Vai para os conteúdos

Passos N.65, Setembro 2005

DESTAQUE / LA THUILE

Uma relâmpago na neblina
Retorno à realidade

por Luigi Amicone

Oitocentos jovens e adultos vindos de 70 países participaram da Assembléia Internacional dos Responsáveis do Movimento. Cada um trouxe a própria experiência. Cada um era testemunha do amor de Cristo pelo homem, contra qualquer tipo de dualismo e niilismo, que nos separam do real

Digamos, logo de início, que em La Thuile, no Vale de Aosta, as montanhas dominam de tal modo a planície que o céu, coitado!, só aparece uma nesga. Graças a Deus, foram quatro dias de tempo muito bom. O dia do passeio foi o mais bonito: o céu era azul, o sol brilhava fulgurante e havia uma suave brisa; tudo conspirava a favor dos navegantes... Este ano foi assim que realizamos a Assembléia Internacional dos Responsáveis no hotel dos proprietários Graziano De Bellini e do seu amigo Igino, ambos de Pádua, que construíram um pequeno império de turismo inteligente. Don Gius nos assistia lá do Alto, e nós, aqui embaixo, no sopé das montanhas cobertas de neve, tendo ao lado um colega de quarto estrangeiro, mas que não o impedia de ser reconhecido como um de nós. “Dêem as razões da esperança que existe em vocês” e “a esperança não decepciona” foram o tema da nossa meia semana de trabalho. Fomos convocados para ouvir e dialogar com 800 jovens e adultos vindos das comunidades de CL presentes em 70 países do mundo. Antes de tudo, a programação diária foi feita com o propósito de centrar o foco na experiência como caminho para a verdade: despertar (às 8h), café da manhã, oração das Laudes, assembléia (nos dias ímpares), palestra (nos dias pares), cantos e música clássica (sempre), Eucaristia, testemunhos (à noite), silêncio (“às 00h30”, dizia Mr. Carras). O clima proposto era o do silêncio pleno de diálogo com o companheiro de caminhada, o que nos mantinha em sintonia com o significado do nosso convívio.

Como crianças
Trabalho – a vida é toda ela um trabalho, inclusive em suas ramificações aparentemente mais irrelevantes – voltado para a adesão ao Mistério criador, àquele “algo que existe dentro de todas as coisas” (como nos foi dito) que rompe a opacidade das coisas, maquiadas pelo nosso preconceito ativista, e finalmente faz ver (e usufruir) aquele “algo mais” original – que sempre foge das nossas fantasias – de que é constituída a realidade. “Se não vos tornardes como crianças, jamais entrareis”. Voltar, entrar e ver, esse é o bom trabalho. Reconstituir aquela relação original pela qual a criança vai de uma coisa a outra, aderindo a elas sem idolatria, usando a bel-prazer o mundo, à vontade, sem antepor à experiência qualquer pensamento abstrato: sim, isso permite experimentar o mundo tal como Deus o fez.
“Apesar de tudo [da guerra e do Holocausto de seis milhões de judeus; ndr], a mim me parece que o mundo, tal como Deus o fez, é bom” (Arendt). Tão bom que as crianças ficam à vontade nele, não somente como macaquinho, árvore ou pedra, mas justamente como ser feito à imagem e semelhança de Deus, numa original e amorosa dependência dEle. Claro, todas as coisas são boas, mas a mãe, o rosto da tua mãe, do teu pai, da tua amada, faz saltar a tua consciência e iluminam o teu rosto, como nenhuma outra coisa é capaz de fazê-lo, assim como o abraço de Maria fez João saltar no ventre de Isabel e iluminou o rosto dela.

O ponto crítico
Julián Carrón começou sua palestra citando justamente Arendt, “a ideologia não é a ingênua aceitação do visível, mas o inteligente cancelamento da realidade”. E esse é o ponto crítico da época atual, que penetra sorrateiramente, como uma tentação, dentro de cada um de nós. “Dificuldade de reconhecer esse algo dentro de cada coisa. Redução da realidade à aparência. E, por isso, um relacionamento com a realidade que deixa de fora o Mistério. É o chamado dualismo. De um lado, o real; do outro, o Mistério” (que se existe, não importa). “Um eu, já constituído, ao qual se acrescenta alguma coisa”. Um eu que se forma independentemente da realidade. Resulta daí uma justaposição, a impossibilidade de um “conhecimento amoroso”. “Aí tem início a vitória do niilismo”. Ruim para o evento cristão, que hoje é freqüentemente ignorado até no seu elementar dado de fato (inclusive no coração da aldeia global, naquela capital de toda a comunicação e informação mundial que é Nova York: “Mas por que os jornais são tão críticos em relação ao filme A Paixão de Cristo, de Mel Gibson? Quem é esse Jesus?”, perguntou uma colega a Giovanni Cesana, médico e pesquisador numa importante universidade nova-iorquina). Mas, mesmo para quem o conhece, quem é Cristo? “Cristo não é mais uma autoridade, mas um objeto sentimental; Deus é um espantalho, não um amigo”.
O carisma nos libertou dessa ignorância e, sobretudo, da ausência de um método, da falta de empenho da razão, diz Carrón. “Identificar-se com padre Giussani é identificar-se com um método”. Ou tudo não passa de um nada sentimental. “Giussani não nos deixou um grupo de espiritualidade; nos deixou, na verdade, uma revolução histórica, para dar uma resposta ao drama da nossa época, que é a inimizade com o Mistério”. Porque o que está em crise “é a nossa misteriosa ligação com o Real”, diz Carrón, citando María Zambrano. Assim, “perdeu-se aquilo que alimenta a vida”. Mas se perdemos o que alimenta a vida, como olharemos o rosto dos nossos filhos? O que os salvará do olhar petrificante da nossa medida? E do Poder?

Viver o real
Eis aí o ponto de partida, o primeiro passo do método, o primeiro ato de racionalidade: viver o real, viver a razão, como janela escancarada para a realidade, na totalidade dos seus fatores, isto é, até a afirmação do Mistério, que é parte dela. Essa é a vida da qual nasce o nosso Movimento – Carrón cita uma carta do padre Giussani a Angelo Maio, carta de 1946;, quando ele tinha 24 anos – vida que é um “tu”, amigo, é “essa vibração inefável e total diante das coisas e das pessoas”. “Reler, até torná-lo familiar, o capítulo 10 de O Senso Religioso”, sugere Carrón; a lei do ser é um “Tu”, é um “Eu sou tu-que-me-fazes”. Porém, é possível experimentar que “nenhum de nós consegue, sozinho, lançar um olhar verdadeiro para o real”. Para isso – segundo ponto do método – temos a graça de receber a mãe de todas as notícias: “Para nos familiarizar com o Mistério, o Mistério penetrou na História. O cristianismo é o anúncio de que Deus se tornou homem, num determinado lugar, numa determinada época”. Um encontro que se renova hoje, para nós, “como um relâmpago na neblina”. Como para João e André, naquela tarde, dois mil anos atrás, o encontro significa topar com uma excepcionalidade humana que não tem comparação, onde “o excepcional é algo que corresponde à exigência original do coração, por mais confusa e nebulosa que seja a consciência dela”. De fato, não é nos livros de história ou de teologia que se aprende que “a presença de Cristo é a companhia que nos provoca”; isso a gente compreende tão logo se senta à mesa com uma dessas 800 pessoas presentes à assembléia, testemunhas do Seu corpo no mundo (“Corpo é o que aparece e que mostra aquilo que uma pessoa é”, explica Carrón. “É real e, ao mesmo tempo, extrapola, afunda as raízes numa terra que desconhecemos, a terra do Ser”).

Dennis, Cleuza, Marcos... e outros
São coisas quase invisíveis, mas elas trazem dentro de si o drama do universo (“Meu colega perdeu a fé; durante o genocídio de Ruanda, mataram toda a sua família, cerca de dois mil parentes próximos e distantes; ele falou com muitas autoridades eclesiásticas, mas ninguém o convenceu, até porque se tratava de homens da Igreja que tinham sido coniventes [com o regime]. Acho que sou a sua única esperança, contra qualquer esperança”, diz Dennis, de CL de Ruanda). Outra experiência é a da brasileira Cleuza e de seu marido Marcos Zerbini, que por caminhos absolutamente inimagináveis levaram adiante o movimento dos sem terra – cem mil homens e mulheres engajados há anos nas lutas sociais – dentro do movimento de CL. Diz Cleuza: “Um médico que falava muito e enchia o seu discurso com referências ao padre Giussani, e seus amigos que sempre citavam Giussani, e eram estranhos, diferentes, mas de uma estranheza/diversidade boa, atenta às pessoas, aos seus problemas materiais – para resumir, encontrei aquilo que me faltava, a esperança”. E intervindo em uma das assembléias, com alegre ironia diz: “Calma, Carrón, se por acaso 10% dos nossos aceitassem o seu conselho, me diga como é que eu e meu marido faríamos para acolher dez mil pessoas numa Escola de comunidade?”.
E como em La Thuile fala-se italiano, e como Carrón é espanhol, vocês podem imaginar o trabalho que têm os intérpretes. Vocês acham normal que um Bispo (dom Filippo de Petrópolis) desempenhe tranqüilamente o serviço de intérprete, na cabine de tradução simultânea, ou que Annamaria passe quatro dias grudada à saia da sua patrícia croata Ylena, para traduzir-lhe todas as palestras, bem como as assembléias e os encontros? “Tudo muda, tudo muda”.

Espetáculo de uma humanidade variada
O coral argentino anima o ambiente depois do jantar. Vocês precisavam ver o coral de alpinos negros cantando Sul pajon! Na medida em que o grupo cresce, na varanda, nigerianos e americanos, austríacos e italianos, todos juntos cantam Guantanamera e Aída! Mas Pablo não sabe por onde começar a história. Porque Pablo vem da Colômbia, e o show acontece num bairro onde os rapazes vestem camiseta Benetton (com a figura de ovelhinhas pedindo para não serem sacrificadas) e no bairro ao lado outros grupos fazem o “rapa”, ou seja, esquadrões da morte abatem – por um euro cada um – travestis, prostitutas e drogados. Enrique vem do Chile (e se vê que “o continente sul-americano pode cair numa nova onda de populismo e caudilhismo”), e Michelle de Washington (onde trabalha como jornalista e o seu problema é aprender a profissão e trabalhar duro para conseguir o doutorado). Cindy é australiana, “referência de CL”, contra a sua vontade, “as circunstâncias, não fui eu que as escolhi; a gente topa com elas; acho que não encontrei nada melhor na minha vida, e olhe que já vi muitas coisas na minha vida, tenho três filhos, de 20, 18 e 16 anos, renasci aos quarenta e poucos anos” (John também é australiano, mas de Perth, costa oeste, onde tudo aparentemente corre contra Cristo, porque, diz a camiseta do lugar, onde se faz o café da manhã na praia, abre-se um parêntese para o trabalho, à tarde um aperitivo na varanda, no começo da noite, abraçados, assistindo ao pôr-do-sol atrás do oceano; “ó Deus, é um outro dia muito chato no Paraíso!”).
Que espetáculo de variedade, de humanidade, de histórias, de alegria misturada com sofrimentos, conhecidos e ocultos! Mas eis-nos aqui com gente que jamais imaginaríamos conhecer: negros, brancos, amarelos, Olga de Moscou e jovens siberianos, gentis chineses e uma sul-coreana fantástica. Fomos todos atraídos pelo Ser, pela Presença. Por meio do carisma, foi-nos dado chegar a Ele!

A atração do Ser
Também para os Responsáveis, pois, o Movimento se revela em todos os seus níveis: pessoal, comunitário, geográfico e espaço-temporal. Havíamos saído do Meeting de Rímini maravilhados com uma realidade que se abria a todos, e que não era hostil a ninguém. Chegamos para a Assembléia tendo sido tocados pela solidez de uma beleza pura. O que impressiona, de fato, não é a variedade e a riqueza das pessoas vindas de todas as partes do mundo. O que impressiona, humanamente falando, é que existe Algo que torna possível tudo isso. “Como é belo o mundo e como Deus é grande”, repete o coral do nosso Movimento. Libertados do inferno do dualismo, nós vemos e tocamos com as mãos e anunciamos uma vida, só uma vida, nada mais que uma vida, que nos faz ceder à atração. À atração do Ser que vem ao nosso encontro.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página