Puro dom de si. Antes de mais nada, o relacionamento de Deus com o homem, do Mistério com o homem – digamos o Mistério, porque Mistério é Deus e Cristo, é Deus e um homem – o Mistério aparece ao homem como gratuidade, isto é, como caridade. Aliás, pode-se dizer aquilo que disse São João: a própria natureza de Deus é caridade (1Jo 4, 16). A natureza é aquele modo de ser feito pelo qual uma pessoa age de uma certa maneira; a natureza é a origem das ações, por isso, se uma pessoa age com caridade, é porque tem a natureza que é origem da caridade. E de fato diz: “Deus charitas est”, Deus é amor, mas amor no seu sentido total, absoluto, porque quer o bem do outro.
A natureza de Deus aparece como gratuidade porque se doou ao homem. Dom: esta é a primeira palavra na qual se fixa o termo gratuidade ou o termo caridade ou o termo amor. É puro dom, dissemos, sem retorno. Sem retorno quer dizer que é puro dom.
A natureza de Deus é dar, aparece ao homem como dar, dom, sem retorno, puro dom.
O que lhe dá? A si mesmo, quer dizer, o Ser, o Ser porque sem Ele nada foi feito daquilo que existe.
“Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15, 5): imaginem aquela cena, na noite de Quinta-Feira Santa. Tudo estava contra eles, e Jesus falava, falava – aquele longo discurso que lemos juntos na Quinta-Feira Santa (Faz-se referência à reunião dos universitários de CL que tradicionalmente se realiza na Cartuxa de Pavia durante a Quinta-Feira Santa; na parte da manhã são lidos os capítulos 14 -17 do Evangelho de São João) –, aqueles homens que estavam acostumados a ouvi-Lo falar e O fixavam enquanto falava, observando todas as Suas ações, ficavam atentos a Ele mais que o normal, todos voltados para isso. Aquele homem que tinha colocado a mão no prato para comer junto com eles, como era o costume, a um certo ponto se interrompe e diz: “Sem mim nada podeis fazer...” Mas este é Deus, o único que pode falar assim é Deus!
A natureza de Deus aparece ao homem como dom absoluto: Deus se dá, dá a si mesmo ao homem. E Deus, o que é? A fonte do ser. Deus dá ao homem o ser: dá ao homem a existência; concede ao homem ser mais, o crescimento; concede ao homem ser completamente ele mesmo, crescer até a sua realização, isto é, doa ao homem a felicidade (feliz, ou seja, totalmente satisfeito ou perfeito; como sempre disse, em latim e em grego, perfeito e satisfeito são a mesma palavra: perfectus, isto é, perfeito ou realizado; um homem satisfeito é realizado).
Deu-se a mim, dando-me o seu ser: “Façamos o homem a nossa imagem e semelhança.” (Gen 1, 26). E depois, quando o homem menos esperava, não podia sequer sonhar com isso, não esperava mais, não pensava mais nAquele do qual tinha recebido o ser, este reentra na vida do homem para salvá-la, dá-se novamente a si mesmo morrendo pelo homem. Dá-se totalmente, dom total de si, até: “Ninguém ama tanto os amigos como quem dá a vida pelos amigos” (Jo 15, 13). Dom total.
Mas aqui há uma última nuança: aquilo que Cristo nos dá morrendo por nós – morrendo porque o traímos – para nos purificar da traição, aquilo que nos dá é maior do que aquilo que merecíamos. Isto é como um ângulo aberto para o infinito a ser investigado com o tempo da vida que passa, a ser experimentado. Cristo nos dá mais do que aquilo que precisava para nos salvar: onde abundou o delito, superabunda a gratuidade. Fez mais do que aquilo que era necessário para nos salvar. Para nos salvar Cristo podia dizer somente: “Pai, perdoa-lhes”, bastava isto. Enquanto comia na última ceia, podia dizer: “Pai, perdoa-lhes.” Bastava isto, aliás, bastava que dissesse: “Sim, Pai, envia-me”, e entrasse no seio de Maria, tornando-se criança, tornando-se homem. Só isto bastava. Ao invés disso, “Onde abundou o pecado, superabunda a graça” (Rom 5, 20). De qualquer forma, o conceito fundamental que desdobra todo o valor do termo caridade ou gratuidade – que delineia assim a natureza de Deus, o modo de agir de Deus, que nós devemos imitar porque é o Pai – é a doação de si. (...)
Comovido. O segundo fator – o primeiro é o essencial – é como um adjetivo ao lado do substantivo, é adjetivo; adjetivo quer dizer que se apóia, apóia-se no substantivo, por isso seria secundário em relação ao primeiro. E mesmo assim é o mais impressionante, e nós – eu aposto – nunca pensamos nisso e nunca pensaríamos, se Deus não nos tivesse colocado juntos.
Por que Deus dedica a Si mesmo a mim? Por que Se doa a mim criando-me, dando-me o ser, isto é, Ele mesmo (Ele dá a Si mesmo a mim, o ser)? Por que, além do mais, torna-Se homem e Se dá a mim para tornar-me de novo inocente – como diz o canto de hoje (“E nesta letícia pascal e feitos de novo inocentes” (“A aurora resplende de luz”, hino das Laudes de domingo, em O Livro das Horas, p. 16) – e morre por mim (disso não precisava absolutamente: bastava estalar os dedos e o Pai teria agido obrigatoriamente)? Por que morre por mim? Por que este dom de si mesmo até o extremo concebível, além do extremo concebível? (...)
Esta piedade – “tendo piedade do teu nada” – é bonito descobri-la no Evangelho. Por exemplo, quando – é dito duas vezes – uma tarde vê a sua cidade do alto da colina e chora sobre ela, pensando na sua ruína
(Lc 13, 34-35). Aquela cidade O mataria algumas semanas depois, mas para Ele isto não importa.
Ou aquela outra tarde, logo antes de ser preso, no esplendor do ouro do templo iluminado pelo sol que se punha, edákruse, diz o texto grego, soluçou diante do destino da sua cidade (Lc 19, 41-44). Uma piedade como aquela de uma mãe que se agarra ao filho para não deixá-lo ir em direção ao perigo mortal para o qual está indo.
E depois, escolho primeiro o de São Lucas, porque em São Lucas isto é mais evidente que nos outros Evangelhos (São Lucas com São João e São Marcos com São Mateus; São Mateus era um hebreu, São Lucas, no entanto, era um pagão): está caminhando no meio dos campos com seus discípulos arrancando as espigas, porque tinham fome; vêem um funeral no vilarejo ali perto. Ele pergunta: “Quem é?” “É um jovem” – adulescens, um adolescente – “que morreu e sua mãe é viúva. Perdeu o único filho e é viúva.” De fato, atrás do féretro está a mãe que grita. Jesus dá um passo e diz: “Mulher, não chores”, que era uma coisa inconcebível; à parte o fato de que fica entre o ridículo e o absurdo: como se faz para dizer a uma mulher que segue naquelas condições o féretro do filho “Não chores”? Era o transbordamento de uma piedade, de uma compaixão (Lc 7, 11-17). (...)
Eis, portanto, o ponto: Deus se comoveu com o nosso nada. E mais: Deus se comoveu com a nossa traição, com a nossa rude pobreza, esquecida e traiçoeira pobreza, com a nossa mesquinhez. Deus se comoveu com a nossa mesquinhez, que é ainda mais do que se comover com o nosso nada. “Tive piedade do teu nada, tive piedade do teu ódio contra mim. Comovi-me porque tu me odeias.” Como um pai e uma mãe que choram de comoção por causa do ódio do filho. Não choram porque ficam chateados, choram de comoção, quer dizer, com um pranto totalmente determinado pelo desejo do bem do filho, do destino do filho: que o filho mude, pelo seu destino; que se salve. É uma compaixão, uma piedade, uma paixão.
* Texto extraído de É Possível Viver Assim?, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro 1998, pp. 271-277.
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