O risco de olhar o passado com um olhar moderno, desconsiderando o ambiente histórico em que os fatos aconteceram
Dos últimos anos, esse filme é o mais dramático e significativo dessa nossa época moderna, o pior dentre todos, pois propõe uma mentira: a cristandade do século XII sendo retratada pela modernidade do século XXI. O desastre da modernidade que hoje vivemos é a perda de Cristo. No Breve conto sobre o Anticristo, o escritor russo Vladimir Soloviev retrata o Anticristo questionando a diversas confissões religiosas: “O que vocês querem?”, e a resposta do abade é: “O que nos importa é o próprio Cristo e tudo o que dele vem”. No século XIX, aquilo que o abade de Soloviev não podia conceber era uma sociedade, um tempo histórico, uma Igreja sem o Filho de Deus encarnado, sem o próprio Cristo. Não bastasse a modernidade viver seu vazio, já tantas vezes retratada no cinema, como em Dog Ville, Kill Bill e no recente Oldboy, agora é preciso levar esse laicismo ao passado, e justo a uma sociedade que carregava em si o gosto pelo Mistério, a consciência do pertencer a Algo maior.
É por isso que Cruzada, um filme bonito de se assistir, não é indicativo do tempo cultural das cruzadas. Esses empreendimentos bélicos constituídos no ocidente cristão para a reconquista da Palestina têm suas origens nas peregrinações à Terra Santa, praticadas desde os tempos mais antigos pelo desejo dos cristãos de seguirem mais “concretamente” os passos de Jesus, e, assim, agradecerem por graças alcançadas ou obterem o perdão dos pecados. Tal possibilidade foi negada quando os Turcos Seldjúcidas, recém-convertidos ao islamismo, em 1071 venceram a armada bizantina na Batalha de Manzikert, e impediram as peregrinações dos cristãos aos lugares históricos da vida de Cristo, motivando os cristãos a empreenderem essas guerras de cunho político, moral e cultural. Tendo à frente seus cavaleiros, as cruzadas nada mais eram do que peregrinações armadas.
A busca verdadeira
O que falta no enredo do filme Cruzada? Apenas o essencial, aquele motivo pelo qual os cristãos saíram da Europa e buscaram, repetidas vezes, retomar Jerusalém do domínio muçulmano: o próprio Cristo. Certamente, outros fatores motivaram as cruzadas, por exemplo, os de ordem econômica e política, nenhum historiador os nega. A questão é que hoje diversos âmbitos culturais, e entre eles o cinema, querem negar o fator preponderante da civilização ocidental: o cristianismo. O mundo de hoje quer afirmar que a busca das rotas comerciais para o oriente, a busca de lucro para a já estruturada nobreza feudal, a disputa das vaidades dos cavaleiros constituíram-se nos motivos das cruzadas. Esse é o tempo das cruzadas? Esses fatos políticos-econômicos compõem o homem europeu que segue para a Terra Santa? Não, essa é a leitura da modernidade atéia, hegeliana, que não entende que o homem pode dar um passo, um milhão de passos para afirmar o seu destino – Cristo – , que pode peregrinar para a Terra Santa pelo significado do seu ethos, e da sua identidade cultural constituída nos últimos doze séculos da história da Europa Ocidental.
Nas aulas de história
É provável que nos próximos anos o filme Cruzada seja usado por nossos professores de História para ilustrar suas aulas sobre a Idade Média, o que, mesmo sendo um grande equívoco, está em consonância com uma parte, a dominante, da historiografia brasileira de orientação neopositivista ou pseudo-marxista, que não está aberta ao diferente na história, pois, filhos do racionalismo do século XVIII, perpetuam a mentira criada pelo iluminismo do que é medieval – segundo eles, um período de estagnação histórica, como se fosse possível em dez séculos não existir o movimento histórico com suas oscilações de idas e vindas. Além de uma visão ideológica, a falta do conhecimento dos fatos e do contexto histórico da Idade Média perpassa o imaginário brasileiro sobre o homem medieval, pois a maior parte dos europeus se julgavam continuadores da civilização antiga, no que ela tinha de melhor, a busca pelo bom, belo e verdadeiro.
Um jovem que faça seu ensino fundamental e médio nas escolas brasileiras desconhece que São Bernardo, após o fracasso da Segunda Cruzada, chamou a atenção para a conduta pecaminosa de tantos cruzados, e que as três primeiras cruzadas, foram doze ao todo, já tornaram possível uma avaliação crítica da natureza e da importância de todo o movimento. Mesmo se o escopo principal delas, o re-estabelecimento duradouro do domínio cristão na Terra Santa, não fora alcançado, as cruzadas não foram um mero desencanto fantástico, e um desperdício insensato de bens e de vidas humanas, como quis sustentar certa historiografia racionalista dos séculos XVIII e XIX, que faz seus ecos até os nossos dias. É certo que, no curso das cruzadas, o puro entusiasmo religioso cedeu lugar aos interesses de caráter material e político. Mas, no conjunto, elas permaneceram uma esplêndida manifestação do espírito religioso e da unidade eclesiástica e cultural do Ocidente. Com honestidade, os historiadores admitem que nenhuma civilização nutria paixão tão intensa pela globalidade e pela totalidade quanto aquela que organizou as cruzadas.
Porém nada é mais tão insistentemente apagado nos livros de história que a concepção de pessoa do homem medieval. O homem é Filho de Deus e isso dá um caráter transcendente a sua natureza, à natureza de todos os homens. O homem medieval reconhecia sua unidade e dependência de Deus, por isso o seu ideal era o da santidade. Dessa concepção nasce o respeito incondicional pela pessoa e a dignidade do seu trabalho.
Um filme que retrata esse mundo medieval é Henrique V, inspirado no livro homônimo de W. Shakespeare, onde, durante a guerra dos Cem Anos, esse rei inglês venceu os franceses comandando um exército numericamente inferior, e, no término da batalha, cantam Non nobis, Domine, non nobis sed nomini tuo da gloriam (Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao Teu nome seja dada a glória). Entretanto esse filme não é passado nas nossas escolas.
* Ana Claudia Souza é mestra em História da Ciência e doutoranda de História da PUC/SP.
Referências:
- Bihlmeyer, K.; Tuechle, H. História da Igreja. São Paulo, Vol. 2 – Idade Média, Ed. Paulinas, 1964.
- Le Golf, J. A Civilização do Ocidente Medieval. São Paulo, Edusc, 2005.
- Rops-Daniel, H. A Igreja das Catedrais e das Cruzadas. São Paulo, Quadrante, 1993.
- Soloviev, V. Breve conto sobre o Anticristo. São Paulo, Antroposófica, 2003.
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