O grande teólogo suíço e a sua leitura da cultura ocidental, a partir da consciência de que toda criatura é um dom de Deus. E por isso o homem deve ser grato a Ele. Cem anos depois do seu nascimento, a reflexão de um de seus discípulos
"Só o amor é confiável”: essas palavras, que formam o título de um dos seus livros, são uma espécie de compêndio da obra do teólogo suíço Hans Urs von Balthasar, cujo centenário de nascimento ocorre este ano. Para algumas pessoas, essas palavras podem parecer simples demais para ter eficácia numa situação cultural como a de hoje, com os seus blocos de poder global, economias consumistas e as “amigáveis” biotecnologias. Mas Balthasar estava plenamente consciente da complexidade dos problemas atuais. Ele, todavia, não concebia essas palavras como contendo a única verdade capaz de enfrentar os problemas em sua raiz, sem parar apenas nos sintomas.
Os cristãos, dizia ele, são “os guardiões de uma metafísica da pessoa integral, numa época em que se esqueceu tanto do Ser quanto de Deus”. Eles carregam a responsabilidade de manter vivo esse amor pleno de admiração que é o ponto de origem de uma existência autenticamente humana, incluindo todo o cosmo em sua amplitude. Esse sentimento de admiração já se encontra (de forma inconsciente, mas viva) no olhar do bebê que abre pela primeira vez os olhos e vê o sorriso da mãe. Por meio desse sorriso, o bebê aprende que “é afirmado, amado e acolhido dentro de uma relação que, de modo inefável, o abraça, o protege e o alimenta”. Em outras palavras, a relação gera a admiração, porque lhe foi concedido o dom do ser. “Essa condição de ter sido levado ao ser não pode ser superada por nenhuma outra interpretação das leis e das necessidades do mundo”.
A teologia de Balthasar – de uma admiração que evoca o dom e de um dom que evoca a admiração – encontra a sua forma teológica na obediência agradecida do fiat (sim) crístico-mariano-eclesial. A frase que ele cunhou para definir o “método” fundamental da teologia é kniende theologie – teologia genuflexa, ou teologia orante. Tal
teologia não exclui outros métodos (por exemplo, histórico-críticos), mas, ao contrário, só os compreende se os integrar a si. Os santos, insistia Balthasar – aqueles em quem o Verbo de Deus autenticamente se encarnou –, são os únicos que, em última instância, têm o direito de falar de Deus.
Recolher os tesouros do Egito
O conjunto da obra de Balthasar, com nada menos que 119 livros, abarca toda a herança ocidental da Filosofia, da Literatura, da Arte e da Teologia. Como disse o cardeal Ratzinger na homilia pronunciada nos funerais de Balthasar, esse grande teólogo não era movido pela simples curiosidade de conhecer muitas coisas ou pelo senso de poder que deriva do fato de possuir muitas capacidades. Seu interesse era mais o de “recolher os tesouros do Egito nos depósitos da nossa Fé” (segundo a linguagem dos Padres da Igreja), e sabia que “tais tesouros só produzem fruto num coração convertido”. Enfim, a teologia não vive tanto “daquilo que se pensa (e sim) daquilo que se recebe”. “Por isso Balthasar – afirmava Ratzinger – era... um homem de Igreja, no sentido mais profundo do termo.”
O profundo senso do dom, que tinha origem na communio divina revelada em Jesus Cristo, é que inspirava Balthasar em sua leitura da cultura ocidental. De fato, Henri de Lubac – que certa vez definiu Balthasar como “provavelmente o homem mais culto do nosso tempo” – escreveu que “o diagnóstico espiritual [que Balthasar faz] da nossa civilização é o mais agudo que existe”. Podemos compreender a profundidade dessa afirmação somente na medida em que enxergamos o maravilhamento, que está na origem da vida humana, também como a “lógica” dessa vida. Eis o que é a criatura: um dom de Deus, cujo ser [da criatura] se desvela oportunamente num movimento reconhecido em relação a Deus, um movimento que tenta recolher com gratidão tudo o que é pensado, feito e produzido. Os problemas característicos da nossa cultura estão, pois, justamente aí, na ausência de gratidão ou de grata obediência a Deus. A nossa política, a economia e as (bio)tecnologias, na sua expressão liberal, estão despidas da forma da criaturalidade. A verdade, a bondade e a beleza, que na época pré-moderna eram reconhecidas sobretudo como dadas (por Deus), agora são vistas antes de tudo como feitas pelo homem (como diz Vico: verum quia factum).
Contemplação e ação
Dom Luigi Giussani gostava muito das palavras de Romano Guardini: “Na experiência de um grande amor, tudo se torna acontecimento no seu âmbito”. Balthasar concebia todo o cosmo, inclusive toda a cultura humana, como um evento interno ao amor de Deus. Um evento de amor, não como algo “piedoso”, mas como um evento significativo, como a própria face do Ser. Assim, “o mundo inteiro, graças à presença do Filho encarnado, que é a Imagem definitiva do Pai, transforma-se numa espécie de sacramento da verdade e do amor divino”. Como dizia Adrienne von Speyr, a mais estreita colaboradora de Balthasar, o intercâmbio trinitário de amor, no seio de Deus, “abre-se ao mundo”, de modo que a palavra mesma torna-se um “intercâmbio entre céu e Terra”.
Balthasar era um contemplativo, mas não no sentido de uma pessoa desligada do mundo. Compreendia que todo gesto é vazio e estéril se não nasce da contemplação, e por isso era um homem de ação, no sentido mariano – por isso, joanino e inaciano – do termo. O compromisso de Balthasar com o mundo expressou-se primeiramente em três fundações. Em 1945, junto com von Speyr, fundou a Comunidade de São João, um “instituto secular” (Weltgemeinschaft): uma comunidade formada por sacerdotes e leigos – homens e mulheres – que vi-viam um amor consagrado no meio do mundo. Em 1947, fundou a Johannes Verlag, uma editora que tinha a missão de divulgar obras teológicas, filosóficas, espirituais e literárias que evidenciassem o catolicismo e o sentido católico do amor evangélico. Por último, em 1972, com os teólogos Henri de Lubac, Joseph Ratzinger e outros (Karol Wojtyla colaborou sucessivamente para divulgar a revista na Polônia), Balthasar fundou a revista internacional de teologia e cultura Communio, que hoje é publicada em 14 idiomas.
Balthasar e o Concílio
Balthasar via a Communio como um instrumento para se explicitar a doutrina conciliar frente às controvérsias e à crescente incerteza que se seguiu ao Concílio, afetando a fé católica histórica e o próprio significado da vida humana. Balthasar foi criticado por alguns, nos anos que se seguiram ao Concílio, por ter abandonado a sua posição pré-conciliar de abertura da Igreja ao mundo [cf., por exemplo, Schleifung der Bastionem, 1952 (Abattere i bastioni, Turim 1966)] e ter retomado uma visão “integrista” [cf., por exemplo, Cordula, 1966 (Cordula ovverosia il caso serio, Bréscia 1993)]. Mas a verdade da sua posição – quer dizer, o núcleo constante do seu ser, ininterruptamente centrado na Igreja e no mundo – pode ser identificada em seu famoso artigo “Daz Konzil des Heiligen Geistes” (O Concílio do Espírito Santo), 1966.
“Só o amor é confiável”: essas palavras, em síntese, transmitiam para Balthasar um “novo” realismo, capaz de transformar o tédio gerado pela vazia alma tecnocrática (anima technica vacua), característica da época moderna, e isso sem cair no “moralismo” próprio da antimodernidade. A missão dos cristãos, hoje, é dar testemunho, em todos os aspectos da sua existência, do gesto de amor cuja forma é dada no sofrido fiat de Cristo. Os cristãos devem ler os sinais dos tempos à luz do Evangelho. A inculturação do Evangelho, que daí decorre, será uma nova inculturação, não a imposição mecânica de uma velha. Será uma inculturação criativa, formada na liberdade do Espírito. Tudo isso poderá acontecer, desde que os cristãos não deixem de se maravilhar, não deixem de amar.
* David L. Schindler é professor de Teologia fundamental no Instituto João Paulo II para o Estudo do Matrimônio e da Família, Washington D.C.; diretor de Communio (edição norte-americana).
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Quem foi Hans Urs von Balthasar?
Hans Urs von Balthasar nasceu em Lucerna, na Suíça, no dia 12 de agosto de 1905 e faleceu no dia 26 de junho de 1988. Ele é considerado um dos intelectuais e escritores católicos mais importantes do século XX, autor de 119 livros e de centenas de artigos. Sacerdote, professor em Basiléia e capelão de estudantes, conheceu a mística Adrienne von Speyr (1902-1967), que se converteria do protestantismo à Igreja católica sob sua direção espiritual. A obra de Speyr converteu-se em uma fonte decisiva de inspiração de Balthasar. Juntos fundaram o instituto secular “Comunidade de São João”. Em 1972, junto aos teólogos Jean Daniélou, Henri de Lubac e Joseph Ratzinger, fundou Communio, uma das revistas católicas mais importantes da atualidade. Faleceu um dia após João Paulo II anunciar sua intenção de criá-lo cardeal em reconhecimento de seu serviço à Igreja.
Numa mensagem dedicada ao centenário da morte de von Balthasar, o Papa Bento XVI explica a importância da sua contribuição à Igreja: “Fez do mistério da Encarnação o objeto privilegiado de seu estudo. Na morte e ressurreição de Jesus, de fato, revela-se em plenitude o mistério do amor trinitário de Deus. A realidade da fé encontra aqui sua beleza insuperável”. Para von Balthasar a teologia só podia ser profunda e eficaz dentro de um contexto eclesial e iluminada pela espiritualidade. Sem excluir o aspecto científico da teologia moderna, defendia uma “teologia orante”, onde a reflexão se une à oração.
“O exemplo que von Balthasar nos deixou é especialmente aquele de um verdadeiro teólogo que na contemplação descobriu a ação coerente para dar o testemunho cristão ao mundo”, completa Bento XVI.
Veja aqui a mensagem completa de Bento XVI.
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Obras de Hans Urs von Balthasar disponíveis no Brasil
Apesar de ser um autor muito fecundo, com dezenas de livros publicados, von Balthasar é relativamente pouco conhecido no Brasil. Entre suas obras disponíveis em português estão:
> Meditar como Cristãos, Editora Santuário, 112 p., 2004.
> O Cristão e a Angústia, Editora Cristã
Novo Século Fonte Editorial, 87 p., 2004.
> Quem é cristão?, Editora Cristã Novo
Século Fonte Editorial, 100 p., 2004.
> Teologia da História, Editora Cristã Novo Século Fonte Editorial, 111 p., 2005.
Credits /
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