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Passos N.68, Dezembro 2005

LITERATURA / C. S. LEWIS

Na casa de Lewis sem Lewis

por Anna Leonardi

Tendo lido todas as obras de Lewis resolveu lhe escrever e foi conhecê-lo. Assim tornaram-se amigos. Depois, também graças ao autor irlandês, veio a conversão do anglicanismo ao catolicismo

Walter Hooper, 74 anos, americano, reside em Oxford desde 1963, desde quando Lewis o escolheu como seu secretário. Quando da morte do escritor, tornou-se seu principal biógrafo e o curador das suas obras. A seguir, a entrevista que concedeu a Passos, por ocasião do encontro organizado pelo Centro Cultural de Milão.

Conte-nos como nasceu o seu relacionamento com Lewis. O senhor era um simples leitor das obras dele, depois correspondente epistolar e, enfim, caro amigo e colaborador...
Eu vivia na Carolina do Norte (EUA); depois de terminar a universidade, me alistei no exército e levei comigo o primeiro livro de Lewis: Milagres. Descobri o escritor mais penetrante que jamais conheci, profundo e claro (geralmente, qualidades mutuamente excludentes!). Assim, mergulhei na leitura de todas as suas obras. Em 1954, decidi escrever-lhe. Agradeci-lhe pelos seus escritos, porque me faziam crescer como cristão. A partir desse momento, nasceu uma cerrada correspondência, que culminou com o encontro pessoal, em junho de 1963. Ele me pediu para ir visitá-lo em Oxford. Eu imaginava um encontro formal e rápido; no entanto, ele superou em muito a beleza dos seus livros; Lewis tinha a capacidade de fazer com que nos sintamos “grandes”, mesmo sendo pequenos; seu calor humano nos deixava à vontade: entendi que ele sempre aguardava alguma coisa do interlocutor. Ele me convidou várias outras vezes, naquele verão. Tomávamos um chá, ou uma cerveja no pub; no domingo, íamos à igreja. Ele me pediu para participar do círculo dos Inklings, como ouvinte. Depois de um certo tempo, me disse que precisava de um secretário: seu irmão, que o ajudara até aquele momento, tinha graves problemas de alcoolismo. Pediu que eu renunciasse ao meu trabalho de docente nos Estados Unidos. Passamos aquele verão fazendo projetos sobre o andamento do trabalho, depois parti de volta para Kentucky, onde lecionaria por mais um trimestre; e em seguida, me transferiria definitivamente para Oxford. Mas no dia 22 de novembro fui surpreendido com a notícia da sua morte. Depois de alguns dias de desorientação, todos os amigos de Lewis me convenceram a dar prosseguimento ao trabalho. E, assim, passei a viver na casa de Lewis, sem Lewis. E nos últimos 40 anos me dediquei a publicar e promover toda a sua herança literária.

O senhor era anglicano e se tornou católico. Como ocorreu a conversão? Lewis, que era anglicano, o ajudou nessa passagem? É curioso que também Thomas Howard (um dos maiores especialistas em Lewis) tenha abandonado a Igreja evangélica e aderido ao catolicismo. Há algo de católico em Lewis?
Mudei-me para a Igreja católica em 1988, depois de décadas de tormento. Converter-se do anglicanismo para o catolicismo, em terra anglo-saxônica, cria para a gente um monte de problemas. De fato, perdi todos os amigos. Sabiamente, o Bispo a quem eu me dirigi me aconselhou a ir para os Estados Unidos, onde o clima cultural era diferente. E assim fiz. Finalmente, então, me senti feliz, acolhido. A solidão que eu sentia há muito tempo começou a se dissipar. Depois de anos tentando salvar a Igreja da Inglaterra, decidi permitir que a Igreja católica me salvasse. Sim, porque na Igreja anglicana daqueles anos reinava uma grande confusão: nos anos 60, o Sínodo decidiu submeter à votação a doutrina da Igreja (e, desse modo, resolver até a questão da ordenação de mulheres). O próprio clero havia perdido a sua fé dogmática, e isso ficou evidente quando, há alguns anos, a revista Spectator entrevistou muitos Bispos e ficou claro que nenhum deles acreditava na Ressurreição. Lewis, no ensaio O cristianismo tal como ele é, descrevia o coração da fé sem enfatizar as várias diferenças, valorizando o patrimônio comum. Mas compreendi cada vez melhor que os únicos que criam e entendiam o que Lewis diz nesse livro eram os católicos. As coisas tinham atingido um estágio tal que quase tudo o que Lewis defendia só podíamos encontrar na Igreja de Roma. Para Lewis, Cristo era um fato: “Cristo é, sim, um mito, mas um mito que realmente aconteceu”, afirma ele numa carta. Para ele, a encarnação, a ressurreição, os milagres, os anjos, o diabo, o inferno e o paraíso eram coisas verdadeiras, realmente existentes. Eu me lembro de uma vez em que ele me disse, em sua casa: “Pobre Lázaro, teve que morrer duas vezes!”. Eu achava que ele estava falando de um parente, ou de um vizinho, depois perguntei: “Mas você está falando do Lázaro da Bíblia?”. “Claro! Mas ele não sabia que era bíblico!”. Lewis tinha uma confiança, uma certeza, em relação aos conteúdos da fé, exatamente como a tinham os apóstolos. Também a crítica de Lewis ao relativismo no campo ético é algo que sinto muito forte na Igreja católica. Em O veneno do subjetivismo escreve: “Se não houver um padrão imutável, o progresso é impossível; se o bem é um ponto fixo, pelo menos podemos nos aproximar cada vez mais dele; mas se a estação for tão móvel quanto o trem, como é que o trem pode se aproximar dela?”.

Neste mês será lançado As crônicas de Nárnia, filme baseado no romance-fantasia de Lewis. Como aproximar-se desse gênero cinematográfico/literário, tendo presente as preocupações do autor?
Lewis fez um esforço de imaginação, usou a fantasia para descrever uma coisa real. Criou essa terra de Nárnia e supôs que, assim como o filho de Deus se tornou homem em nosso mundo, se torne leão nessa terra fantástica e imaginou o que poderia ter acontecido. Na intenção de Lewis havia o desejo de levar às crianças a beleza e o encanto do cristianismo. Não devemos fazer uma abordagem problemática. Deixemos que a história se desenvolva, que os eventos aconteçam, e então descobriremos, comovidos, a nós próprios. É preciso olhar essa fábula de um ponto de vista diferente, sem ficar pensando: “Ok, vou ver um filme que é uma metáfora religiosa, cristã”. Uma ilustradora de uma edição desses contos, quando pintava o leão Aslan, ensangüentado e moribundo, caiu num choro profundo, e entendeu que o motivo da sua comoção era que Aslan, que havia sacrificado a vida pela salvação dos seus pequenos amigos, lhe recordava Cristo. Na minha opinião, Lewis fez uma coisa profundamente original: desenvolveu a doutrina cristã dentro de um mundo imaginário. E, sinceramente, para mim é difícil ver alguma dicotomia entre a fantasia de Lewis e o que realmente aconteceu.


SERVIÇO:
As Crônicas de Nárnia
Volume Único
Autor:  Lewis, C. S.
Editora: Martins Fontes
1ª Edição - 2005 - 752 pág.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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