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Passos N.69, Fevereiro 2006

DESTAQUE - DOM GIUSSANI

Testemunhos

O aniversário da sua morte nos coloca a todos frente à sua herança, que não é somente algo passado, mas um acontecimento presente, que continua a desafiar a nossa razão e a nossa liberdade.
padre Carrón

NO MUNDO O MESMO ÍMPETO
Jesus Carrascosa
Responsável pelo Centro Internacional de CL em Roma

Desde 1996, quando comecei a trabalhar para o Centro Internacional de Comunhão e Libertação, visitando as várias comunidades espalhadas pelo mundo, conheci muitas pessoas, sobretudo jovens. Poucos tinham tido a oportunidade de conhecer pessoalmente Dom Giussani, mas todos me falavam dele e me pediam para levar-lhe uma saudação ou uma carta. Não era algo sentimental, e sim gratidão porque o Movimento havia tocado e mudado o coração deles. E esse é o grande milagre! Tomando contato com essas experiências, comecei a entender melhor o que significa para a pessoa encontrar alguém que Deus assinalou com um carisma. O carisma é como o DNA que se transmite de uma geração a outra, algo que nos marca e que é maior do que a pessoa que o gerou. Assim, para onde vou me sinto sempre em casa: histórias diferentes, situações diversas, às vezes até dramáticas, mas por toda parte encontro alguém que foi tocado pela febre de vida de Dom Giussani, me sinto em casa, sou acolhido como alguém da família. Não porque estou ali para repetir um belo discurso, mas porque pertenço, de fato, à mesma história que, graças a Deus, continua presente, todos os dias.
Eu me lembro sempre da primeira vez que estive em Uganda, no Meeting Point, onde Rose cuida de pessoas afetadas pela Aids, e conheci uma mulher ugandense que tinha apenas mais alguns meses de vida. Tão logo ela me viu, me perguntou se eu conhecia Dom Giussani e se eu tinha a oportunidade de vê-lo. Disse-lhe que o veria dali a dois dias. Ela tomou minhas mãos e me mostrou o livro O Senso Religioso, dizendo: “Agradeça a ele por mim, porque graças a ele encontrei alguém maior e mais forte do que esta feia doença. E morro com a consciência da minha dignidade, por haver encontrado o Cristo”. Nos cinco continentes, era sempre essa mesma realidade.
A partir da força dessa correspondência entre Cristo e o coração de cada um de nós, vi nascerem muitas obras, muitas iniciativas que exigiram muitos sacrifícios. Sacrifícios suportados, porém, com a força do ideal. Penso em Pedro, no Paraguai, numa casa de recuperação de menores delinqüentes, que passa dia e noite com eles, até a noite de sábado, quando volta para a casa dos Memores de Assunção. Penso no Cazaquistão, onde é evidente o contraste entre uma cultura que não tem nada a ver com o cristianismo e a genialidade de Giussani, que entendeu que o coração do homem é o mesmo em toda parte e soube despertar o senso religioso, o desejo de captar o significado último da vida e de tudo.
Depois da sua morte, o ano passado foi todo ele uma comprovação da força da nossa experiência, que se deve à força do carisma. A maior parte das pessoas do Movimento ainda não conhece pessoalmente padre Carrón e espera conhecê-lo. Mas o acompanha de perto, porque compreende que segui-lo é o mesmo que seguir Dom Giussani, com a mesma força da comunhão e da amizade verdadeira que eram próprias dele. Tenho plena consciência de que Giussani está presente, não como sentimentalmente muitos dizem de pessoas que já morreram, como os idealistas diziam, por exemplo, de Che Guevara. Aqui está presente o carisma que o Senhor doou a Giussani. Essa é a nossa força, que vive na nossa comunhão.

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A LIGAÇÃO COM O PADRE JOE
Tony Hendra
Escritor

Quando o meu livro Father Joe (relato autobiográfico do relacionamento entre o autor e um monge beneditino, nde) foi publicado, o caráter extraordinariamente sábio e divertido do padre Joe tocou o coração de pessoas de todas as religiões, até de pessoas que não tinham fé alguma. Depois, um dia fui entrevistado por um rapaz de CL, de fisionomia séria, Tom, que havia feito a recensão do livro para um site católico. Durante a nossa conversa, de repente Tom disse que havia interpretado o livro do seguinte modo: padre Joe foi Cristo para mim. Uma intuição perfeita e aparentemente simples que, para dizer a verdade, jamais me ocorrera. Por isso, imediatamente ela lançou um jato de luz sobre grande parte daquilo que eu havia escrito a respeito do padre Joe: sobre o fato de o padre Joe atribuir importância fundamental ao que era comum, quotidiano, rotineiro; de se fazer experiência de Deus a partir disso; de que só através da humanidade do outro se pode tocar o divino. Com a sua vida, padre Joe havia me mostrado a possibilidade, ou melhor, a realidade da Encarnação.
Não posso dizer que sou membro do Movimento; todavia, depois desse episódio nasceu uma ligação com CL. Quanto mais eu conversava com os meus novos amigos de CL, mais percebia que eles não só sentiam uma ligação especial com o meu adorado beneditino, mas também que eram capazes de iluminar, de um modo surpreendente, aquilo que eu havia vivido junto com ele. Obviamente, aprofundei o estudo do pensamento e da história de CL, e ao fazê-lo ficou claro para mim que essa clareza derivava principalmente da importância atribuída por Dom Giussani à humanidade de Nosso Senhor, e à imediatez e normalidade da experiência que fazemos dEle no mundo moderno.
Descobri muitas outras coisas no meu próprio livro, coisas cuja existência eu mesmo ignoraria, não fosse o contato com os filhos e as filhas de Dom Giussani. Um episódio excepcional aconteceu no ano passado no Meeting de Rímini, durante um encontro sobre o tema da liberdade. De repente, me vi dizendo que a liberdade física, intelectual e espiritual é um direito humano universal, mas “a verdadeira liberdade só acontece a partir do perdoar e do ser perdoado”, pensamento esse que nunca havia me ocorrido antes. Não saberia dizer se ele me foi sugerido por padre Joe ou Dom Giussani! Estou certo de que ambos encontraram estradas parecidas para viver a realidade da Encarnação no panorama hostil e pouco promissor do século vinte; ambos deram um novo significado à noção de paternidade espiritual, unindo mais uma vez paterno e eterno. Tenho certeza de que os dois, quando finalmente se encontraram no Paraíso, um reconheceu imediatamente no outro um espírito afim.

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MESTRE DE HOMENS
Ermete Realacci
Deputado italiano

Não tive a felicidade de conhecer pessoalmente Dom Giussani. Conheci-o por meio dos seus escritos, das suas idéias e, sobretudo, do encontro com pessoas que foram formadas por ele. Uma maneira de julgar as coisas que é essencial para quem, de alguma forma, exerce uma função pública. Dom Giussani era um mestre de homens. Um traço da sua ação, visível nos seus discípulos, caracteriza-o como uma presença importante e positiva nas últimas décadas da nossa história. Tive a oportunidade, muito antes do meu compromisso parlamentar, de trabalhar junto com Giorgio Vittadini, Raffaello Vignali e expoentes da Companhia das Obras. Obviamente, às vezes tínhamos pontos de vista e sensibilidade diferentes. Sempre, porém, encontrei traços de um componente que julgo fundamental na vida política: a curiosidade e a simpatia pelas pessoas de carne e osso, com suas paixões, suas esperanças, seus limites. Talvez por isso freqüentemente mantive com eles uma extraordinária sintonia. A própria positividade do trabalho realizado com o grupo de parlamentares depende muito disso.
Por ocasião do velório de Dom Giussani, aconteceu um longo e interessantíssimo encontro-relato entre eu que chegava com Romano Prodi (líder do centro-esquerda italiana; nde) com Vittadini, Vignali e Cesana. Conservo, dessa experiência, uma lembrança muito intensa. Compreendi melhor muitas coisas: o início dos anos 60, a encruzilhada de 68, o nascimento da Companhia das Obras. Seguramente nos aproxima a idéia de que os contornos do futuro devem ser traçados agora, no presente, e que a nossa missão é descobrir e valorizar os talentos, mesmo quando estão ocultos, e que devemos dar às diversas histórias uma dimensão comum. “Ser, sem deixar de querer-ser; querer-ser, sem deixar de ser”, dizia Calvino. Eles me disseram que Dom Giussani gostava muito de Calvino. A ele gostaria de dedicar um maravilhoso trecho de As cidades invisíveis: “O inferno dos vivos não é algo que virá; se é que ele existe, já está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós mesmos formamos quando estamos juntos. Há dois modos de não sofrê-lo. O primeiro é fácil para muitas pessoas: aceitar o inferno e passar a fazer parte dele, a ponto de não mais enxergá-lo. O segundo é arriscado e exige atenção e aprendizado contínuos: procurar e reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e fazê-lo perdurar, dar-lhe espaço”.

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A CERTEZA DA FELICIDADE
Padre Pierino Gelmini
Fundador da Comunidade Encontro, destinada à recuperação de tóxico-dependentes

“Devo dizer que vim aqui (à Comunidade Encontro) movido por grande entusiasmo, porque perto do padre Gelmini qualquer um se sente, não digo um outro homem, mas um homem mais verdadeiro” (Mulino Silla di Amelia, Dom Luigi Giussani).
Dom Luigi tinha a capacidade de “entender” o homem, cada pessoa – em sua existência concreta, mas para além do fenômeno –, dentro do projeto de Deus. E isso, para o homem abstrato (retirado da realidade, porque tomado pelas coisas finitas), é um sonho. Por isso digo às pessoas: “Sonhem junto comigo!”. Como dizia Giussani: “A medida do homem é a medida do seu desejo... e não é verdadeiro desejo se não for uma exigência”. Mas a exigência nasce da necessidade. Ensinar a pessoa necessitada a sentir a necessidade, a reconhecê-la, é o primeiro passo para a verdade sobre si mesmo. E essa é a Escola da Comunidade Encontro: ajudar quem está necessitado a reconhecer a própria necessidade. Como dizia Dom Luigi: “Essa busca, feita sozinho, leva à desilusão e à renúncia; o remédio é buscar uma companhia que acompanhe o nosso esforço: pertencer à solidariedade”. Mas mesmo a companhia, quando entregue à instintividade, dura pouco.
“A companhia é como um organismo, que só se torna capaz de ação, construção e realização, se souber expressar-se por uma cabeça. Como ponto de referência sintético” (veja Cristo e a sua Igreja). Se há uma cabeça, a desilusão de sentir-se impotente, triste, solitário, dissolve-se na confiança nela, na obediência a ela, na disponibilidade. A experiência de mais de 40 anos de Comunidade Encontro é, para mim, a confirmação de que – como dizia Chesterton – “Um mais um não é igual a dois, mas a duas mil vezes um”. A comunidade multiplica as nossas capacidades. Dom Luigi nos indicou dois perigos: a tristeza imobilizante e a institucionalização. A tristeza imobilizante frente à nossa necessidade nos deixa sós e não nos faz ver o caminho e o profeta, que desperta as nossas energias. As instituições oficiais, se não forem conduzidas por pessoas generosas, disponíveis, que sabem trabalhar juntas e obedecer a uma cabeça, se revelam indiscretas e inadequadas; e aí a pessoa fica com a sua impotência e o desejo insatisfeito. “Sem obediência e se não se seguir alguém, não se cria nada. Dispersam-se as energias, perdem-se as forças, perde-se tempo” (Dom Luigi Giussani).
Isso supõe a experiência de vida vista como prova, não como injustiça; porque o homem é feito para a felicidade, e por isso não se explica como é que a injustiça domina o mundo. “O sentido da vida – dizia Dom Luigi – é a certeza da felicidade”.
Só assim tem sentido qualquer tipo de estrada dolorosa. E tem um sentido em si mesma; não para (e antes da) solução positiva que cremos encontrar ao tentar fazer justiça neste mundo.
“Os fundadores têm dentro de si algo que não é deles, e que só eles sabem transmitir, porque viajam por labirintos e dificuldades muito perigosos e por terras jamais exploradas por alguém. Sua intuição, em certos momentos, não pode ser menosprezada, sob pena de cairmos em choros e descaminhos” (“Fiori di mare”, 69).
Dom Luigi, como todos os que são chamados a ser guias, profetas, fundadores, chefes, assemelha-se a Moisés: o povo o segue porque ele é o chefe, embora não possua nada (não tem título real nem terras, não tem projetos nem exércitos). É o próprio povo oprimido, seguindo o seu guia, que gera a liberdade, que descobre a terra, terra que já fora prometida, uma promessa certeira porque “o sentido da vida é a certeza da felicidade”.

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Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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