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Passos N.61, Maio 2005

DESTAQUE / DONOS DA VIDA?

Uma resposta de civilização

por Primo Soldi

Tendo como exemplo o caso Terri Schiavo notamos um crescente clima cultural que entrega à "lei" a última palavra sobre a vida e sobre a morte, negando a inexoráveldependência da cada pessoa em relação a Deus que a criou e, portanto, também o seu infinito. Assim, excluindo qualquer gesto de gratuidade, a pretensão do homem de ser a medida de todas as coisas abre espaço para uma nova época de barbárie.
Propomos alguns testemunhos de pessoas que extraem da fé um apaixonado amor pelo destino do outro.


Visita à Pequena Casa da Divina Providência, fundada no século XIX por São José Benedito Cottolengo com o objetivo de acolher pessoas com doenças mentais ou ineptas. Uma cidadezinha da caridade, que tem uma única razão de ser: Cristo. Um exemplo do verdadeiro progresso na noite da barbárie

Passar um dia com o padre Carmine Arice é como ser tomado pelas mãos e conduzido para dentro dessa colossal obra de caridade que é o Cottolengo de Turim. “Percorrer com vocês estes novecentos metros quadrados (tal é, hoje, a dimensão da Pequena Casa da Divina Providência, em Turim) é também uma forma de agradecer ao padre Giussani...”. Os carismas criam afinidades na história, recordava João Paulo II.

Passando pelos pátios e entrando nos diversos pavilhões que formam essa “cidade da Caridade”, encontramos rostos cheios de júbilo, seja daqueles que hoje são chamados de “especiais” – antes chamados de “excepcionais” – seja os das freiras que os assistem com um amor ilimitado, isto é, apoiado numa única razão: Cristo. “Antes, eram lavados à mão milhares de lençóis – conta padre Carmine –; aliás, Cottolengo fundou uma família religiosa só para esses serviços: as Irmãs de Santa Marta. Um dia, um visitante, vendo uma freira esfregar os panos, disse: ‘Irmã, eu não faria isso nem por todo o ouro do mundo’. ‘Nem eu’ – respondeu sorridente a freira – ‘na verdade, só o faço por amor a Deus’”.



As “boas filhas”

O Cottolengo tem mais de duas mil freiras, que todo dia tiram da Laus perennis (adoração perpétua do Santíssimo Sacramento, iniciada e estabelecida pelo próprio Cottolengo) a força conatural à sua vocação: servir e amar a Cristo nessas criaturas, que de outro modo poderiam ter o mesmo fim de Terri Schiavo.

“Desde os tempos do Terceiro Reich, nenhum deficiente inocente foi levado à morte”, escreveu o jornal italiano Il Foglio, de Giuliano Ferrara. Isso, infelizmente, acontece no nosso mundo pagão e progressista. No Cottolengo de Turim, ao invés, existe a Família dos Santos Inocentes, onde são acolhidas mulheres frágeis e doentes mentais que são chamadas – como queria Cottolengo – de “boas filhas”. Essa resposta de civilização, de verdadeiro progresso, em meio à noite de barbárie em que hoje voltamos a cair, esse milagre de humanidade tem uma única explicação e uma única forma de vida: a santidade de um padre que cria a Pequena Casa, cuja única lei de vida é a Caridade.

Esse homem é São José Benedito Cottolengo (1786-1842). Escrevendo ao rei, em março de 1837, falava de si e da sua obra nestes termos: “... na Pequena Casa eu me imaginei sempre um puro nada; nada se faz nela por mim, Soli Deo honor et gloria e à Caridade dos benfeitores...”. Na entrada da Pequena Casa domina a inscrição “Charitas Christi urget nos” (A caridade de Cristo nos impulsiona) (2 Cor 5,14); essa palavra de São Paulo impressionou de tal modo Cottolengo que ele acabou escolhendo-a como lema da sua obra. Hoje há uma centena de Pequenas Casas espalhadas pelo mundo, da Itália aos Estados Unidos, do Quênia à Índia, da Tanzânia ao Equador. Tudo isso nasceu do coração de um padre humilde, simples, risonho, que procurava sempre compreender a vontade de Deus sobre ele, deixando-se guiar pela Divina Providência.



Encontro envolvente

Ele nasceu em Bra (Cúneo) em 1786, três anos antes da eclosão da Revolução Francesa; contemporâneo do Santo Cura d‘Ars, foi o primeiro de um grupo que, no século XIX, fez de Turim a capital dos santos. Cônego da Igreja do Corpus Domini, Cottolengo estava passando por uma crise espiritual... “Ele, que normalmente era sorridente – lembra padre Carmine –, torna-se estranhamente taciturno, a ponto de um colega tê-lo presenteado com o livro da vida de São Vicente de Paulo, dizendo-lhe: ‘Leia, assim pelo menos teremos um assunto para conversar à mesa’”.

Mas o Senhor o estava preparando para o encontro que revolucionou a sua vida. No dia 2 de setembro de 1827, Cottolengo foi chamado para levar os últimos Sacramentos a Giovanna Gonnet, uma senhora que, em viagem de Milão a Lion, prestes a dar à luz, parou num casebre, em Turim, a poucos metros da Igreja do Corpus Domini. Mãe de cinco crianças, ela tinha sido recusada por dois hospitais da cidade e agonizava naquele miserável abrigo. Ao nascer, lhe retiraram dos braços a criança ainda viva, e ela acabou morrendo entre dores atrozes. O cônego Cottolengo ficou tão chocado com aquela morte, que correu para rezar diante do quadro de Nossa Senhora das Graças; com o coração em disparada, ordenou ao sacristão que tocasse os sinos. O povo começou a chegar; o cônego recitava as ladainhas lauretanas, e, no final, exclamou: “É a graça... É a graça... Louvada seja Nossa Senhora!”, e manifestou aos presentes a idéia de fundar a Pequena Casa da Divina Providência, sob a proteção de São Vicente de Paulo. Nascia assim a obra. Logo um grupo de mulheres, a começar pela sua mãe, Marianna Nasi, se uniu a ele para cuidar dos pobres enfermos que não encontravam acolhida nos hospitais de Turim. Eram simples leigas voluntárias, o primeiro núcleo do que seria, depois, a imensa família das Irmãs de Cottolengo. Em seguida, fundou os Irmãos, leigos religiosos; depois, a Congregação dos padres da Santíssima Trindade. Cottolengo sentiu que fora ajudado nos estudos por São Tomás de Aquino e a ele quis dedicar um seminário, para a formação de sacerdotes para as dioceses, para as missões e para a própria Pequena Casa.



Religiosos e voluntários

Fundamental no carisma de Cottolengo é a idéia de chamar a sua obra de “Família”, “Casa”, com a determinação da convivência sob o mesmo teto. Já estão no caminho da canonização o venerável dom Francesco Paleari e o irmão Luigi Bordino, que participou da guerra na Rússia e arriscou a vida nos lager do Cazaquistão. Ele dedicou toda a sua vida aos doentes, em sinal de gratidão Àquele que havia salvo a sua. Poucos sabem que no interior da Pequena Casa de Turim há um mosteiro de freiras que se dedicam à vida contemplativa; há outros em Cavoretto, em Pralormo e em Biella, no Piemonte; um em Manziana, na província de Roma, e um em Toro, na África, com um número crescente de vocações. Das três mil pessoas que vivem diariamente na Pequena Casa de Turim, muitos são religiosos, religiosas, irmãos leigos e voluntários que tomam conta dos doentes, sobretudo daqueles que não têm possibilidade de serem acolhidos em outros hospitais: os “retardados”, os “deficientes mentais”, que Cottolengo chamava de “bons filhos” e “boas filhas”. Levantando-os do seu estado de depressão, dava-lhes – e dão ainda hoje os religiosos, as religiosas e os voluntários do Cottolengo – demonstrações particulares de atenção e de afeição. Ao abrir essa nova Família, o santo tinha a certeza de aplicar as palavras de Cristo: “O que fizerem a um só destes meus filhos mais humildes, a mim o estarão fazendo” (Mt 25,40). Ele considerava os casos mais tristes como “notas promissórias a serem descontadas no banco da Divina Providência”.

Padre Carmine conta-nos um caso curioso do seu fundador: ele nunca demonstrava interesse em saber quanto dinheiro havia em caixa, nem quantos eram os internos na Pequena Casa.



“Servente” da Divina Providência

Cottolengo se considerava um “servente” da Divina Providência. Era atento a tudo e a todos, simples, alegre, afável, realista, provado de todo jeito pelo ambiente político, social e até eclesiástico. João Paulo II visitou o Cottolengo dia 13 de abril de 1980, e no dia 2 de setembro de 2002, a 175 anos do fato que revolucionou a vida do santo, escreveu uma carta em que recordava que, se diminuísse a dimensão sobrenatural do Cottolengo, este perderia a razão de existir, uma obra de pura e simples filantropia não poderia sobreviver. “Só o cristianismo – afirma padre Carmine – reconhece que a pessoa humana tem uma dignidade, do momento da concepção até à morte natural. Nós gostamos de repetir a todos aquilo que dizia Madre Teresa de Calcutá: deixem que as crianças nasçam, depois nós cuidaremos delas... Todo dia reunia os mendigos e, antes de lhes dar o pão e a sopa, anunciava-lhes o Evangelho... Ainda hoje nós fornecemos gratuitamente 500 refeições por dia aos mendigos”.

O tempo se esgotou, o giro pelas casas e pátios terminou e outros compromissos aguardam o padre Carmine. Ele é um homem feliz, feliz por ser integralmente do seu pai fundador, por ser todo de Cristo e amigo de todos esses filhos e filhas, que se tornaram bons pelo afeto de pais e mães que os amam por uma única razão: porque eles foram amados primeiro por Cristo. Cottolengo os amou tanto que hoje, no mundo, o seu nome é identificado com o limite humano, físico ou mental. Mas o Cottolengo não é uma instituição: é ele, esse simples padre tomado pela Caridade de Cristo.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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