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Passos N.67, Novembro 2005

IGREJA - ADVENTO

Deserto e espera
do dom de Deus

por Laura Cioni

A palavra “deserto” é um tema muito querido para a liturgia do Advento. Uma dimensão mais interior do que geográfica, que necessita implorar uma novidade para a vida

Ao recitar o Angelus em Castel Gandolfo no domingo 25 de setembro, o Papa Bento XVI recordou, aos presentes e ao mundo, que a caridade não são as boas ações que realizamos e nem o sentimento que as acompanha, mas é o fato que Cristo veio, é o dom de Deus do alto. Esta observação é tão simples quanto profunda e muda o modo de se viver a caridade, não tanto como esforço para ser bons, mas como comoção por ser amados. E, se o contexto no qual o Papa se expressava remetia à Eucaristia e à lavagem dos pés, agora a proximidade do Advento repropõe a mesma reflexão sob uma luz diferente.
A liturgia do Advento fala freqüentemente do deserto: o lugar geográfico que os judeus tiveram de atravessar para alcança a terra prometida, com todos os seus perigos, a sua monotonia e as rebeliões que dali originaram, mas também como lugar no qual Deus era Deus, no qual a aliança é renovada e a lei é entregue, onde as tribos de Israel tornaram-se povo. O deserto também é a moradia habitual de João Batista e por 40 dias também foi morada de Jesus antes da sua missão pública e indica uma condição de penitência, de espera, de ligação exclusiva com o Senhor. Neste sentido, na tradição cisterciense a expressão deserta petere significava não somente buscar lugares solitários para construir os mosteiros, mas, no sentido figurado e real ao mesmo tempo, viver somente para Deus.
Mas a nós, homens que vivemos nos desertos lotados das cidades ou nas riquezas fecundas da natureza, o que sugere a palavra “deserto”? Talvez a aridez de uma existência normalmente agitada pelas mudanças, mas pouco propensa a parar sobre aquela nascente de água que doa a vida a cada instante, aquela religiosidade natural assim ofuscada e, ao mesmo tempo, emergente, pela qual às vezes percebemos que não nos fazemos sozinhos, que somos insaciáveis e que buscamos, quase apesar de nós, uma felicidade maior do que aquela que nos dão até os maiores prazeres. Talvez a solidão na qual estamos fechados, mesmo no meio de tantas pessoas, no metrô ou nos locais de trabalho, a sutil hostilidade que mina as relações mais fundamentais e mais queridas, a estranheza que sentimos e que percebemos e que não sabemos como vencer.
Realmente é um deserto mais interior, mas quase com certeza ele apresenta uma monotonia e um perigo semelhante àqueles do deserto geográfico, e muitas vezes não sabe derreter-se na súplica por uma novidade, não olha para cima, ou para o horizonte, para ver se aparece algo diferente.
Isto é bem descrito pelo italiano Carlo Betocchi: dentro da sua consciência de viver “em um país cristão”, ele expressou de modo pacato e doce o próprio esfacelamento:
Cheguei até aqui, não há mais estrada,
É possível? O caminho parecia tão certo.
Ou era um sonho aquele caminhar?
Prefiro pensar que sou miserável,
e que perdi tudo. Encolhido
permaneço no meu deserto.

E continua, prosseguindo passo após passo no declinar dos seus dias:
Não tenho mais do que a pobreza de uma vida
que está passando, e perdida a sua flor
coloca espinhos e não folhas, e respira
com dificuldade. No entanto, sem rancor.
Em mim existe aquele amor escondido
que, quanto mais miserável pudico,
aquele perfume da terra, que resiste,
como nos campos vazios: uma riqueza
criada, não minha, indistinguível.

Mas antes, precisou perceber de que natureza era feito:
Assim me fez quem me amou
até morrer por mim: livre
para não acreditar nele, até para negá-lo;
mas esquecê-lo era impossível,
enquanto era possível perder-se,
e até por puro jogo,
entre o lusco fusco, a minha total
liberdade governando-me sozinha,
que sozinha badalava na escuridão
.
Jesus viveu a sua liberdade no deserto desta terra, no início de sua vida pública e quando estava no meio das pessoas, com os seus amigos, e percebia a enorme distância que o separava dos outros, radicando isso nas noites transcorridas com seu Pai em oração. O chamado silencioso que nos vem da oração de Jesus é um antídoto precioso ao deserto que preme de todas as partes, como a água viva que nos prometeu, como o vinho que nos deixou. Portanto, não é impossível que também da pedra bruta do deserto goteje o serenar do amor, não somente por boa vontade, mas, sobretudo, como dom acolhido que se torna riqueza.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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