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Passos N.68, Dezembro 2005

CONCÍLIO VATICANO II / 1965-2005

Movimento e Concílio:
novidade na continuidade

por Alessandro Banfi

O Concílio Vaticano II, nos anos sessenta, representou uma grande “renovação na continuidade”. Para os que não conheceram a vida da Igreja antes dele é difícil imaginar quantas mudanças houveram. Num momento em que a Igreja sentia, de modo urgente, a necessidade de aprofundar o encontro entre o homem e o rosto de Cristo ressuscitado, Dom Giussani convidada a viver a renovação. A seguir, entrevista com padre Massimo Camisasca

Já se passaram 40 anos do encerramento do Concílio Vaticano II. Conversamos a respeito com o padre Massimo Camisasca, superior da Fraternidade sacerdotal dos missionários de São Carlos Borromeu e, também, autor da trilogia dedicada à história de Comunhão e Libertação. O tema, de fato, é: que relação existe entre Dom Luigi Giussani, o Movimento de CL e o Concílio? Padre Massimo sugere que partamos dos anos que precederam o Concílio.

O Vaticano II nasce como resposta a uma exigência difusa, muito próxima daquela que foi o ponto de partida do jovem Giussani...
O Concílio vem de longe. Houve uma preparação remota para ele, nos campos bíblico, teológico, litúrgico e também ecumênico. De onde vinha essa exigência difusa, se não do próprio povo de Deus, pelo menos em alguns ambientes mais vivos dele? Pensemos, por exemplo, no grupo que se reunia em torno do ensinamento de Romano Guardini (um dos mais importantes pensadores do século XX, orientador de von Balthasar, fez uma aguda análise da cultura moderna e reuniu em torno de si vários dos maiores intelectuais católicos do seu tempo; nde). Vinha de um profundo mal-estar com uma teologia que se tornara, muitas vezes, intelectualista, de uma liturgia que parecia distante e pouco compreensível, de uma Igreja muitas vezes identificada simplesmente com a hierarquia, da divisão sentida entre as ciências históricas, filosóficas, bíblicas e a vida do povo cristão.
Esse desconforto explode com o chamado “modernismo”, no início do século passado. Eu penso que o Concílio Vaticano II nasceu justamente de uma precisa vontade da Igreja de enfrentar esse mal-estar, a divisão entre fé e vida, que foi denunciada como o mal mais grave da Igreja daqueles anos.
Não quero estabelecer paralelismos indevidos. Não há dúvida, porém, que a compreensão de Dom Giussani estava muito próxima daquela do Vaticano II. Já no início da entrevista com Robi Ronza (O Movimento Comunhão e Libertação, edição Jaca Book), falando da situação da Igreja de então, Giussani diz, por exemplo: “O fato cristão e eclesial não era uma realidade popular, não era mais um acontecimento para o povo, mas somente um conjunto abstrato de preceitos e de práticas rituais”. Essa preocupação estava tão enraizada no espírito de Dom Giussani que ele vai repeti-la 30 anos depois do nascimento do Movimento e 20 anos depois do encerramento do Concílio, em seu discurso no Sínodo sobre o laicato, quando dirá: “O que falta não é tanto a repetição verbal e cultural, e sim a experiência de um encontro”. Naqueles que preparavam o Vaticano II e em Dom Giussani havia a necessidade de se estabelecerem novas fronteiras para a Igreja, e essas fronteiras eram os corações dos homens. Deixar para trás as controvérsias de sacristia, os debates intelectualistas. A linguagem de Dom Giussani e aquela do Concílio são diferentes, mas se levarmos em consideração a linguagem original do Concílio, aquela do Papa João XXIII, veremos emergir aí uma preocupação que não é diferente da de Dom Giussani. Ouçamos de novo, por exemplo, a radiomensagem do Papa, de 11 de setembro de 1964, um mês antes da abertura da primeira sessão do Concílio, transmitida, via rádio, para o mundo todo: “O mundo precisa de Cristo: e é a Igreja que deve levar Cristo ao mundo”. E no discurso de abertura, João XXIII disse o seguinte: “O objetivo principal do Concílio não é a discussão deste ou daquele tema da doutrina fundamental da Igreja [...]. É necessário que essa doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e apresentada de modo que corresponda às exigências do nosso tempo”. Ainda na radiomensagem acima citada, o Papa João havia falado da necessidade de se renovar o encontro entre o homem e o rosto de Cristo ressuscitado.
Falou-se, na época e logo em seguida, da necessidade de um aggiornamento (atualização). Esta palavra vem de giorno, e esse termo quer dizer dia, e o dia implica na luz. Não por acaso, a constituição conciliar sobre a Igreja chama-se Lumen Gentium (Luz dos Povos), e a Luz é Cristo. É preciso reencontrar a luz, isto é, o fascínio do cristianismo. No livrinho Realizar o Concílio, que contém os registros do Congresso organizado por Comunhão e Libertação em outubro de 1982, passados 20 anos da sessão inaugural da assembléia ecumênica, no relatório conclusivo padre Angelo Scola dizia então: “Se o Concílio testemunha a necessidade de uma relação ontológica com Cristo, como gerador da salvação, Comunhão e Libertação fez dessa necessidade a norma suprema do método”.
O fato de o Concílio ter visto a si mesmo como um sínodo eminentemente pastoral coincide com a tentativa realizada por Dom Giussani. Ele sustentava, como dissemos, que não era suficiente repropor a doutrina cristã, mas era preciso descobrir o método pelo qual as pessoas poderiam viver o cris-tianismo em nosso tempo. Ele cultivava essa preocupação fundamental já desde os tempos de seminário, em razão de uma inata e viva percepção da originalidade do evento cristão e também pelos estímulos que recebia de muitos dos seus professores. A escola de Venegono procurava realizar uma profunda renovação da teologia e do ensino teológico. Seus professores, em particular Gaetano Corti, Giovanni Colombo e Carlo Colombo, haviam plantado no coração de Giussani um antiintelectualismo muito fecundo, que nele se tornara – por meio do encontro com Leopardi e, depois, com outros autores – a descoberta daquilo que ele chama de “a constituição elementar do coração do homem”: o desejo da verdade, da felicidade, da justiça, da beleza, que encontra em Cristo, Verbo feito carne, a sua resposta adequada.

Depois começa o Concílio propriamente dito...
Dom Giussani não falava muito do Concílio nas aulas, enquanto este se realizava (ele foi meu professor justamente naqueles anos). Acho que isso se devia à sua preocupação de não encher a cabeça dos jovens com discursos clericais. Não queria dar a impressão de fechar o seu discurso dentro de uma dialética interna à Igreja. Isso não queria absolutamente dizer que ele se desinteressava pelo Concílio. Milano Studenti, a revista de Juventude Estudantil (primeiro núcleo de Comunhão e Libertação; nde), seguiu o acontecimento conciliar com notícias, aprofundamentos e entrevistas com padres e peritos conciliares. Conferências e debates sobre o andamento dos trabalhos se realizaram naqueles anos no âmbito do Movimento, com a participação de protagonistas diretos. É preciso dizer também que Dom Giussani não se interessava muito em falar do Concílio; interessava-lhe mais viver a renovação da Igreja que o Concílio estava propondo. E, de fato, as temáticas do Concílio refletiam-se no Movimento, então composto exclusivamente de jovens. Nos folhetos que subsidiavam as meditações dos encontros de início do ano, que se realizavam em Varigotti, havia textos tirados dos documentos conciliares. Dom Giussani mostrava-se cada vez mais entusiasmado com o trabalho que Paulo VI vinha realizando durante o Concílio, na tentativa de mostrar a verdadeira face da Igreja e do cristianismo. Numa entrevista à revista Il Sabato, de 1988, respondendo ao jornalista Renato Farina, dizia sobre ele: “Seria preciso estudar a história de todos os seus discursos, que corajosa e impopularmente puseram um breque na falsa democracia, a enganosa dogmática que muitos padres conciliares tentaram fazer passar, com uma intenção democraticista”.

Quais conteúdos dos textos conciliares se refletiram mais em CL?
Antes de tudo, a centralidade de Cristo, Aquele em quem o homem se desvela e se esclarece a respeito de si mesmo. Esse tema, que João Paulo II retomou várias vezes em seu pontificado a partir da encíclica Redemptor Hominis, é tirado daquele trecho da Gaudium et Spes em que se diz: “Na realidade, somente no Mistério do Verbo encarnado fica esclarecido o mistério do homem”. Isso está no centro do método educativo de Dom Giussani. Não só o homem, mas toda a criação encontra a sua luz no Mistério do Verbo encarnado. Aí se encontram e quase que se unem os estudos que Dom Giussani havia feito do mundo protestante e do mundo ortodoxo.
Um outro tema que vejo profundamente afirmado pelo Concílio é o do cristianismo como tradição viva, no seio da qual a Escritura assume o posto de alma normativa. Dom Giussani várias vezes afirmou, inclusive recentemente, na carta-resposta ao Papa que o cumprimentava pelos vinte anos do reconhecimento da Fraternidade: “jamais pretendi ‘fundar’ nada, mas considero que o gênio do movimento que vi nascer seja o de ter sentido a urgência de proclamar a necessidade de retornarmos aos aspectos elementares do cristianismo”. O Concílio também falou da Igreja como comunhão e como corpo de Cristo – povo de Deus. Esse é um tema que atravessa toda a história do Movimento, e inclusive compõe o seu nome.
Enfim, o objetivo missionário do Concílio, que foi anunciado desde o início pelo Papa João: “O grande problema frente ao mundo, depois de quase dois milênios, permanece inalterado. O Cristo, sempre fulgurante no centro da história e da vida; os homens ou estão com Ele e com a Sua Igreja, e então gozam da luz, da bondade, da ordem e da paz, ou estão sem Ele, ou contra Ele, deliberadamente contra a sua Igreja, e se tornam motivo de confusão, causando rudeza nas relações humanas e persistentes perigos de guerras fratricidas”.
Por último, a liturgia: Dom Giussani fez da liturgia um dos lugares fundamentais da educação dos jovens e também dos adultos, pela retomada dos cânticos da tradição cristã de todas as épocas, da sobriedade e elegância das cerimônias, e da celebração do tríduo pascal, que no decorrer dos anos reuniu milhares de jovens.
Enfim, gostaria de fazer uma outra observação: pouco antes de partir para o conclave que o elegeria Papa Paulo VI, o cardeal Montini conversou com Dom Giussani sobre os perigos implícitos no uso da palavra “experiência”. Giussani, então, escreveu um texto que se tornou, depois, um pequeno livro, intitulado justamente A experiência, que saiu, a seu pedido, com o imprimatur de Dom Carlo Figini. Em sua primeira encíclica, aquela programática, Paulo VI fala dessa palavra. O termo “experiência” se tornara uma das cruzes da época do modernismo. Via-se nessa expressão a tentação de um subjetivismo radical. Acalmada a onda do modernismo, foi possível recuperar o significado autêntico da palavra “experiência”, que remonta aos Padres e que nos leva ao cristianismo como acontecimento que interessa a todos os níveis da vida da pessoa. Muitos – como o padre Congar – notaram com razão que o Concílio foi antes de tudo uma experiência de Igreja, antes mesmo de ser uma proclamação dela.

No entanto, CL foi acusado de ser anticonciliar...
E algumas vezes não só por pessoas estranhas à Igreja, mas também por cristãos. A acusação era de não ter vivido o Concílio, ou de contradizê-lo. É preciso, a esta altura, levar em consideração as diversas interpretações do Vaticano II. Para alguns, ele representou uma reviravolta histórica, um novo início da Igreja. Para outros, em vez, o Concílio representa uma novidade na continuidade. Certamente a Igreja é semper reformanda, a história da Igreja é a história de uma reforma contínua. Mas não seria autêntica reforma se não se ocorresse dentro da continuidade com toda a história passada e, sobretudo, com a origem do evento cristão, que é o próprio Cristo. A reforma, então, é a contemporaneidade de Cristo em todos os instantes da história. O fundo da acusação a CL está aí: na interpretação que se deu do Concílio, por parte de alguns, como evento de ruptura; então, no fundo estava a tese de traição do Concílio por parte dos que o viram como um momento de renovação na continuidade. Nesse sentido, o evento histórico foi o pontificado de João Paulo II, que entendeu todo o seu pontificado como realização do Concílio na continuidade. O próprio Papa Paulo VI percebeu que o Concílio não havia, infelizmente, provocado somente frutos positivos, como disse num dramático discurso: “Acreditávamos que depois do Concílio viria uma jornada de sol para a história da Igreja. Em vez disso, veio uma jornada de nuvens, tempestades e escuridão” (29 de junho de 1972). Em conclusão: a vida do Movimento encaminhou-se mais no sentido de realização do Concílio do que no da sua interpretação, apresentando-se como uma das forças suscitadas pelo Espírito – segundo a expressão de João Paulo II por ocasião do trigésimo aniversário de nascimento de CL – “para continuar com o homem de hoje aquele diálogo iniciado por Deus em Cristo e que prosseguiu no curso de toda a história cristã”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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