Texto inicialmente publicado na Revista Litterae nº 27, março-abril de 1992, pp. 3-6
1. Em um dos hinos das Laudes cantamos: “Ao nosso convívio harmonioso ajunte-se um hóspede novo” 1. Harmonioso: somente uma unidade de povo é verdadeiro sujeito protagonista da história. A palavra harmonia tem um valor metafísico, ontológico e um valor ético, moral; é necessário ter presente e aprofundar esses dois aspectos no renovar-se cotidiano do nosso compromisso, da nossa memória. Lembremos que a palavra memória indica um presente, a consciência de um presente que começou num passado. A memória é um investimento da história; e o Benedictus 2 assinala a trajetória desta história.
“Ajunte-se um hóspede novo”; o valor metafísico e ontológico da nossa harmonia está na profundidade que a nossa unidade assume a partir da grande presença de Cristo, que é a única coisa que sabemos. Nós somos tão agraciados que, na nossa ingenuidade, conseguimos superar toda a contradição da nossa distração e dos nossos pecados e perceber dia após dia a grande presença de Cristo. Somos tão agraciados que, quem quer que sejamos ou como quer que estejamos, podemos sincera e ingenuamente repetir que não conhecemos coisa alguma, a não ser Cristo. Com efeito, a nossa harmonia não conhece coisa alguma, a não ser Cristo.
Deste valor ontológico da companhia jorra o seu valor moral: é fruto de uma liberdade. A nossa harmonia é fruto da liberdade: fruto da Sua presença como raiz, mas fruto da nossa liberdade como reconhecimento e consentimento.
Disto que brevemente ficou dito nasce a fórmula moral mais intensamente capaz de resumir e indicar a praxe da nossa vida: “O maior sacrifício é dar a vida pela obra de um Outro”. Essa frase é análoga à que Cristo disse: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” 3. Mas, ainda mais profundamente – como todo o Evangelho de São João afirma –, esta frase lembra a própria experiência de Cristo, que dá a vida pela obra do Pai.
Dar a vida pela obra de um Outro, dito não abstratamente, significa para nós que tudo o que fazemos, toda a nossa vida, é para o Movimento. Dizer que aquilo que fazemos é para o incremento do carisma do qual nos foi dado participar é dizer algo que tem uma referência precisa, histórica, que tem uma sua cronologia, uma sua feição, que pode ser descrita e até fotografada; que indica nomes e sobrenomes e, na origem, um nome e um sobrenome. Se dar a vida pela obra de um Outro não indica um nome e um sobrenome, desvanece a sua historicidade, deprime-se a sua concretude e, então, não se dá mais a vida pela obra de um Outro, mas, sim, por uma nossa interpretação, pelas nossas preferências, pelo nosso interesse ou pelo nosso ponto de vista.
Dar a vida pela obra de um Outro; este “outro”, historicamente, fenomenicamente, como aparência, é uma determinada pessoa; pelo que diz respeito ao Movimento, por exemplo, sou eu. Enquanto digo isso, é como se todo o meu eu desaparecesse (porque o Outro é Cristo na sua Igreja); permanece um ponto de referência histórico e todo o fluxo de palavra, todo o rio de obra que nasceu desde o primeiro momento no Colégio Berchet 4 . Perder de vista este traço é perder o fundamento temporal da harmonia, da utilidade do nosso agir, é como pôr rachaduras em um alicerce.
2. Tão logo pronunciada, a palavra “eu” esvai-se, perde-se na distância; porque o fator histórico que pode ser descrito, fotografado, indicado por nome e sobrenome está destinado a desaparecer do cenário em que inicia uma história. Cada um tem a responsabilidade pelo carisma; cada um é causa de declínio ou de incremento da eficácia do carisma; cada um ou é um terreno em que o carisma se desperdiça ou é um terreno em que o carisma dá frutos. Portanto, este é um momento em que, para cada um, a tomada de consciência da responsabilidade é gravíssima como urgência, como lealdade e como fidelidade. É o momento da responsabilidade que cada um assume para com o carisma.
Obscurecer ou diminuir estas observações significa obscurecer e diminuir uma intensidade de incidência que a história do nosso carisma tem sobre a Igreja de Deus e sobre a sociedade de hoje.
Incidência esta que é muito grande e destinada a tornar-se maior ainda.
A essência do nosso carisma pode ser resumida em duas coisas:
- antes de mais nada, o anúncio de que Deus se fez homem (a admiração e o entusiasmo por isso);
- em segundo lugar, que este homem está presente num “sinal” de harmonia, de comunhão, de unidade de comunidade, de unidade de povo.
Poderíamos acrescentar uma terceira coisa fundamental para descrever definitivamente o nosso carisma: somente no Deus feito homem, por isso somente na Sua presença, e, portanto, – de certo modo – somente por meio da forma da Sua presença, é que o homem pode ser homem e o gênero humano pode ser humano. É, portanto, da Sua presença que surgem com segurança a moralidade e a paixão pelo homem (“missão”).
3. Há uma identificação pessoal, uma versão pessoal que cada um dá do carisma para o qual foi chamado e ao qual pertence. Inevitavelmente este carisma, quanto mais a pessoa se torna responsável por ele, tanto mais passa pelo seu temperamento, através daquela vocação irredutível a qualquer outra, que é a pessoa. A personalidade de cada um tem uma sua concretude da sua mentalidade, do seu temperamento, das circunstâncias em que vive e principalmente do movimento da sua liberdade.
Por isso, cada um pode fazer o que quiser com o carisma e a sua história: reduzí-lo, torná-lo parcial, acentuar aspectos dele em prejuízo de outros (tornando-o monstruoso), dobrá-lo a um próprio gosto de vida ou a um próprio interesse, abandoná-lo por negligência, por obstinação, por superficialidade, ou ainda abandoná-lo a um acento em que a própria pessoa se encontre mais à vontade, encontre mais gosto e se canse menos.
O carisma, ao se identificar com a responsabilidade de cada um, assume uma flexão variada e aproximativa na medida da generosidade de cada um. A aproximação é medida pela generosidade, onde se fundam capacidade, temperamento, gosto, etc. O carisma conjuga-se segundo a generosidade de cada um. Esta é a lei da generosidade: dar toda a própria vida pela obra de um Outro.
Este terceiro ponto chega a impor a grande questão: cada um, em cada ato seu, em cada dia seu, em cada imaginar seu, em cada propósito seu, em cada agir seu, deve se preocupar em comparar os critérios de ação com a imagem do carisma, tal como este emergiu nas origens da história comum. A comparação com o carisma assim como nos foi dado tende a corrigir a singularidade da versão, da tradução, e é correção e suscitação contínua.
A comparação com o carisma é, portanto, a maior preocupação que metodológica, prática, moral e pedagogicamente é preciso ter. De outro modo, o carisma torna-se pretexto e ocasião para aquilo que queremos; acoberta e justifica algo que nós queremos fazer. Assim, nos tornamos radicalmente impostores, porque dizemos fazer Comunhão e Libertação, ao passo que fazemos o que nós queremos de Comunhão e Libertação. A mentira, segundo a linguagem de São João, é sinônimo de pecado, portanto, é uma traição.
Para limitar esta tentação, que é de cada um de nós, devemos tornar comportamento normal a comparação com o carisma, vivida como correção e como ideal continuamente ressuscitado. Devemos tornar tal comparação hábito, “habitus”, virtude. Esta é a nossa virtude: a comparação com o carisma na sua originalidade.
4. Neste ponto, volta o efêmero, porque Deus se serve do efêmero. Volta a importância do efêmero: por hora, a comparação em última instância com a pessoa determinada com a qual tudo começou. Eu posso ser dissolvido, mas os textos deixados e o seguimento ininterrupto – se Deus quiser – das pessoas indicadas como ponto de referência, como interpretação verdadeira daquilo que em mim aconteceu, tornam-se o instrumento para a correção e para a ressuscitação; tornam-se o instrumento para a moralidade. A linha das referências indicadas é a coisa mais viva do presente, porque um texto pode ser ele próprio interpretado; é difícil interpretá-lo mal, mas pode ser interpretado assim.
Dar a vida pela obra de um Outro implica sempre um nexo entre a palavra “Outro” e algo histórico, concreto, palpável, sensível, descritível, fotografável, com nome e sobrenome. Sem isto se impõe o nosso orgulho, este, sim, efêmero, mas no pior sentido do termo. Falar de carisma sem historicidade não significa dizer um carisma católico.
Notas
[1] Refere-se ao hino A aurora resplende de luz do tempo “per annum”.
[2] A oração que Zacarias eleva a Deus no nascimento de seu filho João Batista, anunciada pelo Anjo (cf. Lc 1,68-79). Na Liturgia das Horas é recitada nas Laudes matutinas.
[3] Cf. Jo 15,13.
[4] A partir de 1954, no Liceu Clássico “G. Berchet” de Milão, nasceu em volta de padre Giussani o primeiro grupo de Gioventù Studentesca (Juventude Estudantil; nde), depois transformado em CL.
[5] Cf. Jo 8,44.
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