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Passos N.67, Novembro 2005

CULTURA

Como nasce o juízo

por Giorgio Vittadini

Bombardeados por milhares de interpretações, como é possível julgar sem que sejamos prisioneiros dos lugares comuns ou escravos do poder? Todos os dias somos provocados pelo impacto com a realidade, que interroga e se torna “problema”. A vida, então, se joga na resposta que cada pessoa dá aos problemas postos pelo real. O primeiro modo para responder é dando um juízo, isto é, tomando consciência das coisas. Nestas páginas, a transcrição de um diálogo que Giorgio Vittadini manteve com estudantes de ensino médio na Equipe dos colegiais realizada em setembro na Itália. Um exemplo de como se realiza uma consciência crítica e sistemática da própria experiência humana. A genialidade e a originalidade de um juízo está na consciência de um pertencer

Quero lhes dar quatro exemplos de como normalmente se elabora um juízo. Terrorismo. Há um ano o massacre de Beslan, na Ossétia do Norte, Rússia. E depois tantos outros atos terroristas de variada matriz. Qual é o juízo comum? São todas reações a uma injustiça precedente. O confronto israel-palestinense, a guerra no Iraque, a injustiça sofrida. Pode-se fazer uma relação infinita, procurando saber de quem é a culpa. E ficamos bloqueados.
As desgraças naturais. O tsunami no Natal e recentemente o terremoto Katrina. Milhares de mortos. Com quem tirar satisfação? Quando se pode, com os homens: é culpa de Bush que não assinou o protocolo de Kioto e o efeito estufa provoca desastrosos furacões; quando não se pode, o único remédio é brigar com Deus, com a pergunta de sempre: se Deus é bom, por que permite o mal? (box 1) Nós esquecemos que, talvez, se as coisas fossem mais controladas... Deus seria mais bondoso.
A batalha sobre a fecundação assistida. Por que negar à mulher o direito de ter o filho que quiser? Por que obstruir a ciência, a possibilidade de encontrar, por meio de embriões, cura para doenças mortais? Está em jogo o progresso e o direito (da mulher, não do embrião).
A política. Na Itália, o caso Fazio: Prodi, Berlusconi. Tudo se joga nesta pergunta: quem tem razão? Quem vai ganhar? Uma questão de poder. E com certeza inclui isso também.
Em todos esses exemplos a alternativa é entre quem tem razão e de quem tem culpa. Vamos nos deter um instante.

Primeiro esquecimento
Falta alguma coisa. Quem devolverá às mães de Beslan os filhos que elas perderam? Quem responderá ao desejo de vida de quem foi atacado pelo terrorismo? E o mesmo vale para as tragédias naturais. Quem responderá ao grito de desespero de quem ficou? E se até estabelecêssemos que quem matou tinha direito de o fazer? E se a única saída for a afirmação de um Deus malévolo? O que tem a ver o meu desejo com todas essas análises? Uma vez Dom Giussani disse: se se levantasse um daqueles que foi ferido, que não existe mais, diria: “O que aconteceu com o meu desejo de vida?”. Que seja por causa da natureza ou por causa humana, uma análise das culpas elimina esse desejo. A primeira coisa que se esquece é o desejo de felicidade que cada um tem o direito de ter. Uma das primeiras coisas que Giussani nos ensinou foi exatamente esta: cada um é único e irreproduzível, cada homem tem mais valor que todo o universo junto. Normalmente, quando se julga, se analisa a massa humana, não se parte do fato que essa exigência está no homem. Quem parte deste grito, desta pergunta: quem me dará novamente a afeição do amigo morto?

Segundo esquecimento
Atenção. Há um esquecimento que é importante: não se deixa somente de olhar para o desejo do homem: não se quer ver que esse desejo foi des-truído. Isto é, não se olha para a existência do mal. Procurando a todo custo a culpa, se esquece que o homem é feito para a vida, mas algo – da natureza ou do homem – leva à morte. Confia-se às CPIs, aos programas governamentais que organizam de maneira adequada a segurança social, que o próximo governo resolva os problemas econômicos... e assim por diante. Procura-se a culpa. Dessa maneira se censura uma porção da realidade.

A única resposta: Cristo
Porém, pelo contrário, existe algo, existe alguém (não um ente abstrato) que me liberta do mal? Que valoriza o meu desejo? Esse é o juízo verdadeiro! Que concretamente significa: quem pode confortar as mães de Beslan? Quem pode dar novamente uma esperança a quem foi vítima do terrorismo ou de um cataclismo natural? O que pode fazer justiça a todos os milhões de embriões que são destruídos todos os dias? Como é possível partir das exigências do homem na política?
O cristianismo é essa resposta.
A nossa civilização nasce dessa resposta. Então, houve uma pessoa que à viúva em lágrimas disse: “Mulher, não chores. Eu estou contigo” (box 2); a Zaqueu, o publicano, o mafioso, disse: “Queres recomeçar? Começa novamente comigo”; que ao cego de nascença disse: “Enxerga”, ultrapassando os fariseus que perguntavam de quem era a culpa. Na história houve um homem que disse: “Eu sou capaz de libertar vocês do mal. Não pelo fato de eu explicar, analisar ou eliminar o mal, mas porque vivo com vocês e lhes dou o exemplo. Carrego sobre meus ombros o mal e o venço”. Somente um cristão pode dizer a um habitante de Nova Orleans que perdeu tudo: “Há uma esperança”. Aquilo que Dom Orione disse aos habitantes de Messina, na Itália, quando foi encontrá-los depois do terremoto: “Tenham esperança, Deus não abandona. Nem os que morreram nem os que estão vivos”. Na história, a Igreja disse aos pobres, aos infelizes: “Tenham confiança, Deus venceu o mal e está conosco”. Enxugou as lágrimas colocando-se ao lado para caminhar. Como no filme Andrei Rublev (box 3) de Tarkovski quando o monge diz: “Caminha comigo, coragem”. É uma correspondência concreta ao desejo de bem que todo homem tem. Significa olhar para a realidade com uma esperança certa de bem. Foi isso que tocou Walter Tobagi (box 4), o jornalista italiano morto pelas Brigadas Vermelhas. Exatamente umas poucas semanas antes de morrer ele escreveu no jornal italiano Corriere della Sera um artigo no qual citava um manifesto de Comunhão e Libertação fixado na universidade: ele ficou tocado pelo fato que em um momento tão sombrio, devido à violência do terrorismo, alguém falasse de esperança.

Primeira modalidade
Não podemos nos deter no mal. Mesmo que você caia cem vezes há sempre alguém que lhe indica o caminho, que lhe faz levantar o olhar. Como quando um homem disse a Dom Giussani na confissão: “Matei” e ele: “Quantas vezes?”. Um outro exemplo é Madre Teresa de Calcutá. Quem a obrigava a estar entre os leprosos? Existe uma realidade no mundo que lhe diz: “Vai, tem confiança”. Assim como Jesus disse à adúltera ou a Zaqueu. Na tragédia do tsunami é importante que exista uma pessoa com a cruz entre as mãos e que reze missa, pois isso significa afirmar que há uma esperança. É uma forma completamente diferente de julgar e abraçar a realidade. Que outro motivo haveria para um aplauso de mais de oito minutos ao final da palestra de padre Carrón no Meeting de Rímini? Era evidente que aquelas palavras correspondiam ao desejo de cada um dos que estavam lá.
O ponto de partida é a correspondência que cada um pode experimentar. Como aconteceu no Meeting desse ano no encontro com algumas pessoas como os jornalistas Giuliano Ferrara e Magdi Allam, e o vice-presidente dos judeus italianos, Claudio Morpurgo, ou o presidente do senado italiano Marcello Pera. Todos eles são “leigos”, mas percebem que somente a presença da Estrangeira – como Eliot (box 5) definiu a Igreja – permite a esperança, porque nela o desejo do homem é preservado.

Segunda modalidade
Em uma tragédia, como poderia ser a tragédia do tsunami, ou do terrorismo ou da crise econômica, existe alguém que não deixa de esperar, que, imitando a esperança que a Igreja leva ao mundo, não se entrega. Estabelece contato com pessoas que mantêm esse desejo vivo. Basta pensar na relação de Dom Giussani com os Bonzi, os monges budistas do Monte Koia. Ou ainda, quando nos jornais ele falou dos judeus, da experiência da comum filiação. É o nascimento de uma amizade nova, totalizadora, gerada por um juízo. A primeira coisa a ser procurada não é uma idéia, mas todos aqueles que mantêm esse desejo, olham para ele cara a cara, o respeitam. Somente assim pode nascer o diálogo. Foi por isso que convidamos alguns muçulmanos ao Meeting de Rímini (box 6).

Terceira Modalidade
A uma certa altura o homem quer que o desejo se torne um modo diferente com o qual olhar para as coisas. A história da Igreja é uma constelação de obras que responderam no plano material ao desejo de bem do homem contra o mal, pois é a tentativa concreta de responder ao desejo de bem, de felicidade contra o mal. Lembrem São Vicente de Paula, São Camilo de Lelis, Dom Bosco, Madre Teresa, nos hospitais, nas escolas, nas obras de assistência social que eles construíram. E, hoje, o casal Cleuza Ramos e Marcos Zerbini no Brasil, o trabalho dos artesãos em Belém, na Palestina. O vídeo das obras de caridade apresentado no Meeting foi um exemplo claro de tudo isso. As obras são tentativas do homem de tornar o desejo, a fé, um modo para tornar mais humana a vida, a realidade. A obra é o modo pelo qual nos movemos em uma realidade.

Quarta modalidade
A partir de uma posição desse tipo nasce uma abertura de 360 graus. Tudo me interessa – não é por acaso que no Meeting se falou de tudo, desde ciência até a economia, a arte – porque tudo contribui para a satisfação do desejo de felicidade que está em todo homem.
Por isso, olhamos para quem busca essa esperança no mundo, para quem vive do desejo, para quem não se entrega ao mal, para quem busca alguém que o liberte, para quem constrói obras. Contra quem, censurando, se detêm em análises estéreis, procurando o culpado e onde está o poder. É uma perspectiva reduzida e a felicidade se torna somente um sonho.
Temos que olhar para quem nos ensina e nos testemunha esse juízo, assim como o Papa. Para mim o Movimento em todos esses anos foi justamente isso. Desde quando Giussani, chegando na Universidade Católica de Milão, às 07h45, a primeira coisa que reparava era se tínhamos fixado os cartazes. Desde então, para mim, o Movimento se tornou este fato de juízo diferente, de esperança para todos.

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Box 1:
Até que ponto, então, a razão pode chegar, e portanto, até onde o Mistério é inatingível? Onde a razão é obrigada a reconhecer a existência de uma realidade última que não pode penetrar? Que realidade no homem pode ser concebida, de certa forma – ainda que paradoxalmente –, como algo que “escapa” à dependência de Deus que o cria? Onde o seu ser “escapa” à inevitabilidade de ser participante (não “parte”) do Ser? Onde o eu pode se conceber independente do Ser do qual deriva? Onde? Na liberdade! Todo o resto pode ser “alcançado” pela razão, pode ser compreendido, alcançado e compreendido pela razão. Pois o fato de o cabelo não se fazer por si é evidente para a razão, o fato de a flor não se fazer por si é evidente para a razão, o fato de eu não me fazer por mim mesmo é evidente para a razão. Mas como age o Mistério que faz a flor, da mesma forma como me faz? De maneira ainda mais radical, como pode o Mistério criar uma coisa que não se identifique conSigo mesmo? Isto é o verdadeiro mistério!
(Luigi Giussani, Exercícios da Fraternidade de Comunhão e Libertação, 1997, p. 18)

Box 2:
Que coisa inimaginável é que Deus – “Deus”, Aquele que faz o mundo inteiro neste momento – vendo e ouvindo o homem, possa dizer: “Homem, não chores!”, “Você, não chore!”. “Não chore, porque não é para a morte, mas para a vida que eu o fiz! Eu o coloquei no mundo, e o coloquei numa companhia grande de pessoas!”. (...) Não há nada que possa suspender aquele ímpeto imediato de amor, de apego, de estima, de esperança. Porque se tornou esperança para cada um que O viu, que ouviu: “Mulher, não chores!”, que ouviu Jesus dizer assim: “Mulher, não chores!”. Nada pode deter a certeza de um destino misterioso e bom!
(Luigi Giussani, “Mulher não chores!”, Passos, junho 2002, p. 26)

Box 3:
Você sabe isso muito bem: não consegue fazer coisa alguma, está cansado e não agüenta mais. De repente, na multidão, você encontra o olhar de alguém – um olhar humano – e é como se você tivesse ficado lado-a-lado a um divino escondido. E tudo, de repente, se torna mais simples. (Do filme Andrei Rublev)

Box 4:
A outra lógica encontra-se nos manifestos de Comunhão e Libertação, que são os mais divulgados. Na entrada da sala principal, copiaram à mão também o artigo de Giovani Testori no jornal de ontem. E fixaram por todos os lados um faixa que começa “Quando a morte está entre nós” e contém verdades amargas, perguntas embaraçosas. Fala da “coragem de reconhecer que políticos e intelectuais, meios de comunicação e mentalidade contribuíram para destruir, nos últimos decênios, os fatores que tornam possível e justa a convivência”. Denuncia que “a violência do mais forte” se tornou “o único critério nas relações entre os homens. Se a verdade não existe, a condenação da violência não é mais verdadeira”. Podemos não concordar quando eles dizem que “somente com homens que se tornaram mais livres e mais responsáveis pela verdade do cristianismo nos permite ainda a esperança”. Podemos pensar que pecam pelo integralismo. Mas não podemos fingir que as suas perguntas não toquem o coração de uma crise que, em primeiro lugar, é moral e ideal.
(Walter Tobagi, Corriere della Sera, 21 de março de 1980)

Box 5:
Em vão construiremos se o Senhor conosco não constrói.
Podeis zelar pela Cidade se o Senhor convosco não a guarda?
Mil vigias que governam o trânsito
Não sabem nos dizer porque vêem e para onde vão.
Uma colônia de cavernas ou uma horda de marmotas operosas
Edificaram melhor do que aqueles que desdenharam o braço do Senhor.
Nós os levaremos nos braços entre a destruição permanente?
Amei a beleza de Tua Casa, a paz de Teu sacrário
Varri o soalho e de flores enfeitei os Teus altares
Lá, onde templos não existem jamais existirão moradas,
Conquanto possuís abrigos e instituições,
Precárias casinholas por cujo aluguel se paga
Porões soturnos onde o rato em profusão procria
Ou pocilgas sanitárias com portas numeradas
Ou uma casa algo melhor que a do vizinho geminado;
Quando a Estrangeira disser: “Que significado tem esta cidade?
Viveis tão contíguos pardieiros por amar-vos uns aos outros?”
O que respondereis? “Habitamos todos juntos
Para juntos riquezas cumularmos?” ou “Isto é uma comunidade?”
E a Estrangeira partirá rumo ao deserto.
Ó minh’alma, tu que estás pronta para a chegada da Estrangeira,
Que tu estejas prontas para aquela que sabe fazer pedidos.
(in Coros de “A Rocha”, T. S. Elliot )

Box 6:
A edição do Meeting de Rímini deste ano propôs mais de 140 encontros dedicados a temas políticos, culturais, eclesiais, econômicos e sociais, além de eventos esportivos e espetáculos artísticos. Foram 16 mostras sobre arte, ciência e história. O título do Meeting 2006 será: “A razão é exigência de infinito e culmina no suspiro e no pressentimento que esse infinito se manifeste”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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