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Passos N.67, Novembro 2005

DOCUMENTO

Da morte do Filho nasce a vida

por Bento XVI

No domingo 2 de outubro, Bento XVI presidiu, na Patriarcal Basílica Vaticana, a concelebração eucarística com os Padres Sinodais, em ocasião da abertura da XI Assembléia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que foi realizada na Sala do Sínodo, no Vaticano, até 23 de outubro de 2005. O tema do encontro foi: “Eucaristia: fonte e cume da vida e da missão da Igreja”. Abaixo, a homilia pronunciada pelo Santo Padre

A leitura tirada do profeta Isaías e o Evangelho deste dia expõem diante dos nossos olhos uma das grandes imagens da Sagrada Escritura: a figura da videira. Na Sagrada Escritura, o pão representa tudo aquilo de que o homem tem necessidade para a sua vida cotidiana. A água dá fertilidade à terra: é o dom fundamental, que torna possível a vida. O vinho, por sua vez, exprime a excelência da criação, dá-nos a festa em que ultrapassamos os limites da cotidianidade: o vinho “alegra o coração”, diz o Salmo. Assim o vinho, e com ele a videira, tornaram-se imagem também do dom do amor, em que podemos fazer alguma experiência do sabor do Divino. E assim a leitura do profeta, que acabamos de ouvir, começa como cântico de amor: Deus criou uma vinha para si esta é uma imagem da história de amor pela humanidade, do seu amor por Israel, que Ele escolheu para si. Portanto, o primeiro pensamento das leituras de hoje é este: no homem, criado à sua imagem, Deus infundiu a capacidade de amar e, por conseguinte, a capacidade de amar também Ele mesmo, o seu Criador. Com o cântico de amor do profeta Isaías, Deus deseja falar ao coração do seu povo e também a cada um de nós. “Criei-te à minha imagem e semelhança”, diz-nos. “Eu mesmo sou o amor, e tu és a minha imagem, na medida em que em ti brilha o esplendor do amor, na medida em que me respondes com amor.” Deus nos espera. Ele quer ser amado por nós: um apelo semelhante não deveria, talvez, tocar o nosso coração? Precisamente nesta hora em que celebramos a Eucaristia, em que inauguramos o Sínodo sobre a Eucaristia, Ele vem ao nosso encontro, vem ao meu encontro. Encontrará Ele uma resposta? Ou acontece conosco como aconteceu com a vinha, da qual Deus diz em Isaías: “Ele esperou que produzisse uva, mas ela produziu uva azeda”? A nossa vida cristã não é, porventura, muitas vezes mais vinagre do que vinho? Autocomiseração, conflito e indiferença?
Com isto chegamos, automaticamente, ao segundo pensamento fundamental das leituras de hoje. Elas falam em primeiro lugar da bondade da criação de Deus e da grandeza da eleição com que Ele nos procura e nos ama. Mas depois falam também da história que aconteceu em seguida: do fracasso do homem. Deus tinha plantado videiras excelentes e, todavia, amadureceu a uva azeda. Perguntamo-nos: em que consiste esta uva azeda? A uva boa que Deus esperava, diz o profeta, consistiria na justiça e na retidão. A uva azeda é, ao contrário, a violência, o derramamento de sangue e a opressão, que fazem as pessoas gemer sob o jugo da injustiça. No Evangelho, a imagem muda: a videira produz uva boa, mas os arrendatários conservam-na para si mesmos. Não estão dispostos a entregá-la ao proprietário. Espancam e matam os seus mensageiros e matam também o seu filho. A sua motivação é simples: querem tornar-se eles mesmos proprietários; apoderam-se daquilo que não lhes pertence. No Antigo Testamento, em primeiro plano há a acusação pela violação da justiça social, pelo desprezo do homem por parte do homem. Porém, no fundo revela-se que, com o desprezo da Torah, do direito doado por Deus, é o próprio Deus que é desprezado; deseja-se somente gozar do próprio poder. Este aspecto é salientado plenamente na parábola de Jesus: os arrendatários não querem ter um patrão e estes arrendatários constituem um reflexo também para nós. Nós homens, a quem a criação, por assim dizer, é confiada para ser administrada, a usurpamos. Queremos ser os seus senhores, pessoalmente e sozinhos. Desejamos possuir o mundo e a nossa própria vida de modo ilimitado. Deus é um obstáculo para nós. Ou faz-se dele uma simples frase devota, ou Ele é totalmente negado, banido da vida pública, a ponto de perder todo o significado. A tolerância que, por assim dizer, admite Deus como opinião particular, mas que lhe rejeita o domínio público, a realidade do mundo e da nossa vida, não é tolerância, mas hipocrisia. Porém, lá onde o homem se torna o único senhor do mundo e proprietário de si mesmo, não pode existir a justiça. Lá só pode predominar o arbítrio do poder e dos interesses. Sem dúvida, pode-se expulsar o Filho para fora da vinha e matá-lo, para gozar egoistamente sozinho dos frutos da terra. Mas assim a vinha transforma-se muito cedo num terreno inculto, devastado pelos javalis, como nos diz o Salmo responsorial (cf. Sl 79,14).
Assim, chegamos ao terceiro elemento das leituras de hoje. Tanto no Antigo como no Novo Testamento, o Senhor anuncia o juízo à vinha infiel. O juízo que Isaías previa realizou-se nas grandes guerras e exílios, por obra dos Assírios e dos Babilônicos. O juízo anunciado pelo Senhor Jesus refere-se, sobretudo, à destruição de Jerusalém no ano 70. Mas a ameaça de juízo diz respeito também a nós, à Igreja na Europa, à Europa e ao Ocidente em geral. Com este Evangelho, o Senhor brada também aos nossos ouvidos as palavras que, no Apocalipse, dirigiu à Igreja de Éfeso: “Se não te arrependeres, virei ter contigo e retirarei o teu candelabro da sua posição” (2, 5). Também de nós pode ser tirada a luz, e agimos bem se deixarmos ressoar esta admoestação em toda a sua seriedade na nossa alma, bradando ao mesmo tempo ao Senhor: “Ajuda-nos a converter-nos! Concede-nos a todos a graça de uma verdadeira renovação! Não permitas que se apague a tua luz no meio de nós! Reforça a nossa fé, a nossa esperança e o nosso amor, para podermos produzir bons frutos!”. 
Porém, nesta altura surge em nós a pergunta: “Mas não há qualquer promessa, qualquer palavra de conforto na leitura e na página evangélica de hoje? A última palavra é a ameaça?”. Não! Há a promessa, e esta é a última e essencial palavra. Nós a ouvimos no versículo do Aleluia, tirado do Evangelho de João: “Eu sou a videira; vós, os ramos. Quem permanece em mim e Eu nele, esse produz muito fruto” (Jo 15, 5). Com estas palavras do Senhor, João explica-nos o último, o verdadeiro êxito da história da vinha de Deus. Deus não fracassa. No final Ele vence, vence o amor. Uma alusão velada a isto já se encontra na parábola da vinha, proposta pelo Evangelho de hoje e nas suas palavras conclusivas. Também ali a morte do Filho não é o fim da história, embora não seja diretamente narrada. Mas Jesus exprime esta morte mediante uma nova imagem tirada do Salmo: “A pedra que os construtores rejeitaram transformou-se em pedra angular...” (Mt 21, 42; Sl 117, 22). Da morte do Filho nasce a vida, forma-se um novo edifício, uma nova vinha. Ele, que em Caná mudou a água em vinho, transformou o seu sangue no vinho do verdadeiro amor e assim transforma o vinho no seu sangue. No cenáculo, antecipou a sua morte e transformou-a no dom de si mesmo, num ato de amor radical. O seu sangue é dom, é amor, e por isso é o verdadeiro vinho que o Criador esperava. Deste modo, o próprio Cristo tornou-se a videira, e esta videira produz sempre bom fruto: a presença do seu amor por nós, que é indestrutível.
Assim, estas parábolas levam finalmente ao mistério da Eucaristia, em que o Senhor nos oferece o pão da vida e o vinho do seu amor, e nos convida para a festa do amor eterno. Nós celebramos a Eucaristia, conscientes de que o seu preço foi a morte do Filho, o sacrifício da sua vida, que nela permanece presente. Cada vez que comemos deste pão e bebemos deste cálice, anunciamos a morte do Senhor até que Ele venha, diz São Paulo (cf. 1 Cor 11, 26). Mas sabemos também que desta morte brota a vida, porque Jesus a transformou num gesto oblativo, num ato de amor, mudando-a, assim, no íntimo: o amor venceu a morte. Na Sagrada Eucaristia, a partir da Cruz Ele atrai-nos todos a si (cf. Jo 12, 32) e torna-nos ramos da videira, que é Ele mesmo. Se permanecermos unidos a Ele, então também nós produziremos fruto, então também de nós não sairá mais o vinagre da auto-suficiência, do descontentamento em relação a Deus e à sua criação, mas o vinho bom da alegria de Deus e do amor ao próximo.
Rezemos ao Senhor para que nos conceda a sua graça, para que nas três semanas do Sínodo que estamos começando, não somente digamos belas palavras sobre a Eucaristia, mas, sobretudo, para que vivamos da sua força. Invoquemos este dom por intermédio de Maria, prezados Padres sinodais, a quem saúdo com grande afeto, juntamente com as diversas comunidades das quais vindes e que aqui representais, para que dóceis ao Espírito Santo possamos ajudar o mundo a tornar-se em Cristo e com Cristo a fecunda videira de Deus. Amém!

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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