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Passos N.66, Outubro 2005

PÁGINA UM

Eucaristia: uma Realidade presente, familiar

por Luigi Giussani

Notas de uma meditação de Luigi Giussani nos Exercícios Espirituais dos colegiais (Gioventù Studentesca) da Suíça.
Friburgo, novembro de 1967


1. O Mistério familiar
Estava à mesa, ao lado de Jesus, um de seus discípulos, aquele que Jesus amava. Simão Pedro faz-lhe, então, um sinal e diz-lhe: ‘Pergunta-lhe quem é aquele de que fala’. Ele, então, reclinando-se sobre o peito de Jesus, diz-lhe: ‘Quem é, Senhor?’ Respondeu Jesus: ‘É aquele a quem eu der o pão que vou umedecer no molho’. Tendo umedecido o pão, ele o toma e dá a Judas, filho de Simão Iscariotes. Depois do pão, entrou nele Satanás. Jesus lhe diz: ‘Faze depressa o que estás fazendo’. Nenhum dos que estavam à mesa compreendeu por que lhe dissera isso. Como era Judas quem guardava a bolsa comum, alguns pensavam que Jesus lhe dissera: ‘Compra o necessário para a festa’, ou que desse algo aos pobres. Tomando, então, o pedaço de pão, Judas saiu imediatamente. Era noite” (Jo 13,23-30)
Nessa brevíssima cena está, há dois mil anos, todo o drama cristão, que não é um drama social (a não ser por reflexo). Esse é o drama cristão há dois mil anos, o drama que acontece no relacionamento de cada pessoa, no relacionamento de Deus com você. Pois o drama cristão acontece no âmbito do indivíduo, no âmbito da pessoa, e o resto deriva disso.
Eu gostaria que fixássemos nossa atenção nessa cena, nesse instante, nesse momento, no qual um daqueles doze que estavam sempre perto de Jesus recostou a cabeça em seu peito para lhe dizer: “Quem é?”.
Prescindamos um instante da verdade do cristianismo. Pensem apenas no que significa uma coisa como esta: Deus, o Criador, o Fundamento, o Mistério que faz as coisas, é um Homem ao qual se recosta outro homem, um pouco mais jovem do que todos eles, pois João naquela época devia ter cerca de 20 anos; ele está ali, bem perto dele, recosta a cabeça em seu peito para lhe dizer uma coisa: “Quem é?”; e o outro lhe diz quem é, o outro lhe responde, de tanto que era íntimo e familiar, de tanto que era excepcional, de tanto que era uma predileção. Uma realidade humana, física, visível: esse é o contexto em que Deus se inseriu para o homem. É nesse contexto que o homem está diante de Deus: não é mais “Deus”, é esse contexto, é alguém, uma realidade à qual a pessoa pode recostar a cabeça. A partir desse momento, essa é a situação religiosa do homem, exatamente essa. Deus está tão dentro da nossa maneira de viver, da nossa existência, que a relação com Ele é representada objetivamente por esse momento: esse momento não é uma exceção, é o momento-regra, é o momento paradigmático do que acontece desde aquela época.
Aquele “mais” que cada um de nós deseja, aquele “mais” vago mas urgente, aquele “mais” desconhecido, muitas vezes ou normalmente inconsciente, cujo significado o homem nunca consegue abarcar, aquele “essencial” de que fala Evtuchenko (sem conseguir dizer o que é) 1 , aquele “mais” vago, numa situação como essa, transforma-se, na mesma medida, numa realidade que se pode pesar, que se pode perceber fisicamente, que se pode determinar fisicamente, uma realidade que se pode realizar, que é familiar, clara, como uma pessoa com a qual se conversa sempre à mesa, com o qual se vive sob o mesmo teto, com a qual se come, com a qual se conversa. Aquele “mais”, a partir desse momento, transforma-se numa evidência, transforma-se numa exigência sacrossanta; transforma-se numa evidência até na maneira de agir: a pessoa, a partir desse momento, sabe como agir, a pessoa precisa saber, a partir desse momento, como agir. O que era desconhecido, o que era um mistério, se transforma, a partir desse momento, numa norma precisa, numa norma que a pessoa entende e traduz, transforma-se numa coisa real. Aquela caridade de que falamos antes, aquele amor ao ser – a Deus ou ao cosmo, a Jesus ou aos homens, dá na mesma –, aquele amor se torna normativo, transforma-se num estímulo evidente, transforma-se na possibilidade e no dever de qualquer pessoa, transforma-se no dever de qualquer ação, transforma-se na inspiração consciente e clara de qualquer ação.
O maior crime, o nosso verdadeiro crime é esquecer Jesus Cristo! Eu dizia que a posição na qual se deve pensar em Deus, a imaginação com a qual o homem sempre invade instintivamente suas ideias, sua maneira de pensar, essa imaginação deve fixar-se na cena descrita nessas poucas linhas. Pois essa é a posição normal em que você está. O crime é a inconsciência com a qual você – normalmente – consegue apagar até mesmo isso da sua existência, da sua vida.
Aludi esta manhã ao fato de que esse encontro físico, essa realidade física no encontro com a qual o homem imediata e inesperadamente sente tomar consistência, e esclarecer-se vertiginosamente, e impor-se como exigência, aquele “mais” que, do contrário, permaneceria vago, objeto do canto dos poetas ou de algum momento de comoção, enfim, de uma inquietude sem possibilidade de análise, infecunda, tão angustiante quanto estéril, esse encontro, eu disse, é o Sacramento.
De fato, não existe diferença alguma entre a quantidade de Mistério presente nessa “cena” – ou seja, no fato de que Deus era esse homem, ao qual eu sou tão apegado sentimentalmente, do qual sou tão amigo, que me quer bem, com o qual sou tão familiar e íntimo, esse homem que está comendo comigo – e no fato de que Deus, de que o Mistério de Deus está naquele gesto realizado pela comunidade da Igreja – a comunidade cristã –, que se chama Sacramento. Que diferença existe entre o primeiro aspecto do Mistério e este segundo? Nenhuma. O segundo não é mais misterioso, a Confissão ou a Comunhão não são mais misteriosas do que essa “cena” de João Evangelista perto de Jesus Cristo. O único Mistério não está de modo algum distribuído desproporcionalmente nesses dois aspectos.
De fato, o Mistério do Sacramento é exatamente igual ao Mistério vivido por João Evangelista; eles têm o mesmo “esquema”. É o Deus – o invisível, o incompreensível, o incomensurável, o fundo da questão – que se torna sensível: não como Deus, pois Deus não se pode tornar sensível enquanto Deus, mas traduzindo-se numa presença, numa realidade presente que eu encontro, numa realidade perfeitamente humana. Jesus era um homem que agia e falava, tal como são homens aqueles que agem e falam no Sacramento, no Mistério. E o Mistério, o Sacramento, é um gesto feito por homens, da mesma maneira como, para os fariseus, Jesus Cristo e aqueles que o cercavam eram homens que realizavam gestos e, dessa forma, contradiziam a ideia puríssima que os fariseus tinham do Deus inconcebível e inimaginável. É assim também que pode parecer ao racionalista de hoje uma realidade absurda a pretensão de que esse gesto seja o gesto com o qual Deus reconstrói um homem, com o qual a força do Outro faz de mim um ser novo mil vezes por dia, a ponto de chegar um momento em que essa conversão se vê. Pois eu, que podia ser como você, não sou como você. Aos quarenta anos, se você continuar desse jeito, não verá o que eu vejo, não sentirá o que eu sinto. Ao passo que o que você sente, o que você vê, eu o sinto e o vejo, porque eu também fui como você. Só que estou mais adiante do que você, graças a algo que veio até a mim, que veio dentro de mim, e não fui eu que o dei a mim, não o arranjei por mim mesmo: esse algo veio para dentro de mim porque fiquei perto de uma realidade física.
A afirmação de que a Confissão pode transformar é puramente gratuita para quem não a pratica ou para quem a pratica de modo a torná-la uma piedade, uma prática de piedade, e não na simplicidade desse Mistério. E, igualmente, é uma afirmação puramente gratuita e abstrata dizer que a Comunhão converte, cria um homem novo, sociologicamente visível, com uma mentalidade diferente, com uma sensibilidade infinitamente mais profunda na maneira de sentir o homem e os problemas de seu destino; basta que não se viva a Comunhão, deixando de frequentá-la ou frequentando-a de modo a fazer dela uma piedade, uma prática de piedade, e não como um mendicante que mergulha a si mesmo no Mistério de Deus, sem nenhuma pretensão, mas com a certeza de que a Redenção de si acontecerá, surgirá quando e como Deus quiser. Mas já acontece, já acontece dentro de si: a pessoa não pode ser totalmente como antes, quando vive esses gestos; não consegue ser como antes.
O perigo supremo, portanto, para quem se aproxima desses gestos é não se aproximar deles por aquilo que são, mas por algo que imagina que sejam, por uma redução, em termos racionalistas ou moralistas, de uma coisa que é puro Mistério.
A posição de João Evangelista, daquele jovem com a cabeça recostada ao outro homem, de maneira objetiva e real – não sou um “mentecapto” quando afirmo isto –, é no Sacramento que se repete. E a pessoa, se é fiel e contínua neste caminho, neste encontro, torna-se diferente, torna-se outra como mentalidade, como sensibilidade e como energia de vida.
Há possibilidades morais absolutamente inconcebíveis fora do cristianismo vivido (não de uma moralidade vivida, não de uma religião vivida, mas do cristianismo vivido, ou seja, do Mistério que se reconhece presente, ao qual se pede que penetre na carne e nos ossos e em qualquer ação, do Deus ao qual se pede que entre, que se ponha dentro das próprias ações, dentro da própria vida, que se acolhe e ao qual se pede que entre cada vez mais na vida): por exemplo, a fidelidade no amor; por exemplo, o amor à verdade; por exemplo, a impossibilidade de se deixar bloquear, a impossibilidade de que tudo o que acontece se torne obstáculo, escândalo e faça parar no caminho; sobretudo, a capacidade de continuidade, não de uma continuidade abstrata, mas da continuidade da retomada indomável, a continuidade da vida sempre presente, a continuidade da vida sempre presente de maneira realista, a continuidade da Ressurreição.
A partir disso vocês podem entender como, a meu ver, deve mudar, deve se transformar, deve se converter a postura de vocês diante dessas coisas, desses momentos que são o alicerce da vida, da mesma forma como Jesus Cristo é o alicerce da nossa história: apesar de tudo, nós não estaríamos aqui, falando destas coisas, nós nunca nos teríamos encontrado, se não fosse esse Fato.
O primeiro aspecto da nossa conversão, a primeira maneira de inserir na nossa vida a consciência ardente daquele “mais”, de fazer com que aquele “mais” se torne concreto, de fazê-lo tornar-se alma que transforma a nossa existência prática, de começar a experimentar aquele “mais” dentro das coisas que fazemos todos os dias, dentro do dever, dentro do gesto de varrer o chão ou do gesto de estudar ou do gesto de comer (como dizia Siniávski, de um outro ponto de vista, quando falava do camponês que faz o sinal da cruz antes das refeições); a primeira maneira de fazer com que aquele “mais” penetre, consciente, cada vez mais vibrante, cada vez mais transformador, cada vez mais amigo, cada vez mais familiar, cada vez mais reconhecido, para que venhamos a caminhar cada vez menos na névoa, o primeiro ponto não é preparar-se para fazer sei lá o quê. A primeira maneira de realizar aquele “mais”, de realizar a conversão, é frequentar os Sacramentos. Não é a uma prática religiosa que eu os estou incitando, mas à consciência de um gesto, de uma realidade que é Mistério, haurindo da qual vocês se tornarão diferentes. Por isso, o que lhes prometo é uma experiência, quando e como Deus quiser. Não chamo a atenção de vocês para uma prática de piedade, mas para um momento que é Mistério.

2. A consciência do próprio nada e o desejo da realização
Como é que você se comporta diante do Mistério? Faz pactos? Estipula um contrato? “Prepara-se” e, portanto, vai dizendo: “Agora eu tenho o direito de me aproximar de Ti”? Você se aproxima do Mistério ajeitando primeiro as coisas e depois dizendo: “Agora Tu és obrigado a me aceitar aqui”? Seria uma pretensão e uma presunção.
Aproximarmo-nos do Mistério requer apenas uma coisa: a consciência da nossa incapacidade, que é mais que nulidade, da nossa incapacidade fundamental e da nossa traição contínua, da nossa pobreza culpada, da nossa imperfeição desejada, da nossa falta, da nossa incapacidade conivente, do nosso ser nada. Mas a palavra “nada” não diz ainda o que somos. Existe apenas esta espécie de condição: a consciência daquilo que a pessoa é, e nada mais que isso. Para se aproximar do Mistério, é necessário apenas isso.
Ainda que a maneira de se aproximar do Mistério no Sacramento seja diferente daquele momento em que a pessoa está comendo com a outra e recosta a cabeça sobre seu peito, ouve-a falar do fim do mundo e do Juízo e sente-se tomada de tremor ante aquela voz que já a julga, ainda assim, trata-se de modalidades diferentes de se aproximar do mesmo Mistério.
Assim, Cristo deixou na nossa existência uma permanência de si sob determinados aspectos. A Confissão e a Comunhão são os dois aspectos fundamentais por meio dos quais nos aproximamos do Mistério: dois aspectos fundamentais, pois estão um no início e o outro no fundo da nossa postura. Mas é uma dialética, são fatores dialéticos de uma só postura. O relato do publicano que saiu do templo perdoado – e o Evangelho não diz de modo algum que ele deixou de ser cobrador de impostos e, portanto, de enganar e surrupiar; não diz isso –, esse relato é certamente, como eu disse esta manhã, a página do Evangelho mais clara do ponto de vista do que estamos dizendo aqui.
A Confissão – para entrar em detalhes – não pode ser considerada desta forma que estou para dizer; a Confissão só pode ser considerada da forma que estou para dizer se for uma prática de piedade, em razão do moralismo de sempre. Ou seja: “Eu, para ir me confessar, para frequentar a Confissão, devo estar decidido a abandonar ‘isto aqui’, do contrário serei um impostor, um hipócrita: irei me confessar sabendo que depois de uma hora ainda posso voltar a errar; se tiver oportunidade, depois de três minutos, vou errar outra vez. Sendo assim, só vou à Confissão quando decidir que é certo”. Eu lhe pergunto: que necessidade havia de que o Mistério de Deus viesse até a sua vida, se você já é capaz de decidir por si só? Ou então a pessoa pretende chegar até a Confissão com uma determinada maneira de ser interior, com um estado de sentimento que já implica uma conversão: que a pessoa chore amargamente suas faltas, que sinta angustiadamente seus erros. Mas eu digo que, se você já está mudado, é inútil que vá se confessar. O que você pretende é um selo formalista; de fato, é um formalismo.
No entanto, a coisa é bem diferente disso. Você vai a esse encontro porque não é capaz de nada, não é capaz em primeiro lugar, portanto, de decidir o que é o bem. Vai a esse encontro porque está paralisado por seu erro; por isso, vai a esse encontro como ao encontro de uma coisa estranha, à qual você é impermeável, e você está cheio de seu mau sentimento; está cheio, e vai a esse encontro justamente porque – única condição – reconhece ser um pobre coitado. Para reconhecer que é um pobre coitado, um inepto, uma miserável, um desgraçado, para reconhecer que não está certo – essa é a palavra mais discreta, mas também mais clara –, para reconhecer que não é você mesmo, para reconhecer isso, é preciso que você reconheça aquele “mais” de que falamos antes, que você reconheça que pertence, que suas ações pertencem a um contexto maior, que você não leva em consideração, que você não pode levar em consideração; é preciso que reconheça isso e reconheça que não é você que se vira para dar um jeito, que você não é capaz de modo algum de deixar isso ou aquilo, que não é capaz de fazer nada. Essa é a condição prévia, apenas essa. E você vai gritar, vai pedir que isso mude.
Na Confissão, a dor não é um sentimento, é um juízo, é reconhecer que a ação não foi amor, não foi liberdade, não foi abertura ao “mais”, não foi parte de um contexto, mas pretendeu e pretende ser lei para si mesma. A dor é um juízo, e o propósito não é um projeto do qual você é senhor (não é que de repente você se tornou senhor de si mesmo!). Seria inútil, seria esvaziar o Mistério de Cristo, seria salvar-se por suas próprias forças. O propósito é exatamente o grito do último resíduo de sinceridade em você: “Eu não sou capaz, ó Deus; muda-me! Eu não sei como fazer, não sei como agir, não sei como mudar; salva-me!”. O propósito é esse último resíduo de sinceridade que, não encontrando em si a solução que reconhece como necessária, grita ao Mistério de Deus, à força de Deus. Pois isto é evidente: que Deus é mais forte, a força de Deus é maior do que a nossa incapacidade, do que a nossa maldade.
A misericórdia de Deus é maior do que o pecado. Isso não significa que Deus seja mentiroso e diga: “Você é bom quando é mau”. Deus não consagra uma bondade sua quando você quer o mal; Deus precisa apenas de um ponto de apoio em você, de um ponto infinitesimal de verdade para construir em cima desse ponto, com a força dEle, a sua conversão. Para recriar você! Só a força de Deus pode recriar você, mas precisa de um ponto, de um ponto só de verdade em você. Pois Deus não pode construir em cima de uma mentira. E esse ponto infinitesimal de verdade em você está na sinceridade do seu pedido, e nada mais que isso.
A Confissão é uma oração, portanto um pedido, não um projeto que se estabeleceu. A única cláusula é a sinceridade desse pedido. E eu lhes pergunto: será que essa sinceridade não pode existir também em alguém que se sinta numa situação tão enredada que está certo de que continuará a errar! Se a pessoa, por se sentir enredada numa situação, não for se confessar, comete dois erros gravíssimos: em primeiro lugar, no fundo, confirma mais completamente a sua situação negativa, engrossa-a ainda mais; em segundo lugar, afasta-se também da religião, cada vez mais. É a trajetória lógica do pecado: em vez de continuar a ser um gesto mau, transforma-se numa história má, e o fim dessa história é a mentira. A pessoa acaba por abandonar também a verdade, mesmo que ainda vá à igreja, pois é tudo um vazio de adesão e de reconhecimento.
Por isso, mesmo para alguém enredado de tal modo que percebe que não consegue se virar, que tem certeza de que vai errar outra vez, qual é o último resíduo de verdade de si mesmo? É gritar a Deus: “Deus, muda-me, pois eu não sou capaz de me mudar por mim mesmo. Faz o que quiseres de mim, pois eu não sou capaz de me mudar. Eu, daqui a uma hora, vou errar; esta noite, vou errar; amanhã, vou errar”. O que estou oferecendo a vocês não é uma norma, ou seja: “Já que vocês vão errar sempre, basta gritarem a Deus desse jeito”, pois esse não seria um grito sincero. O grito é sincero, o pedido é sincero quando a pessoa realmente não pode fazer outra coisa, não consegue agir de outra forma; esse grito é sincero quando a pessoa está toda inclinada a fazer o que puder fazer, dispondo-se a ser dura consigo mesma, se conseguir. Não é a eliminação da sua colaboração, é a constatação realista da situação da sua energia, da sua condição.
Vocês devem se lembrar daquela página de Marshall de que eu sempre falo quando chego a este ponto; é uma página muito aguda e, a meu ver, definitiva como clareza. O abade Gaston, protagonista do livro A cada homem o seu pagamento (To every man a penny), precisa ouvir a confissão de um alemão que a resistência francesa prendeu e vai executar; sendo que o alemão é católico, e está tomado de medo, os franceses, mesmo sendo comunistas, permitem que ele se confesse. O abade Gaston diz: “Meu rapaz, confesse-se bem, pois você caminha para a morte. Então, o que é que você fez?”. E o outro diz com naturalidade: “As mulheres”. “Então, arrependa-se agora, pois terá de comparecer perante o tribunal de Deus”. E o outro, embaraçado: “De que jeito vou me arrepender? Era uma coisa de que eu gostava; se pudesse, faria tudo de novo. De que jeito vou me arrepender?”. Então o abade Gaston, todo preocupado porque não consegue mandar aquele indivíduo para o Paraíso, a certa altura tem um lampejo de genialidade e diz: “Mas você lamenta não lamentar?”. E o outro diz, espontaneamente: “Sim, eu lamento não lamentar”. Esse é o último resíduo de verdade naquele indivíduo, é o reconhecimento da verdade. Em cima desse ponto de partida infinitesimal, Deus constrói a defesa do homem. “Pai, eles não sabem o que fazem” – depois de três anos sendo perseguido por eles.
Vocês não têm desculpa se não forem se confessar. Não têm desculpa, porque não é o que vocês fizeram nem seu estado de espírito que os mantêm longe da Confissão. Nem uma coisa nem outra, em qualquer caso, podem mantê-los longe, podem lhes oferecer uma razão adequada para que se mantenham longe da Confissão. Uma coisa só os mantém longe da Confissão: a mentira diante de vocês mesmos. É renegar o “mais”, é o renegamento do “mais”, é negar a Deus, é renegar a Jesus Cristo. É a outra parte do trecho de hoje: “Era noite”. E é possível que depois vocês se sintam tranquilos; com vocês está tudo em ordem, pois vocês acusam o cristianismo de não ter mais razões pelas quais se sustente. “Era noite.”
Isso, antes de mais nada, é a traição de vocês mesmos, não de Jesus Cristo ou de Deus, segundo a acepção da tradição em que vocês foram educados. Ou seja, em primeiro lugar, o que vocês renegam é Deus e Cristo, Deus e a sua Revelação, na medida em que inscritos na humanidade de vocês, na carne de vocês; o que vocês renegam é o “mais”. Essa é a mentira contra si mesmos, é o pecado contra a verdade. Esse é o ponto radical. É isso que os mantém longe da Confissão: o não-desejo do bem, não aceitar pedir o bem, só isso. Não é o fato de vocês preverem que amanhã, a menos que aconteça um milagre, vão errar outra vez, pois o milagre pode acontecer e vocês devem pedi-lo, se quiserem o bem, se quiserem o “mais”, se quiserem ser verdadeiros. O milagre pode acontecer dentro de vinte anos, quando a amante morrer. Não importa, eu digo: evidentemente, não para avalizar uma linha de adultério sistemático, mas para centrar, focalizar a questão no coração de vocês, na sua verdade última, na sua essência.
Vocês não estão longe da Comunhão em razão de seu estado de espírito ou porque não sentem – e então dizem que seria uma hipocrisia. Vocês são, sim, hipócritas, mas não porque seria uma hipocrisia; são hipócritas porque a hipocrisia é dizer não ao que está em nós, talvez tímido, porque intimidado, cheio de medo, porque amedrontado, todo nebuloso e vago, porque não foi alimentado e educado pela vida social em que estamos, mas que, mesmo assim, existe. É porque dizem não àquele “mais”, é porque esmagam sob seus pés aquele “mais”, é porque inibem continuamente o melhor de vocês mesmos, é porque não desejam o bem que estão longe da Comunhão. E são hipócritas quando dizem: “Estou longe porque seria hipocrisia”. Porque aproximar-se da Comunhão é um grito, é o grito de um pobre, o grito de um abandonado, que não entende e não sente mais nada, e por isso recorre à força, ao Mistério, à força que faz tudo e que o converterá; recorre ao Mistério de Deus que se fez homem, inserindo-se em sua vida, que o alcançou, com palavras e fatos, por meio do Mistério da Igreja, e que lhe diz: “Estou aqui”, e que mudou muitos e por isso poderá mudar você também. Um juízo e um desejo do bem, um grito pelo bem: isso é a Comunhão. Não é um estado de espírito, um sentimento, um prazer, uma sinceridade de comerciante.
Nesse sentido, portanto, convido-os, para reacender aquele “mais”, para que se tornem finalmente homens, para que vivam humanamente, para que dêem a nossas ações a alma que normalmente lhes falta, para que se ilumine e se guie a nossa angústia, para que a caridade, ou seja, o amor, seja a diretriz da vida, para que a nossa ação viva cada vez mais conscientemente em relação com o grande contexto graças ao qual nasce e no qual vive, para que a nossa vida seja cristã, para entender o que é Deus e que Deus se tornou homem, para entender o que é a força de Deus, para experimentar que Cristo é verdadeiro, para experimentar que a força de Deus se deu a ver entre nós, eu os convido em primeiro lugar ao encontro com o Sacramento. O encontro com uma realidade que vocês só podem perceber confusamente, que vocês não podem entender: é apenas, portanto, como corolário estranho de algo diferente que nós nos aproximamos desses gestos. E é vivendo-os que eles se iluminam e descrevem cada vez mais claramente ao nosso espírito também uma metodologia de vida que pode ser aplicada em todos os nossos relacionamentos e em todas as nossas ações: viver o Sacramento na vida ou tornar todos os nossos relacionamentos Comunhão. Mas essas são metas que vêm depois.
A primeira coisa importante é começar. A coisa importante é reconhecer essa Presença, gritar a essa Presença, pois nessa Presença está o poder dAquele que faz todas as coisas. Exatamente como essa força estava presente no rosto de Cristo, no homem Cristo; os fariseus a cortaram da vida deles da mesma forma como nós cortamos os Sacramentos da nossa vida, como cortamos a sua Presença da nossa vida, a sua Presença física: talvez até a mantenhamos, numa versão que é própria de um sentimento nosso, reduzida aos nossos sentimentos, às nossas teorias teológicas, aos conhecimentos históricos. No entanto, é uma Presença: tão difícil de realizar, tão transcendente como realidade, tão anômala como realidade, tão inassimilável, tão impermeável, tão “absurda” como realidade, tão incógnita como realidade. Aqui está o cristianismo; e a compreensão e a luz também nascem daqui.
Isso, porém, me introduz à última coisa que eu gostaria de dizer.

3. O Sacramento, a forma mais simples de oração
A primeira maneira de voltar a despertar e alimentar o “mais” dentro de nós, esse fermento graças ao qual a nossa ação muda de rosto mesmo continuando a ser ela mesma (varrer o chão continua a ser varrer o chão, estudar continua a ser estudar, ser médico continua a ser médico, amar o homem continua a ser amar o homem, criar os filhos continua a ser criar os filhos: não é algo diferente, ainda que a diferença cresça, mas é antes de mais nada uma novidade dentro dessas coisas, esse “mais” que fermenta essas coisas, que escancara essas coisas, e o homem se sente outro, como alguém que nasceu de novo, como dizia muito bem o trecho de Péguy desta manhã, refrisando o conceito expresso por Jesus a Nicodemos no terceiro capítulo de São João); a primeira coisa a fazer não é um estudo para mudar nossas ações, não é uma análise psicológica, não é um projeto espiritual, não, não é algo que nós tenhamos de fazer: a primeira coisa que devemos fazer é a oração, ou seja, pedir isso, pedir que aconteça essa conversão em nós, ainda que não compreendamos o que significa essa conversão.
Eu me esforço para comunicar uma ênfase minha, um reflexo do que sinto, mais que conceitos ou ideias. É um sentimento que eu queria criar ontem e que gostaria de contribuir para recriar hoje; é – melhor ainda – um pressentimento de algo que deve mudar, que deve mudar na vida normal: na maneira de escrever e na maneira de comer, na maneira de dar a mão à namorada. É algo que deve mudar.
A primeira coisa para que esse pressentimento se alimente, se torne grande, comece realmente a mudar a partir de dentro e a fazer com que você se sinta logo mudado, é a oração, é pedir que aconteça dessa forma. Não é pôr-se a fazer algo, exceto pedir isso.
O Sacramento é a maneira objetiva e mais simples desse “pedir isso”; mais simples, pois o Sacramento é simplesmente um gesto, alguém que vai até lá, e pronto. Ao passo que a oração implica dizer certas palavras, conceber conceitos, alinhavar sentimentos, encontrar palavras, sobretudo.
O Sacramento é o aspecto primordial, mais simples: é um gesto silencioso – nesse sentido, é a pura presença, é estar lá –, como o gesto de alguém que está lá diante de um outro e não sabe como dizer, e está lá pedindo com a sua presença.
O Sacramento – por isso Jesus Cristo o tornou obrigatório; não tornou obrigatório o Pai Nosso – é um estar lá. É a posição de vocês que não se sustenta. A pessoa pode ir se confessar e tomar a Comunhão mesmo apenas fazendo isso, respondendo a algo que o padre diz, que o padre pede com a sabedoria que conhece o homem, e tão-somente isso. Mesmo fazendo sim ou não com a cabeça, e só. E a Comunhão é apenas tomar, é um simples gesto, por isso pode ser feita pelo lavrador e pelo professor universitário, da mesmíssima maneira. Ao passo que a oração já se colore da diversidade da cultura ou da diversidade de consciência.
Seja como for, a oração é o fenômeno de fundo, pois o Sacramento também é oração, é a forma mais simples de oração. E a oração nada mais é que pedirmos nós mesmos, pedir para nos tornarmos nós mesmos, pedir para nos tornarmos perfeitos, para nos realizar; pedir que aconteça aquele “mais”, pedir para que nos tornemos o que nos devemos tornar, pedir aquele “essencial” que Evtuchenko dizia faltar; pedir a liberdade, pedir a caridade, pedir o amor, a vida como amor; pedir que se converta a nossa ação pesada e banal, no sentido de habitual (as conhecidas, costumeiras coisas banais). E é dentro dessas coisas banais que o novo deve acontecer: dentro da maneira de vocês estudarem, dentro da maneira de varrerem o chão ou de conversarem com a namorada cara a cara, como também dentro do risco político em que vocês vão se meter, se quiserem ser homens completos, e para o qual a caridade inevitavelmente deverá impeli-los.
Por isso, a primeira condição é a oração; da renúncia a ela derivam a pobreza e a mesquinhez e o horror, a pobreza e o deserto da vida de vocês.
Aqui também, o problema é que vocês têm um conceito de oração estranho: vocês supõem que a oração se identifica com um determinado sentimento que vocês têm. Ao passo que é um juízo e um rito, e nada mais que isso. Quanto mais me sinto árido, quanto mais me sinto frio, quanto mais me sinto distante, quanto mais me sinto incapaz, quanto mais sinto não saber o que dizer, quanto mais me sinto quase sem fé, mais eu grito. No limite, mesmo quando a pessoa se torna conscientemente ateia, ainda deve rezar: “Deus, se existes, revela-te a mim”.
A pessoa começa a ser homem quando chega a esse ponto. Menos do que esse ponto, é uma desgraçada, é uma delinquente, e faz o mal em qualquer coisa que faz; qualquer coisa que faz é maléfica, é um perigo mortal para quem se aproxima dela, para quem convive com ela.
Inversamente, qualquer defeito, qualquer vício, qualquer cansaço, qualquer pobreza e qualquer fragilidade, qualquer mau hábito, tendo esse grito continuamente dentro da vida, transforma-se numa bondade: bondade como destinação, na medida do tempo de Deus, certamente – e por isso é preciso paciência –, mas imediatamente bondade, como compreensão dos outros homens, imediatamente bondade, como maneira de tratar o outro homem, sobretudo como maneira de julgá-lo. A primeira coisa que muda em nós é o juízo sobre os outros. A primeira coisa que acontece em nós é uma coisa estranha, que é a compreensão: a compreensão significa, imediatamente, fisiologicamente, que o seu espírito se dilata, pois você abraça o outro, compreende o outro, começa a amar o outro. É uma afirmação de você; você começa a realizar a si mesmo, ainda que mecanicamente a lista inteira de seus defeitos continue. É o Cristo que entrou no mundo, na história, como uma semente; e é preciso realmente tê-lo traído para dizer que em dois mil anos Ele não fez nada. Por isso, basta segui-lo um metro para entender que algo muda, já muda. Se você não experimenta em você o que Cristo pode mudar, certamente pode dizer que em dois mil anos Ele não fez nada.
É uma semente que Ele pôs dentro da história e que fermenta a história na medida do tempo de Deus e de Seus desígnios. Assim, esse grito, posto dentro de nós, esse gesto, que se traduz em primeiro lugar no Sacramento, que se exprime no eco da oração, é uma semente que mudará a história da vida de vocês segundo o tempo de Deus e as formas do Seu desígnio. E nisso eu fico tranquilo, pois não posso pretender ditar a Deus as minhas urgências, o que, no fundo, seria ainda uma última maneira inconfessa de procurar afirmar a mim mesmo e de salvar-me da humilhação.
Para terminar, leio a vocês a passagem de sempre, já que vocês nunca a relêem.
“Estando num certo lugar, orando [imaginem Jesus lá, rezando, e seus discípulos um pouco afastados, olhando para Ele, porque era um espetáculo. O homem consciente é um espetáculo, quando o homem é consciente isso se torna fisiologicamente visível. O momento do homem consciente, quando esse momento se torna habitual, quando o homem começa a se tornar estavelmente homem, começa a exercer um fascínio que nenhum de nós conhece, entre nossos semelhantes, porque é tão raro. Mas o fascínio do homem começa aí. Então, a pessoa começa realmente a entender a dimensão do espírito como preponderante e capaz de invadir a matéria, então a pessoa se transforma: os próprios dados físicos, os próprios dados biológicos são arrastados para dentro da força e da atração desse outro fator. O que é que vocês darão a sua esposa, o que é que darão a seu marido, o que é que darão a seus filhos se não tenderem, se não pedirem este caminho?], ao terminar, um de seus discípulos pediu-lhe: ‘Senhor, ensina-nos a orar, como João ensinou a seus discípulos’. Respondeu-lhes: ‘Quando orardes, dizei: Pai, santificado seja teu nome [“nome”, em hebraico, significa “força”: que a tua força aja no mundo]; venha o teu Reino; o pão nosso cotidiano dá-nos a cada dia; perdoa-nos os nossos pecados, pois também nós perdoamos aos nossos devedores; e não nos deixes cair em tentação’. Disse-lhes ainda: ‘Quem dentre vós, se tiver um amigo e for procurá-lo no meio da noite, dizendo: ‘Meu amigo, empresta-me três pães, pois chegou de viagem um dos meus amigos e nada tenho para lhe oferecer’, e ele responder de dentro: ‘Não me importunes; a porta já está fechada, e meus filhos e eu estamos na cama [naquela época, existia o leito único]; não posso me levantar para dá-los a ti’; digo-vos, mesmo que não se levante para dá-los por ser amigo, levantar-se-á ao menos por causa da sua insistência, e lhe dará tudo de que precisa. Também eu vos digo: pedi e vos será dado; buscai e achareis; batei e vos será aberto. Pois todo o que pede, recebe; o que busca, acha; e ao que bate, se abrirá. Quem de vós, sendo pai, se o filho lhe pedir um peixe, em vez do peixe lhe dará uma serpente? Ou ainda, se pedir um ovo, lhe dará um escorpião? Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do céu dará o Espírito Santo aos que o pedirem!’” (Lc 11,1-13)
Vou lhes pedir agora que passem quinze minutos em silêncio, sem uma palavra. Nestes minutos, encarem as coisas em que estamos insistindo. Sobretudo, eu os convidaria a direcionar sua atenção para uma realidade eminentemente factual, operativa, prática, evidentemente humana; não existe nada que seja humano se não é perpassado por um pedido, pelo pedido de um “mais”, ou seja, pela consciência de algo que não temos ainda no que fazemos, no que somos. Prestem atenção nisto: a parte que no dia de vocês, ou melhor, a parte que na maneira normal de vocês agirem deve ter a oração, ou seja, o pedido; a possibilidade de tornar habitual essa ponta sublime, a única na qual a nossa humanidade se realiza em toda a sua estatura (fora daí, pobrezinha, é pisoteada, esmagada por um masoquismo ou por um sadismo estranhos: o pecado original, diz a Igreja Católica). É preciso que esse pedido se torne tão habitual – eu costumo dizer –, que esteja como que sempre lá: vocês estão fazendo tudo, mas no canto do olho está sempre a luz, a sombra ou a moldura desse pedido presente. Mas, sobretudo, é preciso que ao menos em seu dia vocês saibam decidir, separem um momento no qual queiram reencontrar a vocês mesmos, no qual queiram ser verdadeiros, no qual desejem que em seu cotidiano todo disperso haja ao menos um momento de verdade. E esse momento de verdade não é o confuso bradar a um quid que se chama Deus, mas é pedir a conversão: “Venha a nós o vosso Reino”, ainda que não se saiba detalhar todos os fatores que compõem esse acontecimento. Isso, vocês ainda vão aprender.

(Traduzido por Durval Cordas)

Notas

[1] Cf. Evtuchenko. E. “Dopo ogni lezione”. Cit. in: Giussani. O senso religioso. Tradução de Paulo Afonso E. Oliveira. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000, pp. 105-106).

 
 

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