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Passos N.68, Dezembro 2005

DESTAQUE / BRASIL

No resgate da dignidade da pessoa humana,
um caminho para o Brasil

por Francisco Borba Ribeiro Neto

O documento 80 produzido pela CNBB em sua 43ª Assembleia Geral, Evangelização e Profetismo – Missão da Igreja diante dos desafios atuais, apresenta uma visão rica e profunda do Brasil contemporâneo, um país onde o pluralismo cultural e étnico, a pobreza e a exclusão social convivem com as mais sofisticadas pesquisas em biotecnologia. Em resposta aos desafios encontrados, os bispos indicam a urgência de uma evangelização profética, que anuncie a dignidade da pessoa humana

A 43ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que aconteceu em agosto de 2005, considerou que estão postos três grandes desafios à sociedade brasileira e à Igreja neste momento: o pluralismo cultural e religioso, a exclusão social persistente no Brasil e as questões éticas decorrentes das novas biotecnologias. Na apresentação do documento síntese da assembleia, Evangelização e Profetismo – Missão da Igreja diante dos desafios atuais, o secretário geral da Conferência, Dom Odilo Pedro Scherer, declarou que: “A escolha desse tema, vasto e complexo, foi motivada pelo desejo dos Bispos de oferecerem sua palavra de discernimento e orientação para os cristãos católicos e para toda a sociedade sobre esses novos desafios...
A palavra profética, por vezes, é crítica, sobretudo quando estão em jogo a dignidade da pessoa, a sacralidade da vida, a justiça social e a forma de viver a religião. Mas também é uma palavra carregada de esperança, pois brota da certeza de que a verdade e o bem sempre encontram corações sensíveis e meios de se afirmar, uma vez que estão fundados em Deus. O Espírito de Deus trabalha sempre e continua a renovar a face da terra”.
Dom Odilo salienta ainda, em sua apresentação, que o documento remete necessariamente para todo o vasto patrimônio do magistério da Igreja, especialmente as encíclicas pontifícias. Tanto pela sua abrangência quanto pela sua profundidade, o texto representa um importante subsídio para se refletir sobre a realidade brasileira.
No documento, os Bispos observam que a secularização da cultura moderna, a falência das utopias sustentadas pelas promessas do iluminismo e a força desagregadora do processo de globalização balizado por critérios puramente econômicos voltados para o consumo geraram um vazio tal de esperança e de valores que a missão de evangelizar se torna cada vez mais urgente. Trata-se, explicam, de anunciar o evangelho como o único caminho possível de salvação e de resposta para os graves problemas que nos afligem. Por isto sentem a necessidade de um aprofundamento da dimensão profética da ação evangelizadora diante dos desafios que a nova cultura coloca. Sobre isso, João Paulo II observou: “uma fé que não se torna cultura é uma fé não plenamente acolhida, não inteiramente pensada e nem fielmente vivida” (Carta instituindo o Conselho Pontifício da Cultura). Mas uma evangelização que queira atingir as raízes da cultura deve se realizar sempre a partir da pessoa “fazendo continuamente apelo para as relações das pessoas entre si e com Deus” (Paulo VI, na encíclica Evangelium Nuntiandi).

O testemunho da fé cristã e o pluralismo cultural e religioso
O documento 80 traça um amplo painel do contexto atual, mostrando os desafios contemporâneos como resultado do cruzamento tanto de fatores socioeconômicos quanto culturais. No ambiente de fragmentação e desencanto que caracteriza a cultura pós-moderna, emergem as mais diferentes tentativas de resposta à aflição e ao vazio, onde um justo pluralismo cultural é substituído por um relativismo individualista, onde a ausência de respostas verdadeiras cede à compulsão pelo prazer e a submissão ao mercado. Sem referenciais éticos fundamentados, instaura-se a situação de um aparente “vale tudo”, onde a dignidade da pessoa humana é aviltada e o sentido da vida é perdido.
Com grande lucidez, o documento retoma a importância de que fé e razão andem juntas, pois no contexto deste relativismo ético é indispensável que os cristãos possam dar as razões das próprias escolhas. Ao mesmo tempo, as iniciativas de catequese e formação, e a ação missionária devem enfatizar que o cristianismo não é um discurso, mas um acontecimento, um fato real: a pessoa de Jesus Cristo, do próprio Mistério que resolveu entrar na história e mostrar um rosto humano, revelar-se, encarnando-se. Uma fé consciente, que não se confunde com uma ideologia a mais no mercado de ideias, mas que se baseia no encontro pessoal com Ele, surge assim como a pedra de toque para o diálogo entre os cristãos e o mundo pluralista atual. O texto valoriza a consciência que a Igreja tem de si mesma e a experiência de novidade que acontece na vida dos cristãos, mostrando como o caminho de diálogo se dá pelo testemunho desta pessoa renovada no encontro com Cristo.
A Igreja, no seu anúncio profético, assume o desejo humano de realização, de plenitude, de sentido, afirmando que este desejo é respondido em Jesus Cristo. Ele não é um fato do passado, mas permanece na história, nos sacramentos, na sua palavra e, de forma pessoal e real, na Igreja, com o rosto histórico da comunidade cristã. Por isto, pode ser encontrado hoje, por meio das suas testemunhas – os cristãos.
A pessoa que se reconhece amada gratuitamente, sustentada e orientada por Jesus, descobre a possibilidade de perdoar e acolher com o mesmo amor aos outros. Experimenta uma fortaleza interior, uma capacidade de doação que não podem ser confundidas com a generosidade natural da pessoa, que facilmente se esgota e se desilude diante das dificuldades e das possíveis incompreensões. A capacidade de fazer dom da própria vida para o bem de outros, nasce, acima de tudo, da certeza de que Ele está presente em nossa vida e a abraça, conduzindo-a para um destino bom.
O testemunho caracteriza-se pela gratidão: a pessoa é grata pelo encontro feito, pela vitória sobre a solidão, pela esperança diante dos problemas, pela resposta que já começou a verificar. Em segundo lugar, caracteriza-se pela gratuidade: a amizade oferecida, o trato respeitoso e acolhedor, não são calculados em vista de um retorno, mas constituem gestos gratuitos. Isto atravessa qualquer diversidade de postura cultural, ética e religiosa.
O texto continua mostrando como, no Brasil, a riquíssima experiência das Comunidades Eclesiais de Base assume toda a sua fecundidade nesta consciência de ser um lugar de encontro com Cristo, de experiência de uma humanidade renovada e de uma fraternidade em comunhão com a Igreja. Por isto, as comunidades eclesiais que queiram durar no tempo devem educar-se na fé, na esperança e na caridade, por meio de uma formação permanente. Só assim conseguem manter-se vivas e dar frutos através do tempo, nas mais diversas situações culturais e políticas.
Assim, o diálogo ecumênico nasce, nesta perspectiva, não de uma relativização das posições de cada um, mas da consciência desta fraternidade em comum com Cristo. A capacidade de estar junto com os outros homens, lutando pela construção de um mundo melhor, nasce da experiência de uma humanidade mais intensa, mais apaixonada por tudo o que é humano.

O compromisso da Igreja em favor da inclusão social
O documento da CNBB lembra que, apesar da sociedade brasileira evoluir e se transformar, de o país se desenvolver e produzir cada vez mais riqueza, o flagelo da pobreza e da miséria continua. Cinquenta e cinco milhões de pessoas vivem na pobreza. Por traz desta situação encontra-se o fenômeno da exclusão social, que não permite que amplos setores da população tenham acesso à riqueza gerada pelo progresso.
O documento frisa que a exclusão não diz respeito apenas à pobreza material. Não se trata apenas do direito de viver, mas também do direito de viver com dignidade, de viver plenamente. Assim, os Bispos lembram a encíclica Populorum Progressio, que insiste sobre o direito a um desenvolvimento integral da pessoa, incluindo suas dimensões ambiental, espiritual, relacional e até psico-afetiva, como o direito de ter acesso à formação espiritual e religiosa, ou o direito (em particular para crianças, adolescentes e pessoas idosas) de receber atenção, cuidado e afeto de parte dos outros. Excluídos são todos os que são privados dos seus direitos elementares para viver com dignidade humana.
O desafio de superar a exclusão apresenta aspectos técnicos, políticos, éticos e espirituais, segundo os bispos. Depende de mudanças nos comportamento individuais e de decisões e políticas coletivas em âmbito nacional e internacional. Superar a exclusão é um desafio para cada pessoa, e para todos os grupos e entidades de cada país. Assim, no campo das ações concretas, o documento lembra a responsabilidade do Estado, com políticas públicas que combatam a exclusão. Em paralelo, o documento salienta também o papel da sociedade civil na superação desta situação de exclusão.
Neste sentido, é muito interessante sua leitura em paralelo com o Compêndio de Doutrina Social da Igreja, recém-lançado no Brasil. Este livro recapitula os fundamentos do ensinamento social presente nos documentos eclesiais, mostrando como – a partir do princípio fundamental que é a pessoa – articulam-se os vários princípios que permitem a construção do bem-comum. Em particular, é interessante ver o princípio da subsidiariedade, que articula a ação do Estado e da sociedade civil, de modo que o Estado subsidie – isto é, ajude – as forças vivas da sociedade para que estas construam, com liberdade e criatividade, as soluções para seus problemas. Trata-se de despertar um protagonismo social e político que toma a iniciativa, usa a criatividade, enfrenta os problemas concretos e, a partir de atividades em andamento, provoca o envolvimento da administração pública, para que dê suporte técnico, financeiro, favorecendo a consolidação e a ampliação dessas obras. Atualmente a subsidiariedade é muito valorizada porque abre um novo caminho entre um liberalismo que torna a sociedade uma selva onde o mais forte ganha e que teoriza a omissão do Estado, e um estatismo que deixa espaço somente à ação do governo, tolhendo a liberdade e a criatividade da sociedade civil.

Biotecnologias e dignidade humana
Por que as novas biotecnologias se tornaram um problema tão importante no Brasil hoje em dia? Vários fatores se somam para criar o atual quadro, onde um novo debate bioético ocupa espaço na mídia praticamente a cada semestre. Veja-se, por exemplo, as discussões sobre a aprovação de organismos transgênicos na agricultura, o uso de embriões humanos excedentes das técnicas de reprodução assistida (células-tronco embrionárias) na pesquisa biomédica e, atualmente, a legalização do aborto. Dizer que as novas biotecnologias aumentaram o poder sobre a biologia do homem e dos demais seres vivos responde a parte da questão, mas não a toda ela.
Vivemos um período marcado pelo que João Paulo II, na sua encíclica Evangelium Vitae, chamou de “cultura da morte”. O individualismo, o hedonismo e o utilitarismo atuais são a base da “ditadura do relativismo”, onde não existe um fundamento que possa ser a base sólida de uma reflexão ética que valorize a vida. Trata-se de uma visão de homem na qual a pessoa humana não tem mais um valor absoluto, consequência natural de seu existir no mundo como ser autoconsciente. Nesta cultura, a morte dos indefesos ou dos que sofrem pode ser justificada em função de um aparente bem-estar e conforto de outros. Assim se justifica a eutanásia, o aborto, a pesquisa com embriões humanos: aos velhos, aos doentes, aos ainda não-nascidos não é reconhecido o direito à vida e à esperança.
Esta tragédia tende a se agravar com o fracasso das propostas utópicas de construção de uma nova sociedade ideal, que nasceria como simples ato da vontade quando forças “progressistas” chegassem ao poder. À medida que se percebe que a construção de uma nova sociedade é um trabalho muito mais difícil e demorado do que se imaginava, surge a necessidade de criar novos sonhos e ilusões, para manter a ideia de que as forças progressistas estão realmente criando um mundo novo. O incentivo às novas biotecnologias, mesmo que sem as devidas precauções e com pequenas chances de êxito, a liberação do indivíduo de seus ditames éticos e de suas responsabilidades são formas relativamente fáceis de vender estas ilusões de construção de uma nova sociedade onde os homens são mais felizes. Assim, enquanto os programas de saúde pública básica do governo enfrentam grandes dificuldades para serem viabilizados, se fomentam políticas públicas de saúde que viabilizem o acesso a caríssimas tecnologias de reprodução assistida (bebê de proveta). Em um momento que o Brasil enfrenta uma crise política fundada em problemas éticos, investe-se maciçamente na aprovação de uma lei pró-aborto.
Diante desta realidade, o documento da CNBB reafirma uma série de posições básicas do Magistério da Igreja: a dignidade incondicional da vida desde o momento de sua concepção, e a consequente condenação do aborto – mesmo de anencéfalos – e da pesquisa com embriões humanos; a condenação à eutanásia; a defesa da pesquisa cuidadosa com organismos transgênicos e células-tronco adultas, desde que tomadas as devidas precauções e evitando-se colocar na ciência a responsabilidade de resolver o que necessariamente só será resolvido com mudanças ética e sociais.
O documento termina suas observações sobre a bioética solicitando o cultivo da ternura; a capacidade de admirar as maravilhas da criação; o desenvolvimento de uma consciência crítica que alimente o senso do realismo diante de vãs promessas; o desenvolvimento de uma consciência ecológica no sentido da concatenação de todas as formas de vida; a consciência das limitações próprias da condição humana e do sentido destas limitações e até mesmo do sofrimento; da solidariedade sobretudo para com os mais fracos.

Conclusão
Diante deste quadro, de sua complexidade e de sua riqueza, compreende-se as palavras de João Paulo II na Novo Millennio Ineunte, quando afirma que não se pode aceitar “a perspectiva ingênua de que, diante dos grandes desafios do nosso tempo, possa existir uma fórmula mágica. Não, não uma fórmula nos salvará, mas uma Pessoa, e a certeza que ela nos infunde: Eu estou convosco! Não se trata, então, de inventar um ‘novo programa’. O programa já existe: é o de sempre, recolhido pelo evangelho e pela Tradição viva. Ele concentra-se, em última instância, em Cristo mesmo, a ser conhecido, amado, imitado, para viver nele a vida trinitária, e transformar com Ele a história até a sua realização na Jerusalém celeste”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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