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Passos N.64, Agosto 2005

HISTÓRIA DA IGREJA / O DUOMO DE MILÃO

A oferta do povo
para a casa de Deus

por Martina Saltamacchia

Uma tese de licenciatura em Economia: a construção do Duomo de Milão foi financiada pelo povo ou pelos príncipes e pelos ricos mercadores? Uma análise dos manuscritos inéditos dos registros das oblações e dos Anais da Fábrica do Duomo no ano de 1400 traz à tona uma questão interessante da história da Igreja

No desânimo inicial devido à incompreensibilidade dos escritos (em caractere gótico lombardo) e a longa e repetitiva transcrição de valores (em lire-soldi-denari, expressas em sistemas diferentes do nosso, métrico decimal) logo se transformou em uma comoção inestimável à medida que daqueles encáusticos desbotados começaram a surgir inúmeras histórias de homens e mulheres movidos cotidianamente por pequenos grandes atos de caridade.

Tudo para a construção
O homem medieval estava bem consciente de que tudo concorria para a construção: cada gesto, por mais banal e humilde que fosse, adquiria um valor eterno na oferta; assim como qualquer bem, até os mais insignificantes, servia para a edificação da catedral. Todas as coisas, nessa perspectiva, se tornavam ocasião de oferta: tanto a florzinha de ouro como a moedinha de arame, o anel de diamantes como o botão de madrepérolas, o tonel de vinho como o saco de forragem, tanto a toalha bordada como a capa surrada. Toda dádiva encontrava imediatamente a sua utilidade no canteiro de obra (cal, ferro, ferramentas), na igreja (paramentos litúrgicos, tecidos bordados e cera), entre os operários (pão e vinho) ou, ainda, era transformado em dinheiro por meio da venda em leilão público organizado todos os dias junto ao palácio comum na praça adjacente ao canteiro de obra.
Do mesmo modo, todas as circunstâncias participavam dessa obra, até mesmo a morte. Quando as epidemias de peste assolavam a cidade, por exemplo, delegados da Fábrica se recolhiam aos hospitais para espoliar os defuntos de suas vestes, que eram vendidas novamente depois de um ano de depósito de precaução em um galpão apropriado, ou então – se as vestes estivessem muito deterioradas – retiravam-se os botões e fios de ouro e de prata bordados, para serem vendidos separadamente nas lojas.
Cada um, com o seu nada, concorria às necessidades da construção. Tabeliões, vendedores, pescadores, ourives, padeiros, operários do moinho, açougueiros emprestavam gratuitamente os seus braços para cavar as fundações. Engenheiros e operários do canteiro de obra devolviam algumas vezes como oferta os seus próprios salários, ou renunciavam o direito ao salário em troca de indulgência para os seus pecados. As prostitutas, ao término de suas rondas noturnas, depositavam sobre o altar uma parte do que haviam lucrado. No altar, o vigário do Arcebispo devia providenciar para que uma vela permanecesse sempre acesa, para que a qualquer momento os doadores pudessem depositar o próprio óbulo; a frágil luz da lâmpada permitia ao encarregado, chamado ebdomsdale, distinguir as ofertas mantendo na penumbra o rosto do doador.

À porta dos fiéis
E quando não era o fiel a ir até a Igreja, era a Igreja que ia bater à porta do fiel. Todos desejavam participar da construção da catedral, alguns lapidando um bloco de mármore, outros depositando uma moeda, outros ainda separando um pouco da sua colheita para os operários do canteiro de obra. Porém, nem sempre era possível para as pessoas chegarem das cidades e dos campos ao centro de Milão, ausentando-se da loja ou do campo para percorrer a pé estradas que o frio, os malfeitores ou as freqüentes guerrilhas muitas vezes tornavam intransitáveis. Por isso, com o passar do tempo a Fábrica havia aperfeiçoado, com um resultado admirável, um minu-cioso sistema de coleta das ofertas que alcançasse cada ângulo do condado. Caixa-forte e cofres – troncos de madeira vazios nos quais depositar as esmolas – eram colocados em todos os pontos nevrálgicos e de maior movimentação: junto às portas das cidades, nos cruzamentos das ruas principais, nas igrejas, nos palácios públicos. Grupos de crianças vestidas de branco desfilavam dançando e cantando nas praças e nas encruzilhadas, pedindo aos pedestres ofertas para a catedral. Sacerdotes, frades mendicantes e voluntários leigos eram enviados, em grupos ordenados, aos vilarejos mais distantes. Lá chegando celebravam missa matinal à qual todo o povo acorria, e depois de uma homilia em que se falava sobre a virtude da caridade era dado o anúncio do grande empreendimento da construção. Portanto, o grupo dos coletores batia em todas as portas para pedir às famílias doações de todas as espécies.
Mesmo a diversão e o desejo de fazer festas comunitárias eram vividos em função da catedral. Procissões espetaculares, chamadas de “triunfais”, eram organizadas anualmente nas seis portas de Milão para levar solenemente ao Duomo a própria oferta; cada porta disputava para ser a mais pomposa, encenando dramas sacros ou mitológicos sobre carros decorados por toda a população. Na chegada os cortejos eram acolhidos por uma multidão encabeçada por duques, cavaleiros e damas, e a cada um era oferecido um copo de vinho.

Longas relações de valores
Porém, acredito que o aspecto mais impressionante dessa história deva ser ainda investigado nas longas relações de valores contidas nos registros de doações.
É graças ao espetáculo da caridade que – em anos marcados por guerras, violências, carestias e epidemias – se encenou silenciosamente pelas estradas e ruas dessa cidade, que aparece ao nosso olhar distraído um solícito exército de santos de mármore para nos lembrar do Céu e que o abraço da Madonnina nos acolhe, acima do caos dos nossos dias, para nunca nos esquecermos do quanto fomos preferidos e amados.
Somente no ano de 1400 são aproximadamente 8.000 doações coletadas, em dinheiro ou in natura, para um valor total de mais de 42.000 liras da época. Cifra considerável, se pensarmos que, além de representar pouco menos de um terço das receitas (dentre as outras formas de recursos havia, por exemplo, heranças e bens imobi-liários), cobre a quase totalidade das insignificantes despesas para o gigantesco canteiro (equivalente a um pouco mais de 49.000 liras para aquele ano), no qual os operários recebiam em média 3 liras por mês. Os valores das doações variam, no ano de 1400, de um mínimo de qualquer denaro (a 240esima parte da lira) a um máximo de 1.500 liras, por parte de um benfeitor anônimo que pede para ser identificado nos registros como um devoto da Beatíssima Virgem Maria, que doa os seus favores para que sob o seu nome seja edificada novamente a igreja da cidade. Dentre as ofertas destaca-se a contribuição do príncipe Gian Galeazzo Visconti, o que corresponde mensalmente para a fábrica 700-800 liras, valor realmente exorbitante em relação às 4 ou 5 liras depositadas em média pelo povo. E apesar disso a contribuição principesca representa somente 16% do total recolhido naquele ano, ao passo que o montante total de doações e ofertas do povo corresponde a 84%, cujas doações mais pobres, de valores correspondentes entre 1 denaro e 10 liras, representam 28%.

O casaco de Catarina
É, portanto, a uma multidão de pessoas comuns que se deve a construção do Duomo de Milão, homens e mulheres felizes por doarem tudo aquilo que possuíam para uma obra que – bem sabiam – os seus olhos nunca poderiam contemplar acabada. Homens e mulheres ricos somente de uma fé indestrutível; tendo como única certeza onde fixar o próprio coração. Como é o caso de Catarina de Abbiateguazzone, uma paupérrima velhinha que já há algum tempo se ocupava em ajudar os operários do canteiro, transportando materiais de construção no cesto que carregava às costas. Em uma gélida manhã de novembro de 1387, foi depositar como oferta, sobre o altar, o casaco já surrado com o qual se refugiava do frio. Em seguida um homem, Manuele, reconhece o casaco e o adquire imediatamente, para restituí-lo novamente às costas de Catarina. A Administração da Fábrica, tomando conhecimento do nobre gesto daquela pobre mulher, gratifica-a, depois de alguns meses, pagando-lhe o aluguel da casa em que ela morava.
Non nobis, Domine, sed nomini Tuo da gloriam” (Não a nós Senhor, não a nós, mas ao Teu nome seja dada glória) é como intitulei a minha tese.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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