Vai para os conteúdos

Passos N.63, Julho 2005

DESTAQUE / A FLOR DA ESPERANÇA

Os cinco presidiários e “o professor”

por Riccardo Piol

Cinco estudantes de contabilidade e seu professor de História. Que, depois de cada aula, conversa com eles e lhes fala dos seus muitos amigos. Inclusive de André, um jovem que está doente, com leucemia. Tudo isso acontece dentro do presídio de Brucoli

Aos agente penitenciários diz que “viemos para nos encontrar com os cinco da contabilidade”, e eles logo entendem. Porque sabem que se trata dos alunos do professor de História, que estão para fazer o exame supletivo de segundo grau: o exame escrito é no dia 6 de julho; o oral, dia 14. Eles são os “seus rapazes”, a classe do professor Giovanni Burgio. Já ultrapassaram um pouco a idade. Mas não ligo, porque hoje, para o bem ou para o mal, todos estão um pouco fora das normas.

“Professor!” “Como está?” “Está como torre firme, que não cai/ alta demais para que os ventos a derrubem” Quantas pessoas vocês conhecem que citam Dante para responder à pergunta de como estão? Eu, umas duas, mas que não têm de enfrentar os ventos que sopram num ambiente como este: casa de reclusão de Brucoli, província de Siracusa, Sicília. O diretor diz que hospeda cerca de seiscentos prisioneiros. As celas são para duas ou três pessoas: uma repartição para o beliche, e um pequeno banheiro. Só saem para o almoço, o jantar e para a hora de sol. Ou para ir à aula do professor Burgio; hoje, saíram para se encontrarem comigo.
E é um dia especial, tanto que Giuseppe aparece com três chocolates: são para nós, “porque hoje é dia de festa!”. Eles nos aguardavam. Mas não podiam imaginar como aquela carta a André suscitou tamanho interesse. Estão admirados. Porque “não fizemos de jeito nenhum uma obra-prima – diz Giuseppe – , não é a Divina Comédia, ou O infinito, de Leopardi”. E Antonio, que Burgio chama de “o responsável cultural”, diz que “não sabíamos o que dizer, mas depois, em dez minutos, no silêncio, o coração começou a falar. O professor nos contou a história de André, que estava fazendo quimioterapia, a qual destruía o seu corpo e o assumimos como um de nós, como um nosso irmão”. Porque “chi patisch, capisc (quem sofre, compreende)”, porque “o seu sofrimento era mais dramático do que o nosso”, porque “era bacana dar a ele um pouco do que tivemos a sorte de receber”.

A prisão e a sorte
Sorte? Numa prisão? A sorte que tiveram estava ali, sentado ao lado: “o professor”. E “não foi por acaso que o encontramos – diz Antonio –; foi o Senhor”. Me conta que logo depois de ser preso, havia escrito muitas cartas aos seus colegas enfermeiros. Dezesseis anos juntos: contava com o apoio deles, mas os poucos que respondiam “me mandavam cartas frias e, no final, me deram a entender que não lhes escrevesse mais”. Quando o levaram para o Ucciardone, lera uma frase gravada na parede da cela de isolamento: “A pior cadeia é a vida, porque para sair dela é preciso se matar”. “Nunca me esquecerei dela. Mas nós, hoje, somos mais livres do que muita gente que vive lá fora”.
Porque Antonio e os seus amigos nunca deixaram de esperar. E esse homem, um dia, se apresentou para dar a aula de História. Terminada a aula, porém, não foi embora. Ficou conversando com eles, e assim passou a fazer todas as vezes, após a aula. Fala a eles dos seus amigos, de um certo padre Giussani, da carta de Joshua, preso em uma penitenciária na Carolina do Norte (EUA), e também de André. “O professor – diz Antonio, que é também poeta – é um oásis no deserto”. E Massimo reforça que o professor “veio inclusive quando estava com a perna engessada!”: entende-se, então, por que quando há aula “a gente nem vai pro passeio” – que é como Pippo chama a hora de sol – “porque esperamos o professor”.

Médicos e doentes
Eles falam de uma maneira muito simples, encantadora. “Os médicos – diz Salvatore – o que fazem para se tornarem médicos? Vão ao encontro dos doentes. Nós vivemos em meio ao sofrimento, e entendemos aqueles que sofrem”. A carta a André foi, no fundo, um diálogo entre pessoas que sabem o que significa sofrer. Mas também entre quem aprendeu a agradecer pelas coisas mais banais, aprendeu a viver o momento presente movido por uma esperança que não morre.
Giuseppe fala do dia em que acabou de novo na prisão, em Palmi. “Eu me deitei na cama e vi que, no estrado da cama de cima havia um livrinho escrito pela irmã Faustina, sobre a Divina Misericórdia. Era como se o Senhor me convidasse a lê-lo”. A novena previa orações na primeira sexta-feira de cada mês, mas ele tinha pouco tempo e muito a pedir. “Pedia que libertassem meu irmão e outros amigos presos que não tinham nada a pagar”. Começa a novena e um a um os seus amigos são libertados, até que um dia “eu estava na cela com o meu irmão. Aí entra um guarda e pergunta: ‘Quem de vocês tem o sobrenome C...?’ ‘Nós dois’, respondemos. ‘Michele C. Você está livre’. Era sexta-feira...”.

Com a família nos olhos
Depois dos exames, Giuseppe será transferido para Catanzaro, mais perto de casa. Ficará mais próximo da esposa e dos três filhos, inclusive daquele que, neste verão, trabalhará para pagar os seus livros escolares: “Ele faz o ginásio. Que lição de vida ele me deu!”. Quando falam da família, e o fazem com freqüência, parece que a têm diante dos olhos.
Dá para intuir por que se identificam com Salvo e Carmela, os pais de André. Que no enterro do próprio filho consolavam os amigos e parentes. Eles falam dos meses em Pavia, do sofrimento de André e às vezes deixam escapar uma palavra incrível: gratidão. Gratidão ao Senhor, ao filho, aos amigos, ao padre Giorgio. E aos autores daquela carta: “Oi, André; quem te escreve são cinco presos...”. Eles escrevem claro e redondo, e não escondem o sofrimento nem a esperança, que a gente poderia esperar encontrar em qualquer lugar, menos numa prisão. No entanto, “aqui tem gente que está condenado à prisão perpétua – diz Antonio – mas vive como se fosse sair amanhã. Aqui a esperança é, de fato, a última que morre”. E se o preso tem a sorte de encontrar alguém como “o professor”, certamente não precisará recorrer aos antidepressivos. Porque “há uma coisa – diz Giuseppe – que o professor me contou do padre Giussani... Quando ele diz que se o homem aceita a sua condição, pode viver feliz, ele tem toda razão”.

Esperar ver a Deus
“Para nós, a expectativa de voltar a ver a família é como esperar para ver a Deus”. Pode parecer um exagero, mas dá para ver que Giuseppe não exagera. Quando pergunto a Pippo se tem família, ele me responde tímido mas orgulhoso: “Já sou avô”. Há oito meses nasceu Maria Grazia; “nasceu prematura e correu o risco de morrer. Mas agora está bem”. Enquanto nos cumprimentamos, Massimo me diz que a sua namorada se chama Maura: ele foi preso quanto tinha 19 anos e agora tem 31 – “mas ela é mais do que uma namorada. Escreva isso no seu artigo”, pede. Em Belpasso, sob o Etna, Salvatore tem a esposa, os três filhos e os três sobrinhos que o esperam. Como os pais, a esposa e as filhas esperam Antonio, em Palermo, em sua casa na rua que leva ao porto. Meninos – como os chama o professor –, não sei quanto tempo falta para vocês retornarem às suas casas. Não perguntei isso, mas espero que seja em breve. Porque aqui fora há o mar, espirradeiras que parecem árvores, e o Sol forte. Eles já existiam antes de eu me encontrar com vocês. Mas eu não havia percebido como são belos, como vocês me disseram.

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

A CARTA

Brucoli, 20 de maio de 2005

Oi, André, quem lhe escreve são cinco internos da penitenciária de Augusta. Estamos cursando o quinto ano de contabilidade. O caríssimo amigo e irmão “professor Giovanni Burgio” nos falou muito de você, nos contou dos seus problemas e daquilo que vocês está passando. Nós o abraçamos “virtualmente” e o consideramos um nosso irmão. Os presos são uma categoria de pessoas que não são muito bem aceitas pela sociedade, mas são amadas pelo Senhor, porque necessitadas da misericórdia dEle. Está escrito no Evangelho: não vim para os sãos, mas para os que estão doentes. A natureza humana, infelizmente, rebela-se frente ao sofrimento, que para nós parece absurdo. Como é difícil o domínio de nós mesmos! Em compensação, supera estes duros momentos a esperança e a força de uma grande fé, que nos coloca em condição de aceitar com alegria interior qualquer provação, ainda que dolorosa e, às vezes, incompreensível. Numa alternância entre esperança e desalento transcorremos as horas e os dias rezando, agarrando-nos ao cordão de “São Pio de Pietrelcina”, exemplo de uma vida de sofrimentos indescritíveis: ele, homem de Deus, nos ensinou que sem as coisas do céu não é possível viver nesta Terra. Os sofrimentos nos levam às profundezas de dores inauditas. Por isso, no final nos descobrimos heróis ao extremo. No sofrimento se desenvolve a solidariedade humana, não se pode compreender a dor dos outros se não a experimentamos pessoalmente. Num mundo escuro e confuso, só Deus pode reinar no coração humano, sedento de verdade. É bela a vitória final, mas o melhor é a luta. Certos da tua breve cura, te enviamos um caloroso e fraterno abraço. Você está em nossos corações. Força, André, lute junto conosco. Um grande beijo.
Teus amigos e irmãos,

Antonio, Massimo, Giuseppe, Giuseppe, Salvatore

Obs.: Nós somos anjos de uma asa só; podemos voar somente se estivermos abraçados.

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Os colegas de escola

Oi, André, é difícil falar, num momento como este, em que tudo parece banal, um momento em que cada um de nós prefere fechar-se em si mesmo e sofrer sozinho, no silêncio de um quarto. As palavras fogem quando, numa tela invisível, passam imagens desses anos passados juntos. E, então, voltamos a nos ver rindo e brincando; tentando copiar uma lição de latim; repassando a toda hora a História, para o exame oral, ou sendo repreendidos pelo professor, porque não paramos de conversar... E ainda imagens sobre imagens de uma classe como todas as demais ou, talvez, mais especial, porque é a nossa. E agora estamos todos aqui, com muitas perguntas sem resposta e uma só certeza: agora você está sereno, finalmente alcançou aquela tranqüilidade que nós, tão egoisticamente, almejamos que chegue o mais tarde possível. Talvez por causa daquela impotência que nos atormentava, não podíamos fazer nada de mais concreto do que rezar, e assim o fizemos, talvez estimulados também por aquele ensinamento que você nos deixou, através do seu estilo de vida. ‘O belo de algumas experiências negativas é que, às vezes, em algumas delas a gente pode encontrar um aspecto positivo...’. Palavras suas, duras de escutar e ainda mais de interiorizar. O que mais dizer, André? Talvez nada mais, a não ser recordar o amor com que você se entregou totalmente a Cristo, sobretudo neste último ano. Agradecemos a Jesus todo dia por esse anjo especial que nos doou e que agora poderá nos proteger, enquanto curte aquela felicidade que, talvez, um dia nós também poderemos experimentar. Nós o amamos.

Os teus companheiros

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página