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Passos N.61, Maio 2005

MEMÓRIA / SEIS ANOS DA MORTE DE ENZO PICCININI

O cristianismo é um gosto novo de vida

por Enzo Piccinini

O assombro diante de uma imensa graça: Deus que se faz homem e torna novas todas as coisas

Enzo Piccinini era médico cirurgião, responsável, na Itália, por uma das maiores comunidades dos universitários do movimento Comunhão e Libertação em Bolonha, abrangendo também as diversas comunidades da região central daquele país. Pai de quatro filhos, ainda jovem faleceu inesperadamente em um acidente de carro no dia 26 de maio de 1999. A seguir propomos alguns trechos da sua colocação na assembléia de início de ano dos universitários de CL realizada em Bolonha no dia 5 de outubro de 1988.


Olhem em volta: quem de vocês pode dizer que faria uma coisa assim? Nós, todos juntos, poderíamos dizer que seríamos capazes de fazer algo assim? Não. É esse o problema: a liberdade entra em ação a partir de uma presença, por algo que existe e que nos arranca do lugar: provoca, reclama, impulsiona.
A razão pela qual estamos juntos, esse trabalho, esse esforço de uma companhia é porque desejamos e buscamos um tipo humano novo. Não é para fazer grupo, fazer número, para nos mostrarmos, mas é por um tipo humano novo que nós já experimentamos e que queremos que o mundo encontre.
E um tipo humano novo ocorre porque aconteceu uma longa e firme identificação com aquele algo de novo que se deu em nós.
É um tipo humano novo que nos interessa, e essa é uma longa caminhada, a ser feita com paciência e tenacidade. Porque aquilo que não nos permite que isso aconteça é estar aqui mecanicamente. Então não aconteceria nada, tudo escaparia de vez, como a água sobre a rocha que desliza sem deixar sinal, ou como uma superfície ensaboada: ficaríamos impermeáveis.
É a admiração, o assombro perante uma coisa tão grande que torna a vida permeável. A capacidade de admirar, como dizia Jean Guitton num belíssimo livro, A Nova Arte de Pensar, é o primeiro movimento do homem que vive, e o comparava a alguém que sai do hospital e encontra o ar de sempre, o quintal de sempre, os prédios de sempre; quando sai do portão do hospital, quase que instintivamente diz: “Ah! que liberdade!”. No entanto, é a mesma coisa de antes. O que aconteceu? Ele recobrou a capacidade de admirar, é como se reencontrasse algo que desejava, que não possuía mais.

A arte da admiração
Assim é a nossa vida. Se perdemos essa capacidade de admirar, essa arte de se extasiar com o que está em volta, com algo que nem poderíamos imaginar, com o milagre da vida; se a gente perde isso, qual é o prazer de estar no mundo? O resto é ficar analisando os próprios estados psicológicos ou esperando uma grande sorte. Mas isso não é vida.
Interessa-nos uma humanidade nova; essa humanidade nova começa com a pessoa entendendo que à sua volta há uma imensa graça, um dom, algo que nunca foi seu e que a gente jamais conseguiria fazer.
Se a gente se concebe assim, a vida começa a mudar, porque quando vemos a vida como um dom, algo que nós recebemos, logo se entende que conservar a vida quer dizer doá-la de volta: sua natureza de dom permanece se nós a damos de volta; não quando a mantemos ciosamente para nós.
Cristo veio para se igualar ao homem, à liberdade do homem, e desde que Deus se tornou Cristo, para todo cristão (imaginemos os católicos) torna-se realmente insuportável a mecanicidade ou a ritualidade; porque aquilo que aparece imediatamente de Cristo é o testemunho de uma humanidade excepcional.

A amizade verdadeira
Se você olha o outro com parcialidade, ele não te provoca, e daí não pode haver amizade; se há uma totalidade, ou seja, se o outro é um fato vivo, apesar do que sentimos por ele, então ele é uma provocação, porque a sua presença nos obriga a ver a verdade dele. Experimentem considerar assim o colega ao lado: a vida adquire uma intensidade com a qual a gente nunca sonhou. Diferente da música, do rock, dos sentimentos... O verdadeiro sentimento é estar frente à vida, frente ao outro, a quem a gente deve dizer “Você”, e não “Eu”, porque é uma outra realidade, existe todo inteiro. Se eu estou diante do outro dessa forma, prescindindo daquilo que eu sinto por ele e do que ele desperta em mim (simpatia ou antipatia, interesse ou não), o outro é uma pergunta viva sobre a minha verdade. Quanto dano já nos foi causado pelo sentimentalismo que nos propõem todos os dias, dos desenhos animados infantis a todo o resto que vemos na televisão, nos filmes, em todo lugar.
Ao passo que esta é a vida: a namorada, antes mesmo do que você sente por ela, é uma pergunta sobre a sua verdade. Pelo simples fato de existir, testemunha que você não pode ser reduzido ao que sente. Depois dizem que o cristianismo é retrógrado, nessas coisas! Eu digo que o resto é animalesco, o que é muito pior. Nossa mãe, logo de manhã, é exatamente uma pergunta sobre a nossa verdade; no entanto, o “oi” que dirigimos a ela, em geral, é absolutamente vazio, frio, mecânico, repetitivo. É próprio do homem fazer desse jeito?
É exatamente isso que nos ensina O Senso Religioso (L. Giussani, Nova Fronteira, Rio de Janeiro 2000; nde): eu os desafio a encontrar uma outra realidade humana, uma outra realidade tão amigável, outras pessoas que lhes digam essas coisas, fora do cristianismo. Desafio!
Portanto, o olhar e uma prática de vida que nasce disso, logo se interessa por duas questões: antes de tudo, uma ajuda recíproca para não perder jamais isso, mas também uma ajuda normal nas coisas corriqueiras, porque o outro é importante demais e se a gente mantém essa posição diante de um amigo que está mal, a gente não pode ficar bem, e não porque sente simpatia por ele, mas porque ele é real; como a gente não pode estar bem se percebe que uma parte da humanidade está se dilacerando numa guerra. É impossível ficar bem.

Tensão comum
A outra questão é tender a um juízo comum, que é uma tensão, não é contar tudo de si, não é esse o problema. O verdadeiro problema é existir uma tensão a que este lugar, que me ensinou a ser verdadeiro, possa também – o mais possível – entrar como ajuda e alargamento dos horizontes em todas as minhas coisas: é uma tensão, e então se fala também de si, e se pede uma ajuda para uma determinada questão.
Uma vez, trouxe comigo a Bolonha uma menina de 14 anos que precisava consultar um dentista; tendo que ir a uma reunião, eu não sabia onde “estacioná-la”; deixei-a, então, com o pessoal da cooperativa de estudantes (Cusl). Durante a reunião, eu me dizia: “Mas o que fui fazer!? Aquele pessoal da Cusl é adulto, e depois trabalham, imprimem, escrevem, o que estará fazendo aquela garota... ela vai me odiar”. Terminou a reunião. Voltei e lhe perguntei: “E aí, como foi?”. E ela: “Olha, Enzo, fiquei impressionada com uma coisa que eu nunca tinha visto”. “Que coisa?”. “Como eles são amigos entre si. Até contavam histórias pessoais um para o outro...” – essa garota faz o colegial e na escola não está muito acostumada a ver relacionamentos desse tipo – “se ajudavam com dinheiro, diziam coisas fantásticas, e até comigo foram muito legais”. Ela ficou impressionada com um tipo novo de amizade, não havia mais nem diferença de idade, porque todos temos necessidade de uma só coisa: de relações verdadeiras.
Digam se me engano: precisamos de uma única coisa, de relações nas quais possamos confiar, não tanto por sabermos que o outro será sempre perfeito, mas porque sabemos que entre nós há um ideal tão forte que, mesmo que nós cometamos erros, recomeçamos e ninguém chantageia o outro.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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