde trabalham mais de 50 presos (vide Box), é quase de casa. Enquanto caminhamos, ele conta: “Tudo começou em 1991 quando, como cooperativa Giotto, participamos de uma licitação aberta pela administração penitenciária para a manutenção das áreas verdes dentro do presídio. Ocorreu-nos a idéia de fazer com que os próprios detentos fizessem o trabalho. Mais: queríamos ensinar-lhes o trabalho. Fizemos uma proposta ao então diretor Oreste Vellica. Assim, nasceu o primeiro curso de jardinagem. Em 2001 abrimos a primeira oficina para a fabricação de manequins para a alta costura em um dos barracões abandonados da penitenciária. Depois, as atividades se multiplicaram: montagem de malas, papel reciclável, uma central telefônica (a primeira na Itália que emprega detentos; nde). Tudo graças à lei Smuraglia (Sem Muros)”.

O refeitório e a confeitaria
Os passos ecoam, passamos por vários guardas e alguns detentos. Nicola cumprimenta alguém pelo nome: “Nos vemos depois”. Chegamos à cozinha. Pessoal uniformizado, tudo limpo, maquinaria de vanguarda. Parece estarmos na cozinha de um grande restaurante. “As refeições, antes, eram feitas pelos presos, mas ninguém os havia ensinado a cozinhar. Resultado: a comida era horrível. E o nível de higiene deixava muito a desejar. Assumimos a direção, adquirimos novas máquinas, que foram deixadas sob a responsabilidade dos detentos encarregados por um cozinheiro que lhes ensinou este trabalho. Hoje, os presos ainda reclamam... mas não devolvem mais os pratos intactos.” Depois vamos para a oficina de confeitaria. A mesma cena: ordem e limpeza, ninguém pára. “A produção vai toda para fora. Neste período de Natal assamos mais de 200 panetones por dia – explica Alessandro, mestre confeiteiro – além dos 50 ou 60 quilos de doces e tortas”. “Como é trabalhar aqui dentro? Com estas pessoas?”, pergunto-lhe. “Temos as mesmas dificuldades que se encontram lá fora.” Isto me desarmou e fiquei pensando que não poderia ter feito pergunta mais estúpida. Até aquele momento eu tinha olhado os rostos daquelas pessoas procurando um sinal do mal que tinham feito, eu, que faço parte do grupo dos “bons”. Pensei nas palavras que Giorgio Vittadini disse exatamente aqui, no dia 9 de novembro, por ocasião da inauguração das atividades das oficinas: “Nós não somos os justos que vêm dar uma ajuda aos que são injustos. Somos pecadores, pessoas que erram mas que descobriram, encontrando pessoas como Dom Giussani, que o desejo de bem é maior”. Um encontro a partir do qual tudo começou. Isso vale para mim e vale para todos. Mudo de olhar e de postura. Pergunto o nome de alguns deles. Explicam-me que a receita do panetone é antiga. Todos saúdam Nicola, que pede informações a alguns. Percebo o relacionamento de estima recíproca que existe entre os que estão dentro e os que estão fora. Trabalham juntos.

Sinais de mudança
“Nós não fazemos assistencialismo”, explica Nicola enquanto nos dirigimos para a sala da central telefônica, depois da visita aos barracões das oficinas, onde nos espera um pequeno grupo de detentos. “Nossos produtos vão diretamente para o mercado. Os detentos sabem disso. Sabem que é preciso trabalhar bem. Nós e eles. Em relação aos números, esta é uma realidade fora do comum para o mundo carcerário. É suficiente dizer que, hoje, a taxa de reincidência gira em torno de 80% e somente 10% dos ex-detentos encontra trabalho. Imagine o que os outros acabam fazendo! Fizemos uma pesquisa entre todas as pessoas que, de 1991 a 2003, aprenderam conosco uma profissão. O resultado demonstrou que para os detentos trabalhadores a taxa de reincidência caiu para 15%!” Eu lhe digo que devem estar orgulhosos com o resultado. Sorri e responde: “Sim, também por isso, mas a descoberta nestes meses foi outra: a possibilidade de um bem, de uma mudança. Isto me fez rever todo o trabalho destes anos, as incompreensões, os momentos difíceis, as conquistas, etc. Para mim e para eles. Para muitos, a pena a ser cumprida é longa e, para alguns, no livro que registra o final previsto para a pena, está escrito: nunca”. É daí que partimos. Releio um trecho da carta que Ilario, um dos detentos, escreveu ao Presidente da República e ao Papa, lida no dia 9 de novembro diante dos jornalistas e das personalidades presentes: “O modelo atual diz que a nossa vida pode mudar se aceitarmos seriamente viver com lealdade e verdade o pouco de bem que nos acontecer”. Pergunto: existe alguma possibilidade de bem? “Eu acredito que o bom emerge quando nos é oferecido algo de inesperado”, diz Alberto. “E quando isso acontece, a pessoa tem um sobressalto e começa a pensar que ainda existe alguém que quer acreditar nela. E volta a ter esperança.” Marino continua: “Mesmo quem está na prisão pelo pior motivo judicial, espera que aconteça alguma coisa. Primeiro no processo, depois espera trabalhar para não passar o tempo estendido sobre uma maca, embrutecendo-se”.

O cozinheiro e o lavador de panelas
“Tem mais – interrompe Gianni –. O doutor Boscoletto nos deu uma outra possibilidade com o trabalho: a de reconquistar a auto-estima. Eu me lembro do primeiro dia do curso de culinária. Quem tinha sido designado para nos orientar disse que o cozinheiro e o lavador de panelas tinham o mesmo valor. Entendi que era uma outra maneira de olhar para o trabalho. Quando o chefe me disse que eu tinha feito bem um prato, fiquei satisfeito. São pequenas coisas que tornam possível perceber o positivo. Acho que muda a mentalidade. Assim, durante o momento social (convivência entre detentos de duas ou mais celas; nde), discutimos sobre quanto tempo se leva para descascar 5 quilos de batata, sobre a nova frigideira e não... sobre como arrombar um carro da maneira mais rápida!”. Riso geral. “Deixando de lado as brincadeiras – continua Alberto – trabalhando você assume responsabilidades. Nós, na fábrica de manequins, chegamos a ter reconhecimento internacional e isto, mais do que gratificações, faz com que cada um saia da despersonalização que a prisão acarreta. De um número de matrícula torna-se um empregado, equiparado a alguém que trabalha lá fora. Você se sente parte do mundo e não um pedaço do muro da prisão. À noite, digo a mim mesmo: fiz dois manequins. Fiz alguma coisa”. “Olhem – intervém Ilario –, este é um modo de se rebelar contra o sistema. O lado bom. Em ação você se recoloca em jogo. É como dizer: eu existo”. Ninguém fica quieto. Esperando com discrição e atenção que o outro termine de falar, todo mundo tem algo a dizer sobre si.

Central telefônica
“Sou estrangeiro, me chamo Altin. Quando abriram a oficina de confeitaria insisti para ser aceito, pois era uma profissão que me interessava. Encontrei mais que uma profissão. Encontrei pessoas que, além de me ensinar o trabalho, confiaram em mim sem olhar para o meu passado ou para minha condenação. Fizeram-me ver que trabalhando com paixão e honestamente é possível ser feliz.” Parece estranho ouvir falar de felicidade aqui dentro, principalmente vindo de alguém que no passado destruiu duramente a felicidade de outros. Mas percebo que é porque ainda existe um pensamento um pouco moralista e sem esperança em mim. Porém, mesmo que tenham que passar 20 anos aqui dentro, eles ainda têm esperança. É algo além das grades. Eles me dizem que aí está a possibilidade de um novo conceito de liberdade. Que constrói. “Só é possível sentir-se livre dentro da prisão se você tem consciência que está pagando uma pena. Deste modo, não é mais a rebelião que determina o seu dia. Aceitar que errei e que devo pagar a minha culpa em relação aos meus gestos contra a sociedade e contra as pessoas que lesei me faz enfrentar a vida um pouco melhor. Não é fácil. Mas faz pensar de um modo diferente no dia em que deverei sair”. “Eu trabalho na central telefônica”, intervém Gianfranco. “Tenho sorte porque posso me comunicar com o mundo externo. Muitos desligam o telefone depois de algumas palavras, mas já aconteceu encontrar pessoas com vontade de falar, que começaram a me contar seus problemas. Lembro de alguém que tinha um tumor e precisava fazer quimioterapia. Naquele momento senti-me afortunado: entendi o valor da vida. A minha vida tinha valor somente pelo fato de estar falando com ele e isso o ter feito feliz. Compartilhando a sua dor eu me sentia livre. Tinha feito algo por alguém. É possível ser livre quando há a possibilidade de doar alguma coisa”.

Um desencadear de coisas bonitas
“Ser livre é ser feliz. E trabalhar dá felicidade. Quando você coloca a sua paixão, o seu desejo – em qualquer coisa que faça – você pode ser feliz. Além do mais, trabalhando, nós somos independentes financeiramente. E isto não é pouca coisa, estando na prisão. Mais: eu, agora, mando dinheiro para minha filha e ela está orgulhosa de mim e eu... estou feliz. Instaura-se uma corrente de coisas bonitas pelas quais, no fim, você se sente livre. De outro modo, torna-se uma prisão dentro da prisão”. “Porém – intervém Boscoletto – encontramos dificuldades, mesmo entre nós...”. “O doutor Boscoletto tem razão. Eu me lembro quando o Chef renunciou. Foi embora por nossa culpa porque não tínhamos mudamos. Agora colocamos um pouco de lado as nossas pretensões e começamos a nos relacionar aceitando as ordens que nos são dadas. Confiamos”. Todos concordam. Mas Nicola argumenta: “Eu acho que foi assim: resolvemos ou descobrimos o instrumento para resolver alguns problemas quando começamos a nos dar, reciprocamente, um pouco de crédito. Dar crédito diz respeito à pessoa não ao objeto de trabalho. Olho o valor, tenho estima por quem está diante de mim. Os problemas continuaram mas a abordagem mudou. Para mim e para vocês. E isto está nos trazendo um pouco de felicidade. Então: estes dois elementos, o crédito e a felicidade, são um pouco anômalos aqui dentro. No entanto, se mantidos presentes como curiosidade no embate com a realidade, fazem perceber um a mais no relacionamento entre as pessoas. Não só isso: é um a mais para o mundo”. Ele pára e me olha: “Entendeu o que eu quis dizer quando falei que não basta ser orgulhosos por aquilo que construímos? Muito mais está em jogo. Para mim”.

Ver a esperança
Ilario escreve em uma carta: “É preciso que, embora pagando aquilo que devemos pagar, cada um de nós seja ajudado a olhar para uma perspectiva e lembrem-se que, quando alguém se dá conta do mal feito, não quer mais deixar de pagar a pena e mesmo depois de pagá-la, a dor que fica no coração é grande. Estes, não são sentimentos comuns entre nós, assim como aquilo que se vê hoje não é a normalidade: é um pequeno grande exemplo. Ajudem a quem se coloca à disposição para nos ajudar, ajudem-nos a encontrar e a ver uma esperança”.

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As atividades e os números do Consórcio Social Rebus

Barracões industriais: 16 empregados
São produzidas máquinas industriais e manequins de papelão para alta costura com patente exclusiva e certificado de qualidade ISO9000. Faz-se montagem para uma conhecida marca de malas.

Papel reciclado: 2 empregados
Uma pequena oficina que, por ocasião dos 700 anos da Capela dos Scrovegni de Pádua, desenvolveu uma linha de objetos de papel reciclado que até hoje alcançam um grande sucesso na Itália e no exterior.

Central Telefônica: 8 empregados
São 28 cabines que oferecem vaga a mais de 50 pessoas. Atualmente desenvolve uma atividade de telemarketing que vende gêneros alimentícios, aquecedores solares, aparelhos de ar condicionado, cursos de formação e pesquisas de mercado. Está em fase de implantação uma filial da Central exclusiva para fazer reservas para a Rede Hoteleira de Pádua.

Alimentação: 24 empregados
A pedido da administração penitenciária, Rebus desenvolve um projeto experimental que prevê a implantação do serviço de distribuição de massas fora da prisão. A mais recente é a confeitaria, com seis presos na escola de mestres confeiteiros.

Informações: www.coopgiotto.com

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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