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Passos N.60, Abril 2005

ESPECIAL - João Paulo II (1920-2005) / Testemunho

O testamento do Santo Padre João Paulo II
de 6 de março de 1979 (e acréscimos sucessivos)

Totus Tuus ego sum (Estou totalmente em Tuas mãos)

Em Nome da Santíssima Trindade. Amém.

“Vigiai, pois não sabeis em que dia vem o vosso Senhor” (cf. Mt 24, 42) – essas palavras lembram-me do chamado final, que virá quando o Senhor escolher. Desejo seguí-Lo e desejo que tudo que é parte de minha vida terrena me prepare para esse momento. Não sei quando virá, mas, como tudo mais, esse momento também ponho nas mãos da Mãe de Meu Mestre: Totus Tuus. Nas mesmas mãos maternais ponho tudo e Todos aqueles a quem minha vida e vocação estão ligadas. Nessas Mãos deixo, acima de tudo, a Igreja, e também minha Nação e toda a humanidade. Agradeço a todos. A todos peço perdão. Também peço orações, para que a Misericórdia de Deus se sobreponha à minha fraqueza e falta de valor.

Durante os exercícios espirituais refleti sobre o testamento do Santo Padre Paulo VI. Esse estudo me levou a escrever o presente testamento.

Não deixo para trás nenhuma propriedade que precise de destinação. Quanto aos ítens de uso diário que utilizei, peço que sejam distribuídos como possa parecer oportuno. Minhas anotações pessoais devem ser queimadas. Peço que Dom Stanislaw supervisione isso e agradeço a ele pela colaboração e ajuda tão prolongada ao longo dos anos, e tão ampla. Todos os outros agradecimentos, no entanto, deixo em meu coração perante o próprio Deus, porque é difícil expressá-los.

Quanto ao funeral, repito a mesma disposição dada pelo Santo Padre Paulo VI (anotação na margem: enterro na terra, não numa tumba, 13/03/92).

Apud Dominum misericordia et copiosa apud Eum redemptio” (com o Senhor há misericórdia, e com Ele ampla redenção; nde)

João Paulo pp. II
Roma, 6.III.1979



Depois de minha morte, peço Santas Missas e preces
5.III.1990


Página sem data:

Expresso a mais profunda fé que, a despeito de todas as minhas fraquezas, o Senhor conceder-me-á toda graça necessária para enfrentar, segundo Sua vontade, qualquer tarefa, teste e sofrimento que seja exigido deste Seu servo, durante o curso de minha vida. Também tenho fé que jamais será permitido que, por meio de meu comportamento: por palavras, ações ou omissões, venha eu a trair minhas obrigações neste santo trono de Pedro.


24.II – 1.III.1980
Também durante esses exercícios espirituais tenho refletido sobre a verdade do Sacerdócio de Cristo na perspectiva daquela Passagem que para cada um de nós é o momento da morte. Deixando este mundo – para renascer no outro, mundo futuro, sinal eloqüente (acrescentado acima: “decisivo”) é, para nós, a Ressurreição de Cristo.

Portanto li a cópia de meu testamento do ano passado, também elaborado durante exercícios espirituais – comparei-o ao testamento de meu grande Predecessor e Pai Paulo VI, com aquela sublime testemunha da morte de um cristão e de um papa – e renovei em mim a consciência das questões a que se referem a cópia de 6 de março de 1979, preparada por mim (de modo um tanto quanto provisório).

Hoje desejo acrescentar apenas isto, que cada um de nós deve manter em mente a perspectiva da morte. E deve estar pronto para se apresentar perante o Senhor e Juiz – e simultaneamente Redentor e Pai. Então, também eu tenho de tomar isso em consideração continuamente, confiando o momento decisivo à Mãe de Cristo e da Igreja – à Mãe de minha esperança.

Os tempos que vivemos são indescritivelmente difíceis e turbulentos. Difícil e tensa tornou-se a vida da Igreja também, um desafio característico destes tempos – tanto para os Fiéis, quanto para os Pastores. Em alguns Países (como, por exemplo, naquele sobre o qual eu estava lendo durante os exercícios espirituais), a Igreja se encontra em um período de perseguição que não é inferior àqueles dos primeiros séculos; ao contrário, o grau de crueldade e ódio é ainda maior. Sanguis martyrum – semen christianorum (sangue dos mártires, semente dos cristãos; nde). E, além disso, tantas pessoas desaparecem inocentemente, mesmo neste país em que vivemos...

Desejo mais uma vez entregar-me totalmente à misericórdia do Senhor. Ele próprio decidirá quando e como devo encerrar minha vida terrena e ministério pastoral. Na vida e na morte Totus Tuum por meio da Imaculada. Aceitando já a morte, espero que Cristo conceda-me graça para minha passagem final, que é [minha] Páscoa. Espero também que ela se torne útil para esta importante causa a que tento servir: a salvação dos homens, a proteção da família humana e de todas as nações e povos (entre esses, refiro-me em particular ao meu país terrestre), útil para as pessoas que de modo especial confiaram a mim as questões da Igreja, para a glória de Deus.

Não desejo acrescentar nada ao que escrevi um ano atrás – apenas expressar esta prontidão e ao mesmo tempo esta fé, para a qual o presente exercício espiritual preparou-me.

João Paulo II



Totus Tuum ego sum
5.III.1982

Ao longo dos exercícios espirituais deste ano tenho lido (várias vezes) o texto do testamento de 6.III.1979. A despeito de mesmo agora ele dever ser considerado provisório (não definitivo), deixo-o na forma existente. Mudo (por ora) nada, nem acrescento nada, no que diz respeito aos arranjos contidos nele.
O atentado contra minha vida de 13.V.1981 (13 de maio de 1981) confirmou, de certa forma, a exatidão das palavras escritas no período de exercícios espirituais de 1980 (24.II – 1.III).
Tão mais profundamente sinto-me totalmente nas Mãos de Deus – e me mantenho continuamente à disposição de meu Senhor, confiando-me a Ele e à Sua Imaculada Mãe.

(Totus Tuus)

João Paulo pp. II


5.III.1982
Em conexão com a frase final de meu testamento de 6.III.1979 (“sobre o lugar/o lugar, isto é, do funeral/possam o colégio de cardeais e os compatriotas decidir”) – esclareço que tinha em mente: o metropolitano de Cracóvia ou o Conselho Geral dos Bispos da Polônia – peço, enquanto isso, que o Colégio dos Cardeais satisfaça, na medida do possível, as eventuais questões dos supramencionados.


1.III.1985 (durante exercícios espirituais)
Novamente – quanto à expressão “colégio de cardeais e os compatriotas”: o “colégio de cardeais” não tem nenhuma obrigação de consultar “os compatriotas” nessa questão; ele pode, em qualquer caso, fazê-lo, se por alguma razão considerar correto.

JPII



Os exercícios espirituais do Jubileu do ano 2000
(12-18.III)

[para o testamento]

1. Quando, no dia 16 de outubro de 1978, o conclave de cardeais escolheu João Paulo II, o Primaz da Polônia, Cardeal Stefan Wyszynski, disse-me: “A tarefa do novo papa será introduzir a Igreja no Terceiro Milênio”. Não sei se estou repetindo a frase exatamente, mas pelo menos tal era o sentido do que ouvi dele. Foi dita pelo homem que passou para a história como o Primaz do Milênio. Um grande Primaz. Fui testemunha da missão, de sua total entrega de si mesmo. As suas lutas; a sua vitória. “Vitória, então, quando vier, será uma vitória por Maria” – essas, as palavras de seu Predecessor, cardeal Augusto Hlond, o Primaz do Milênio quis repetir.

Desse modo fui, até certo grau, preparado para a tarefa colocada diante de mim em 16 de outubro de 1978. Enquanto escrevo estas palavras, o Jubileu do ano 2000 já é uma realidade, e em andamento. A noite de 24 de dezembro de 1999, a Porta simbólica do Grande Jubileu da Basílica de São Pedro foi aberta e, sucessivamente, a de São João Laterano, então Santa Maria Maior na Véspera do Ano Novo; e em 19 de janeiro, a Porta da Basílica de São Paulo “Fora dos Muros”. Este último evento, dado o caráter ecumênico, ficou particularmente gravado na memória.


2. Na medida em que o Ano Jubileu 2000 prossegue, fechando às nossas costas, dia-a-dia, o século XX, enquanto o século XXI se abre. De acordo com os desígnios da Providência, foi-me dado viver durante o difícil século que está acabando, e agora, no ano durante o qual minha idade chega a 80 anos (“octogesima adveniens”) é necessário perguntar se não é a hora de repetir as palavras de Simeão bíblico, “Nunc dimittis” (Deixai agora vosso servo ir em paz; nde).

Em 13 de maio de 1981, o dia do atentado contra a vida do papa durante a audiência geral da Praça de São Pedro, a Divina Providência salvou-me da morte de modo miraculoso. Ele que é o único Salvador da vida e da morte, prolongou esta vida, e de certo modo deu-me vida nova. Daquele momento, ela pertence a Ele ainda mais. Espero que Ele me ajude a reconhecer a hora até a qual devo continuar este serviço, ao qual me chamou no dia de 16 de outubro de 1978. Peço-Lhe que me chame quando quiser.

“Quer, pois, vivamos ou morramos, somos do Senhor” (Rom 14, 8). Espero que, no tempo que me foi dado para executar o serviço de Pedro na Igreja, a Misericórdia de Deus me conceda a força necessária para este serviço.


3. Como faço todo ano durante os exercícios espirituais, leio meu testamento de 6-III-1979. Continuo a manter as disposições contidas nesse texto. O que então, durante sucessivos exercícios espirituais, foi acrescentado constitui uma reflexão na situação geral difícil e tensa que marcou os anos 80. A partir do outono do ano 1989, essa situação mudou. A última década do século foi livre das tensões prévias; isso não significa que não tenha trazido consigo novos problemas e dificuldades. De modo especial, possa a Divina Providência ser louvada por isso, que o período da chamada “guerra fria” terminou sem um conflito nuclear violento, o perigo que pesou sobre o mundo no período anterior.


4. Estando no limiar do terceiro milênio in medio Ecclesiae (dentro da Igreja; nde) desejo uma vez mais expressar gratidão ao Espírito Santo pela grande dádiva do Concílio Vaticano II, para com o qual, juntamente com toda a Igreja – e, sobretudo, todo o episcopado – sinto-me em débito. Estou convencido de que por um longo período porvir as novas gerações recorrerão às riquezas que este Concílio do século XX nos deu. Como bispo que participou do evento conciliar do primeiro ao último dia, desejo confiar esse grande patrimônio a todos aqueles que são e serão convocados a conhecê-lo. De minha parte, agradeço ao Pastor eterno que me permitiu servir nessa verdadeira grande causa durante o curso de todos os anos de meu pontificado.

In medio Ecclesiae... dos primeiros anos de meu serviço como bispo – precisamente graças ao Concílio – fui capaz de experimentar a comunhão fraterna do episcopado. Como padre da arquidiocese de Cracóvia, experimentei a comunhão fraterna entre presbíteros – e o Concílio abriu uma nova dimensão dessa experiência.


5. Quantas pessoas eu deveria citar! Provavelmente o Senhor Deus já chamou para si a maioria delas – quanto às que estão ainda deste lado, possam as palavras deste testamento lembrá-las, todos em toda parte, onde quer que estejam. Durante os mais de 20 anos em que cumpro o serviço de Pedro in medio Ecclesiae experimentei a benevolência e mesmo a colaboração fecunda de tantos cardeais, arcebispos e bispos, tantos padres, tantas pessoas consagradas – irmãos e irmãs – e, por fim, incontável número de pessoas leigas, dentro da Cúria, no vicariato da diocese de Roma, bem como fora desse meio. Como poderia não abraçar com grata memória todos os bispos do mundo a quem conheci nas visitas ad limina Apostolorum! (referência às visitas obrigatórias dos bispos a Roma; nde). Como poderia não me lembrar de tantos irmãos cristãos não-católicos! E do rabino de Roma e tantos representantes de religiões não-cristãs! E quantos representantes do mundo da cultura, ciência, política, e dos meios de comunicação social!


6. Conforme se aproxima o fim de minha vida terrena, retorno com minha memória ao início, aos meus pais, ao meu irmão, à irmã (que nunca conheci, pois ela morreu antes de meu nascimento), à paróquia de Wadowice, onde fui batizado, à cidade que amo, a meus coetâneos, amigos da escola primária, escola secundária e universidade, até o tempo da ocupação, quando fui trabalhador, e então na paróquia de Niegowic, então em São Floriano em Cracóvia, no ministério pastoral dos acadêmicos, ao ambiente... a todos os ambientes... a Cracóvia e a Roma... às pessoas que foram confiadas a mim de modo especial pelo Senhor.

A todos quero dizer só uma coisa: “Possa Deus recompensá-los”.
In manus tuas, Domine, commendo spiritum meum.” (“Nas Tuas mãos, Senhor, entrego meu espírito”)

A.D.

17.III.2000

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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