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Passos N.64, Agosto 2005

DOCUMENTO / DIÁLOGO COM PADRE CARRÓN

A preferência que nos
salva do niilismo

Por ocasião do Congresso Eucarístico Nacional da Itália, realizado em Bari de 21 a 28 de maio de 2005, a comunidade de Comunhão e Libertação da região da Puglia promoveu, em conjunto com o comitê diocesano do Congresso, um encontro público sobre o tema: “Uma vida que encontra a vida. Diálogo com padre Julián Carrón”. O encontro foi proposto como contribuição de aprofundamento e de testemunho sobre o tema que reuniu, em Bari, toda a igreja italiana: “Sem o domingo não podemos viver”. O gesto aconteceu na sexta-feira, 27 de maio, às 16h30, na Sala Magna do Colégio Politécnico de Bari, coligada por videoconferência a outras três salas, e teve a participação de mais de 1.500 pessoas. Entre as personalidades presentes estavam o prefeito de Bari, Michele Emiliano, e o reitor da Universidade de Bari, Giovanni Girone. Na manhã do mesmo dia, Carrón participou de uma mesa redonda sobre o laicato (veja Passos, junho 2005, pp. 46-47) presidida pelo Cardeal Camillo Ruini e da qual participaram responsáveis de Movimentos e Associações Eclesiais.

Constantino Esposito: “Se os homens viessem a ser privados do infinitamente grande, eles não poderiam mais viver e morreriam tomados pela desesperança”. Pela manhã, Julián Carrón citou esta frase de Dostoievski durante a sua colocação no Congresso Eucarístico Nacional, e ela me parece muito significativa para chamar a atenção sobre a experiência humana à qual somos educados pelo carisma de Comunhão e Libertação e que queremos propor dentro deste Congresso como contribuição humilde e que, certamente, é para todos. Na experiência, nós descobrimos que o que nos faz homens é o desejo de totalidade e de infinito, e o drama da vida começa no momento em que percebemos que nós mesmos não podemos responder a esse desejo. Mas, quando aparece alguém que começa a nos responder, então, a vida começa: uma vida que encontra a nossa vida, segundo uma das mais belas definições da experiência cristã deixada por padre Giussani. O encontro desta tarde quer ser uma ajuda para entender de que modo esta vida está encontrando, encontrou, há dois mil anos, veio de encontro à nossa vida e continua a encontrá-la, hoje. É a maravilha pela presença que salva tudo de nós, como disse padre Carrón na sua conclusão desta manhã, abrindo uma nova perspectiva em relação a tudo o que habitualmente se diz sobre a Eucaristia: de fato, só é possível um homem estar realmente interessado pela Eucaristia – quer dizer, pela presença real de Cristo – porque ela salva tudo de nós, até a sensibilidade, até o instante que passa.
Padre Carrón colocou-se à disposição para responder algumas perguntas que, infelizmente, serão feitas todas por mim. Mas digo isso com uma certa tranqüilidade porque as perguntas que elaborei não são apenas questões pessoais, mas perguntas que estão imersas em muitas conversas entre nós e entre os muitos que encontramos que não são de CL e que, em muitos casos, sequer se diriam cristãos. Perguntas nascidas nestes últimos meses, a partir de fatos concretos e extraordinários, como a morte e os funerais de padre Giussani e de João Paulo II (a morte: pode parecer estranho, mas é possível falar de morte como um reflexo de vida, sem que pareça discorde dizê-lo, quando se reconhece nela um fator real da experiência da vida) e a surpresa cheia de gratidão pela eleição do cardeal Joseph Ratzinger como Bento XVI. São estes fatos e, também, outros, talvez muito menores, que acontecem cotidianamente na vida de muitos entre nós, que fazem nascer a pergunta: “Quem era aquele homem? Que tipo de experiência gerou? O que aconteceu na humanidade daquela pessoa a ponto de gerar um povo?”. Um povo: não uma massa, mas um lugar no qual emerge um vislumbre de consciência, uma consciência nova do eu. Por isso, espero que estas perguntas digam respeito a todos.
A primeira pergunta é sobre o tema pelo qual o senhor está aqui em Bari – e agradecemos ao Congresso Eucarístico por isso – e que é, exatamente, a Eucaristia. Para muitos, esse é um tema que tem a ver somente com o culto e se identifica mecanicamente com um rito. Mas, lemos no número de maio da revista Passos um texto de padre Giussani datado de 1996 que torna possível uma identificação existencial com essa palavra. Padre Giussani escreve: “O que a palavra ‘Eucaristia’ nos convida a identificar é exatamente o método com o qual Deus se manifesta”, ou seja, uma “presença” que responde ao desejo mais profundo do coração do homem, um acontecimento que valoriza e desperta a espera de realização que é a vida, como vimos – como todos viram – exatamente nos fatos que citei anteriormente. E Bento XVI, no último dia 24 de abril, dizia isso novamente, gritava-o na Praça São Pedro: “A Igreja está viva”, ela encontra e muda surpreendentemente o humano. Queremos perguntar ao senhor: quais são os fatores decisivos desta vida e como é possível, para nós, verificá-los hoje?

Julián Carrón: Antes de mais nada, gostaria de lhes agradecer por esta oportunidade de estarmos juntos e passar estes momentos falando das coisas que mais interessam a cada um de nós. Diante dessa pergunta do Constantino, a primeira coisa que me vem em mente é o trecho do Evangelho que lemos há alguns dias: fala de um cego chamado Bartimeu, que era igual a muitos cegos naquela circunstância e, talvez, estivesse na esquina esperando que alguém lhe desse algum dinheiro. Assim que ouviu Jesus falar, assim que ouviu o rumor em volta dele, começou a perguntar: “Mas quem é este, o que está acontecendo?”. Disseram-lhe: “É Jesus, Jesus de Nazaré”. Então, começou a andar atrás deles gritando; e os outros tentavam fazê-lo parar de gritar. O Evangelho diz: “Gritava ainda mais” a ponto de Jesus escutá-lo e parar. “O que queres de mim?” “Quero ver.” E Jesus respondeu ao seu desejo fazendo um milagre. Tudo está ali: a vida não é uma abstração, a vida é, como veremos, um desejo que alguém tem dentro do coração, como o desejo de ver que aquele cego tinha. O primeiro fator dessa experiência, da qual me perguntava Constantino, é a humanidade que carregamos e que tem no coração uma urgência de plenitude e um desejo de verdade, de beleza e de realização que não podemos arrancar de nós. Este é um desejo de totalidade, dizia ele antes, e é verdade: porque é o desejo do impossível, de algo que é tão grande que percebemos que é impossível ao homem responder a ele. Mas ele existe, e nós não somos capazes de satisfazer a nós mesmos. Embora muitas vezes tentemos, não conseguimos. Senão seria fácil reduzir, como reduzimos a temperatura do ar condicionado, a amplitude do desejo. Algumas vezes tentamos, mas não conseguimos porque está inscrito na nossa natureza; está além, está no início, está antes de qualquer movimento da liberdade, nós o carregamos e ele urge dentro de nós de muitas maneiras, nas necessidades que temos, como algo que brota do mais íntimo do nosso coração, das nossas vísceras, como uma urgência que é maior do que nós. Tanto é verdade que todas as manhãs não podemos deixar de percebê-lo em nós, não importa o que tenha acontecido no dia anterior. São urgências que podem ter muitas modalidades: tristeza, solidão, cansaço, desejo de plenitude, de amor. As modalidades podem ser quase infinitas, mas são todas modalidades desse desejo que carregamos e que urge dentro de nós como algo que nunca pára. Não é como ler tranqüilamente uma poesia que fala sobre essas coisas; não, não, não! É algo que sentimos por dentro, que sentimos vibrar dentro de nós e que aprendemos a identificar com a palavra “coração”, que resume esse conjunto de exigências que sentimos no fundo e que, se as levamos a sério, tornam-se verdadeiramente o critério de juízo com o qual sempre nos lançamos na realidade, todas as manhãs.
A primeira questão é tomar consciência de que esse coração é a maior afirmação que se pode fazer da dignidade do homem porque ninguém, quando toma consciência do que é o coração, pode não se importar, ninguém, porque ninguém é capaz de mudar esse coração, nem mesmo nós que muitas vezes experimentamos quase esquecê-lo. Ao contrário, esse coração, assim como nos foi dado, assim como nos constrói, nos lança no real para verificarmos, em cada coisa que encontramos, se corresponde ou não ao desejo que ele carrega. Eu sou grato a padre Giussani, e o digo todas as vezes que falo, porque, tendo me ajudado a entender isso, tendo me tornado consciente disso, permitiu-me fazer um caminho humano na vida. Porque eu, muitas vezes, encontrei pessoas grandes, mas as sentia distantes, porque eu era como um anão e não sabia como alcançá-las. No entanto, padre Giussani me mostrou um caminho, uma estrada para percorrer, e me ensinou um critério que não era o que ele decidia, mas o que eu reconhecia dentro de mim, na minha experiência e, por isso, me lançava continuamente a verificar, por meio dela, o que me correspondia. E quando se começa a fazer assim, cada coisa que acontece, mesmo quando se comete um erro, mesmo quando as coisas não acontecem do modo esperado, tudo se torna parte de um caminho, parte de uma construção. É como um tijolo com o qual, pouco a pouco, se constrói a própria vida. Tudo tem valor, mesmo quando se erra: olhem que isso é um espetáculo! Quando se aprende o que é a verdade, tudo serve para a construção da vida. Mesmo quando alguém diz “isto não existe”, quer dizer que existe alguma coisa e está afirmando sempre algo de verdadeiro, de belo, mesmo que ainda não o tenha encontrado e quer dizer que algo não corresponde. Mas existe algo que corresponde e, por isso, quando alguém o encontra, quando acontece a graça – digamos em linguagem cristã – do encontro com aquela presença única, excepcional, por meio do qual a pessoa começa a ver, a entrever uma correspondência, então, o próprio eu é exaltado. Foi isso o que nos aconteceu encontrando padre Giussani, assim como aconteceu aos apóstolos encontrando Jesus. O que sempre me impressiona são aqueles detalhes que poderiam passar por óbvios na vida, como quando lê no Evangelho: os dois primeiros que o encontraram pela primeira vez, João e André, não sabiam nada sobre Ele. Como o reconheceram entre tantos, entre tantos rostos que encontraram na vida, como reconheceram que era realmente Ele? É fácil, é fácil reconhecê-lo, como quando alguém vai a uma festa e reconhece a pessoa amada: nada é mais fácil que isso.
O cristianismo é fácil: alguém declara o contragolpe de uma Presença boa, que corresponde. E vê-se que O encontrou por uma coisa muito simples: porque a pessoa deseja revê-Lo no dia seguinte. Pensem em quantas pessoas vocês encontraram na vida que desejaram rever no dia seguinte, reencontrar no dia seguinte. Tudo começou assim, o Evangelho, a novidade cristã começou assim, de um modo absolutamente simples: o seguimento a Jesus não foi nada mais do que o desejo de rever, dia após dia, a pessoa que tocou a vida de alguém. Não somos loucos, não somos visionários, ao contrário, exatamente pelo fato de desejar revê-lo no dia seguinte e no outro e no outro, é possível verificar se fui um visionário, porque posso errar uma vez, duas vezes, três vezes, mas, na quinta, verifico, assim como na sexta e na oitava. É impossível não perceber quando se erra: tentem vocês mesmos. Realmente, a verificação de que alguém encontrou a verdade, de que alguém encontrou algo que lhe interessa para sempre dá-se exatamente pelo desejo de revê-lo continuamente, gesto que confirma cada vez mais se era realmente ele, como quando se encontra a pessoa amada: reencontrá-la confirma cada vez mais que realmente é ela. Por isso, aceitando participar daquela companhia, procurando responder ao desejo de vê-la outra vez, a pessoa verifica, com a razão e com a liberdade, não somente com o sentimento que, de fato era Ele.
É realmente uma coisa grande o modo como fomos feitos, e até Jesus submete-se a este critério de juízo que é o coração. Não devemos usar esse critério para todo o resto e não usá-lo para Jesus, seguindo-o sem razão. É exatamente no encontro com Jesus que se revela, por meio da experiência, o que é o coração; porque Jesus corresponde ao coração e, por isso, nos enche de razão e, quanto mais alguém o encontra, tanto mais tem razão para segui-Lo. E isso, pouco a pouco, desperta uma afeição por Jesus que é incomparável a qualquer outra coisa, porque a pessoa experimenta o cêntuplo na vida porque vê como a vida se torna cada vez mais intensa, maior, mais bela; quanto mais o tempo passa, mais a pessoa percebe por que Jesus é diferente, se realmente fez um encontro com Ele. Por que Jesus é diferente? Porque todas as outras coisas, mesmo quando prometem muito, depois, desiludem. A diferença está exatamente nisso: quanto mais se der a aproximação com Jesus, quanto mais afeiçoar-se a Ele, mais torna-se seu, mais poderá participar da novidade que Ele introduz na vida. Quem és, Cristo, quem és que não podemos privar-nos de Ti depois de termos Te encontrado? Porque, como cantamos, é como se cada vez mais “nós não sabíamos quem era”, e mais o visitamos e mais percebemos que ainda não o descobrimos inteiramente, porque tudo está por descobrir: é familiar, mas é cada vez mais novo. Mas quem é este a quem damos o nome de Jesus? Conforme a vida passa, Ele torna o coração cada vez mais feliz, mais contente e essa é a diferença. Impressiona-me muito o número de pessoas com mais de 40 anos que conhecemos que se tornaram céticas, quer dizer, que estão desiludidas, porque todos começamos na vida com um ímpeto, com uma curiosidade, com um desejo, mas, pouco a pouco, decaímos. Por isso, encontrar pessoas, como nós vimos, como padre Giussani, João Paulo II ou Bento XVI, que tem 78 anos, e ver neles como a vida que viveram não é como a de todos, mas que é possível viver e morrer sempre com um a mais, digam-me se há no mundo algo comparável a isso.

Esposito: Fiquei muito impressionado com o que o senhor disse agora sobre o fato de que, também em relação a Jesus, o critério de verificação é o coração porque, de outra forma, tudo se reduziria a um moralismo, a uma idéia nossa. Isso me faz pensar que é mesmo uma novidade essa dinâmica da qual o senhor fala, pela qual, encontrando Jesus por meio do encontro com o carisma de padre Giussani, tem início um caminho verdadeiramente humano. Ao contrário, para nós – digo “nós” e não “a mentalidade na qual vivemos”, porque essa mentalidade também é a nossa – verifica-se uma situação singular: ouvindo alguém como padre Giussani ou como o senhor que conta uma experiência de mudança do humano, sentimos um fascínio. Sentimos esse fascínio e, no entanto, também percebemos um trabalho porque se trata de uma tendência contrária à mentalidade de todos – que é também a nossa, repito –, vale dizer, a mentalidade do niilismo. O aspecto fascinante daquilo que o senhor disse também foi sublinhado por padre Giussani no artigo sobre a Eucaristia: por que a Eucaristia é surpreendente? Porque é o ponto no qual “a realidade sensível, a carne e o sangue não são limites, não se opõem à realidade última verdadeira, ao eterno, ao Espírito”. A realidade sensível não é mais separada em relação ao divino, ao ideal, ao espiritual, ao significado de tudo: ao contrário, é como se o sinal e o Mistério, como nos chamava a atenção esta manhã, coincidissem. Geralmente, no entanto, nós pensamos de outra maneira e consideramos o ideal como algo abstrato, reduzindo-o a uma idéia espiritualista ou traduzindo-o em um esforço voluntarista (“o que devemos fazer”, “como podemos empenhar-nos mais”) enquanto, por outro lado, a realidade sensível, aquilo que nos cabe e nos pesa na vida, parece levar somente ao ceticismo. Como nós, o senhor também faz parte dessa mentalidade, e por isso gostaríamos de lhe perguntar: como aquilo que o senhor nos disse julga e faz conhecer mais o drama do niilismo?

Carrón: Veja bem, tentar responder a essas perguntas que todos temos, numa época em que o niilismo nos circunda a todos, é ir verdadeiramente a fundo sobre o que é a vida, sobre o que é o real. Muitas vezes, o ideal nos parece abstrato, pensamos que podemos alcançá-lo por uma abstração, porém a modalidade com a qual o Mistério nos consentiu conhecer o real não é por meio de uma abstração, mas por algo concreto. Faço um exemplo: não conhecemos o amor fazendo um curso na universidade. Se fosse assim, todos aqueles que nos precederam e que não tiveram a sorte de ir à universidade seriam desgraçados, pobres coitados. Ao contrário não, porque nós – todos os homens – nos iniciamos no amor não por meio de um discurso, mas nos apaixonando ou sendo amados por alguém e, assim, entendemos, dentro da experiência, o que é o amor. Ninguém nos deu aula, mas nós pudemos julgar se a lição era verdadeira ou não, por meio da experiência que fizemos. O critério é a nossa experiência. Esse método, com o qual somos introduzidos na verdade das coisas, daquelas que são verdadeiramente decisivas, é o mesmo método com o qual o Mistério tenta nos salvar do niilismo. De outro modo, cedo ou tarde, tudo se torna verdadeiramente desinteressante para a vida. E qual é a modalidade com a qual nos salva? Com aquela que padre Giussani sempre nos ensinou e que é revolucionária, tanto é verdade que tentamos nos defender dela: chama-se “preferência”. O conceito de preferência é uma das coisas mais belas que já ouvimos: como o Senhor, para atrair o nosso coração, que sempre tem a tentação da autonomia, que sempre tem o desejo de afirmar-se um pouco loucamente contra si mesmo, procura salvar-nos? Não somente com os mandamentos, não somente com uma lei externa, mas colocando diante de nós uma preferência; e uma preferência não pode ser algo abstrato, mas deve ser algo sensível, concreto, ao qual alguém sente-se realmente apegado. Antes de tomar consciência, a pessoa se apega, depois se dá conta do apego e, assim, o Senhor nos agarra dentro de uma experiência humana. Por isso, é necessária uma realidade física, concreta. Padre Giussani usa os termos “audível” e “fotografável” porque, se não fosse assim, nós, que somos feitos de carne e osso, de corpo e alma, nunca seríamos movidos, tomados com todo o nosso eu. Se é uma coisa abstrata, nós decidimos o que seguir e o que não, mas, se há uma preferência, é todo o meu eu que é arrastado, envolvido no desejo de participar. Assim, por meio da preferência, o Senhor nos aproxima, nos coloca juntos. E quando alguém está unido a algo de outro não pode ser niilista, porque esta é exatamente a vitória sobre o niilismo: alguém é atraído por algo que é interessante para a própria vida, que constantemente desperta o interesse pela própria vida e, exatamente no fato de despertar o interesse pela própria vida, demonstra a sua veracidade, a sua diversidade em relação a todo o resto que, cedo ou tarde, decai. Esta é a diferença: a única coisa importante é verificar se há algo que é interessante e permanece interessante no tempo e na eternidade porque, coisas que nos interessam em um certo momento existem muitas, mas coisas que permanecem interessantes no tempo, estas não, aliás, há somente uma. E qualquer um pode fazer a experiência disso. Porque, amigos, se não há algo que permanece interessante no tempo, na vida, pela eternidade, podemos “tranqüilamente” voltar para casa, porque não há nada a fazer e mesmo com toda a nossa vontade, com todo o nosso empenho ético, mesmo com todo o nosso moralismo, nunca alcançaremos algo que interesse para sempre e, por isso, cedo ou tarde, vencerá o moralismo. Por isso, o problema de hoje não é tornar-se mais moralistas, mas descobrir qual é a verdadeira natureza do cristianismo, o que Jesus fez, o que Ele introduziu como novidade da vida. Por isso, não bastaria que Jesus fizesse chegar a nós um elenco de mandamentos, de valores morais assim como, hoje, não basta o elenco de valores morais que reduz o cristianismo a uma ética, porque ela não é capaz de interessar toda a vida. E, de fato, reduzido a uma ética, o cristianismo não nos interessa mais. Olhem que na nossa sociedade o niilismo vence, não nas sociedades não-cristãs, mas exatamente nas cristãs, por causa dessa redução ética do cristianismo. Desde o início, os primeiros que O encontraram, João e André, e aqueles que permaneceram fiéis a esse método, somente esses venceram o niilismo, e só assim é possível vencê-lo. Ao contrário, quando o cristianismo é reduzido a uma ética, inexoravelmente acaba por não interessar mais. Vemos, hoje, como nem mesmo o desejo de viver certos valores consegue eliminar o niilismo: é mortal, mas é exatamente assim. E esse é um problema que não diz respeito só aos cristãos, mas a todos aqueles que se interessam pela própria humanidade. Por isso, o problema é antropológico, não ético. O problema é descobrir o que responde ao desejo de plenitude, de beleza e de justiça que temos dentro, descobrir o que pode permanecer interessante por toda a vida. Sem isso, cedo ou tarde, o niilismo vencerá. Nestes dias, alguns universitários de Milão contaram-me sobre o encontro que tiveram com uma jovem protestante que achava ser mais apegada ao Mistério do que eles, mas que, depois, lhes disse: “Estando com vocês percebo – disse isso a um grupo de jovens católicos, do Movimento! – agora, estando especificamente com vocês, percebo como o Mistério torna-se verdadeiramente familiar”. Aquela moça ouvira falar do Mistério, provavelmente dedicava-lhe algum tempo, dedicava algum aspecto da vida ao sagrado, mas não conseguia fazer com que Ele se tornasse familiar para ela. No entanto, é estando em uma realidade sensível e que abre continuamente ao Infinito que o Mistério torna-se familiar. Porque nós, hoje, quando encontramos cristãos com aquela diversidade única que nós encontramos em padre Giussani ou em João Paulo II, amigos, aquilo de que fazemos experiência chama-se Jesus. Porque nós, como já disse em outras ocasiões, sabemos que Jesus continua presente não somente porque a Sua causa permanece, não somente porque permanece a Sua palavra, a Sua ética; nós sabemos que Ele permanece porque nós fomos olhados com uma modalidade que entrou na história e que é possível somente em Jesus. Nós sabemos que Ele continua entre nós não porque fazemos um esforço de imaginação, não porque queremos nos convencer disso. Não devemos fazer nenhum esforço. Nós somos os primeiros a nos maravilhar pela maneira com a qual fomos olhados porque é uma forma, é um olhar que dá forma ao olhar, é o olhar de Jesus que deu e que dá forma ao olhar com o qual nós fomos olhados. Não somos desgraçados como, às vezes, muitos cristãos pensam, pelo fato de não termos tido a sorte, como João e André, de encontrar Jesus. Não, nós não somos desventurados: nós encontramos Jesus, como João e André, por meio de uma modalidade diferente, por meio de uma carne diferente, mas a experiência que fizemos por meio dessa carne diferente é a mesma que fizeram João e André. Senão, pensem bem, nenhum de nós estaria aqui nesta tarde. Foi exatamente Ele que nos fascinou e continua fascinando por meio dessa preferência única com a qual nos abraça.

Esposito: Esse olhar maravilhado do qual o senhor falava agora é tanto mais interessante, a meu ver, quanto mais se torna um juízo sobre tudo e nos faz entender mais o que aconteceu. Vem-me à mente aquela famosa frase de Eliot à qual padre Giussani sempre se referiu: como pôde acontecer essa redução da maravilha a uma série de regras, a um moralismo? E Eliot pergunta: “Foi a Igreja que abandonou a humanidade ou a humanidade que abandonou a Igreja?” (T. S. Eliot, Os Coros de “A Rocha”). Ainda sinto em mim a urgência dessas perguntas e não por um gosto de análise, mas porque quando algo é apaixonante, queremos sempre estar diante desse algo que desperta o nosso interesse exatamente por causa da paixão em aderir à verdade da vida. Segundo o senhor, o que aconteceu de fato?

Carrón: Padre Giussani, respondendo a essa pergunta de Eliot, na última entrevista que concedeu, nos disse: “As duas coisas”, a humanidade abandonou a Igreja tentando, pensando ilusoriamente poder encontrar em si mesma aquilo que só a Igreja trouxe ao mundo, e vemos aonde as coisas chegaram. Mas, ao mesmo tempo, foi a Igreja que abandonou a humanidade e isso é o que mais nos interessa porque nós somos a Igreja e fomos escolhidos, essa graça nos foi dada para que chegue a todos porque este é o método que Deus usou e usa continuamente: chamar alguns para chegar a todos por meio deles. Por isso, esta pergunta que está muito ligada àquilo que dissemos, me interessa muito. Por que a Igreja abandonou a humanidade? Por que nós, muitas vezes, abandonamos a humanidade dos que estão próximos a nós no trabalho ou dos companheiros de caminho na vida, por que os abandonamos? Fiquei intrigado com o que padre Giussani disse: “A Igreja teve vergonha de Cristo”, e tentei entender isso. A Igreja e nós temos vergonha de Cristo exatamente porque se alguém não faz a experiência que dissemos no início e da qual falamos até agora, se Ele não é uma experiência real, concreta, então, diante das urgências da vida, dos problemas da vida, a pessoa não consegue dizer a palavra “Cristo”. Quantas vezes, pelo fato de conviver com as pessoas, de ser padre ou porque no trabalho nos acham diferentes, as pessoas nos confiam suas preocupações e seus problemas – pensemos no Tsunami, que vivemos junto com tantos outros companheiros –. Mas quantos, diante desses grandes problemas da vida, conseguem dizer a palavra “Cristo”? Ela parece abstrata e inadequada ao drama que as pessoas vivem, parece uma coisa pequena diante do drama e, por isso, não a dizemos. Não que tenhamos de dizer “Cristo” com as palavras: “Sim, eu sou cristão”. O problema é que, diante de certas circunstâncias da vida, se a pessoa não experimentou que Cristo vence no real, que Ele é capaz de mudar as circunstâncias, não tem a coragem de dizer o seu nome: envergonha-se. E, pouco a pouco, as pessoas, assim como cada um de nós, se acham que Cristo não ajuda, se não O experimentam nos problemas da vida, antes ou depois começam a se distanciar dEle; se não ajuda a viver, então começamos a viver sem Ele. A Igreja (nós) começa a abandonar a humanidade e, no fim, a humanidade a abandona. Porque, se não me ajuda, se não é companhia para mim, se não é verdadeiramente útil para viver o drama da vida, se não é algo que introduz uma novidade, o homem diz: “Por que devo acreditar? Por que devo continuar a me apegar? Nem penso nisso, não penso a respeito”. Cedo ou tarde a pessoa afasta-se, o distanciamento de Jesus começa a vencer, mas não porque quer se afastar: acontece. Acontece que a distância começa a vencer, quer dizer, começa um processo que desemboca no niilismo. Afastando-se, não é possível ver a vitória de Cristo no tempo e no espaço.
E, na realidade, a sua vitória está exatamente naquilo que nos apaixonou, na circunstância que vivemos. Por isso, rebelo-me sempre que alguém quer me arrancar o drama da vida, porque o drama da vida, como o do cego Bartimeu, é o que me faz gritar mais a Cristo, me faz andar mais em direção a Ele e, por isso, faz-me ver, como o cego, a Sua vitória no tempo. Sem que a pessoa refaça continuamente essa experiência, sem que ela, cada vez que isso acontece, confie em Cristo de modo a ver a Sua vitória no tempo, a sua derrota se inicia e começa a abandoná-Lo, porque não lhe responde. Nos últimos dias estive em Varigotti, onde padre Giussani passou um tempo no final dos anos quarenta, e li uma carta que ele escreveu a um amigo: dizia que as coisas que o Senhor nos dá, as dolorosas – repetia – as mais dolorosas, as mais intensamente dolorosas, são as que nos dão ocasião para nos aproximar de Jesus e ver a Sua vitória. Olhem como o Evangelho é cheio de pessoas que iam procurar Jesus dentro do próprio drama. E dentro do drama revelava-se continuamente quem Ele era. Se não queremos abandonar Jesus, não devemos deixar que a distância vença e, portanto, o niilismo. Ou tudo aquilo que acontece é, para nós, ocasião para um relacionamento mais verdadeiro com Jesus, para ver a Sua vitória ou, mais cedo ou mais tarde, O abandonamos, a Igreja começa a abandonar Jesus, a ter vergonha dEle. A Igreja abandona a humanidade e, depois, a humanidade abandona a Igreja porque uma Igreja que não responde ao drama do homem é inútil.

Esposito: Última pergunta. A nós, interessaria muito saber o que quer dizer, para o senhor, para a sua experiência pessoal, pertencer a este povo novo que milagrosamente se forma, pertencer à nossa unidade.
A questão se coloca para cada um de nós, para os que estão aqui e para todos os nossos amigos que estão coligados diretamente nas outras três salas (somos mais de 1.500). Para todos, tanto para o último chegado como para o doutor Michele Emiliano, prefeito de Bari, que está aqui conosco e a quem agradecemos, para o professor Giovanni Girone, reitor da nossa Universidade e para o professor Renato Cervini, presidente da Faculdade de Engenharia Politécnica. A que responsabilidade – não abstratamente, mas segundo essas referências à verdade que o senhor nos testemunhou –, a que responsabilidade nos chama o encontro com o cristianismo (penso, sobretudo, no desafio que presenças como padre Giussani, João Paulo II e Bento XVI nos colocam continuamente)? Qual é a nossa responsabilidade pessoal no pertencer a este povo?


Carrón: O papa Bento XVI, quando ainda era o cardeal Ratzinger, encontrou uma modalidade genial para responder a essa pergunta quando celebrou o funeral de João Paulo II. Impres-sionou-me muitíssimo como encontrou, em uma palavra, a modalidade simples para sintetizar a vida desse grande personagem: “Segue-me”. Respondendo continuamente a esse pedido de Jesus, em cada momento de sua vida, João Paulo II foi para nós aquilo que nós pudemos ver. Qual foi a sua responsabilidade? Não foi fazer grandes coisas, porque a nossa responsabilidade joga-se nesse diálogo misterioso entre cada um de nós e Cristo. Toda a homilia do então cardeal Ratzinger descreveu a vida de João Paulo II, um gigante da fé no nosso tempo, como resposta à iniciativa de Jesus que, em cada momento da vida, chamava-o: “Segue-me, segue-me”. Desde o início, quando ninguém ainda o conhecia, tudo começou quase ocultamente por meio desse diálogo misterioso; e toda a vida foi esse diálogo misterioso entre Cristo e João Paulo II. A nossa responsabilidade, amigos, é muito simples: responder, responder a Jesus. Quando me perguntam sobre a minha responsabilidade atual, confiada por padre Giussani, digo: “Nada mudou. Eu devo responder agora a Jesus como lhe respondia antes, como procurava responder-lhe antes. Em cada momento, a modalidade com a qual Ele o chama pede a sua liberdade. Agora que estamos aqui em mais de mil não é diferente de quando estava em Madri, quase anonimamente; é a mesma coisa, a mesma coisa, amigos! Hoje, posso dizer não, como podia dizê-lo em Madri, e posso dizer sim, como podia dizê-lo lá. A nossa responsabilidade é muito simples: é dizer sim à modalidade com a qual Cristo nos chama. E isso parece quase nada, mas é tudo, porque neste “sim” está tudo, porque vimos o que aconteceu com padre Giussani e com João Paulo II: alguém que diz sim torna-se testemunha, diante de todos, da beleza que Cristo é. E é capaz de despertar o humano, de nos fazer viver a vida com uma intensidade, com uma vibração humana que, antes, nós não podíamos nem mesmo pensar. Por isso, a nossa responsabilidade nesse pertencer é simples: nós vimos diante dos nossos olhos, sentimos essa preferência que se colocou diante de nós e a nossa liberdade é chamada a responder. Toda a nossa responsabilidade está exatamente na resposta que nós damos à modalidade com a qual Ele despertou essa preferência diante dos nossos olhos. E, por isso, é fácil como o é uma preferência. Tão fácil que, às vezes, não nos damos conta: parece que não se faz nada, mas, ao contrário, se faz, porque muitos podem ser tocados e dizer não e, no entanto, aceitar esta preferência é a coisa mais simples e, ao mesmo tempo, mais fecunda para nós e para todos. Obrigado.
Giovanni Girone: Parece que este aplauso testemunha o afeto que temos por padre Julián. Continua um diálogo, de uma maneira mais plena. A maioria das nossas universidades está ligada a este Movimento e eu acho que represento o pensamento desta maioria agradecendo a padre Julián pela colocação belíssima que nos ofereceu, pela orientação que continuará nos dando e pela presença de CL nas nossas universidades. Acredito que o prefeito gostaria de acrescentar alguma coisa porque CL é uma presença não só nas Universidades, mas também na nossa cidade. Então, como um pequeno sinal de atenção, gostaria de dar a padre Julián o selo da Universidade de Bari.

Esposito: Realmente, isso estava fora do programa. Agradeço muito ao Magnífico Reitor Professor Giovanni Girone, como também agradeço pela presença do Professor Cervini, presidente da Faculdade de Engenharia, que é o dono da casa: obrigado pela hospitalidade. Se a cidade de Bari quiser dizer algo...

Michele Emiliano: Eu coloco imediatamente em prática o chamado de atenção importante que fez padre
Julián: respondo imediatamente sim, no sentido de que estou realmente feliz por estar aqui. Estou presente como Michele Emiliano, devo ser sincero, e fiz questão de estar presente nesta condição: às vezes até esqueço de ser prefeito de uma cidade que vive um momento belíssimo.
E permita-me, padre Julián, não dizer muitas palavras, mas dizer apenas que a partir de hoje, depois de ter escutado o que se disse aqui, este momento é ainda mais belo. Porque este “segue-me”, este dizer “sim”, acredito que seja uma receita útil para todos, em especial para aqueles que, neste momento, têm problemas particularmente grandes e que, então, no dizer “sim” também pedem ajuda para responder às tantas coisas que nós, de algum modo, devemos fazer prosseguir. E, parece-me que a primeira canção que ouvimos hoje (La Strada) tem a ver com a idéia do caminhar, do ir em frente. Também acredito que a idéia desse caminho corresponda a admitir para si mesmo – e não é fácil – o dever de dizer aquele sim porque, de outro modo, não é possível se mexer.

Esposito: Como sempre, quando as coisas não são programadas entende-se mais se são verdadeiras, como neste caso. Permitam-me concluir o encontro desta tarde agradecendo a Julián, mesmo que o vosso aplauso tenha sido mais explícito e eloqüente. No entanto, realmente obrigado, realmente obrigado não somente pelo encontro desta tarde, mas também pela companhia que nos faz ao longo do caminho porque, para um homem, ter um ponto de referência na vida, mais ou menos distante, mais ou menos próximo, é uma possibilidade de respirar. Lembro a todos que o apelo desta tarde é um método, não é somente um chamado de atenção esporádico. Este método, na nossa experiência, se chama Escola de Comunidade.
E portanto o convite é, tanto para aqueles que seguem esse método há 40 anos, quanto para aqueles que porventura estejam aqui por acaso, pela primeira vez:
tenham presente a utilidade desse método de comparação da vida com a proposta.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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