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Passos N.59, Março 2005

O MARAVILHAMENTO DE UM ENCONTRO

Na simplicidade do meu coração cheio de letícia Te dei tudo

por Luigi Giussani

Testemunho durante o encontro do Santo Padre João Paulo II com os movimentos eclesiais e as novas comunidades. Praça São Pedro, Roma, 30 de maio de 1998; in Litterae Communionis, maio/junho de 1998, pp.7-8

Tento dizer como surgiu em mim uma postura – que Deus teria abençoado como quisesse – que eu não podia prever, e nem mesmo desejar.
1) “Que é o homem, para te lembrares dele, o filho do homem, para cuidares dele?” (Sl 8). Nenhuma pergunta me impressionou tanto como esta, desde os anos do Seminário. Houve só um Homem no mundo que me podia responder, colocando uma nova pergunta: “Que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se depois perder a si mesmo? Ou que poderá dar em troca de si mesmo?” (Mt 16, 26; cf. Mc 8, 36ss; Lc 9, 25ss).
Nunca me foi dirigida uma outra pergunta que me deixasse sem fôlego como esta de Cristo!
Nenhuma pergunta jamais ouviu uma outra voz falar de seu filho com semelhante ternura original e indiscutível valorização do fruto do seu seio, com afirmação totalmente positiva do seu destino; só a voz do judeu Jesus de Nazaré. Mas, mais ainda, nenhum homem pode sentir-se afirmado com essa dignidade de valor absoluto, para além de qualquer sucesso seu. Ninguém no mundo jamais pôde falar assim! Só Cristo se interessa totalmente pela minha humanidade. É a surpresa de Dionísio, o Areopagita (século V): “Quem poderá jamais falar do amor ao homem que é próprio de Cristo, transbordante de paz?”. Repito estas palavras a mim mesmo há mais de cinqüenta anos! Por isto a Redemptor Hominis entrou no nosso horizonte como clarão bem no meio das trevas que envolvem a terra obscura do homem de hoje, com todas as suas confusas perguntas.
Obrigado, Santidade!
Era uma simplicidade de coração que me fazia sentir e reconhecer Cristo como excepcional, daquela maneira imediata cheia de certeza, como acontece diante da evidência incontestável e indestrutível de fatores e momentos da realidade, que, tendo entrado no horizonte da nossa pessoa, nos tocam até o coração.
Reconhecer o que é Cristo na nossa vida invade portanto a totalidade da nossa consciência do viver: “Eu sou o Caminho, a Verdade, a Vida” (Jo 14, 6).
“Domine Deus, in simplicitate cordis mei laetus obtuli universa” (“Senhor Deus, na simplicidade do meu coração cheio de letícia Te dei tudo”); vê-se que o reconhecimento é verdadeiro pelo fato de que a vida tem uma última e tenaz capacidade de letícia.
2) Como esta letícia, que é glória humana de Cristo, e que me enche o coração e a voz nestes momentos, pode ser descoberta como verdadeira, como pode ser razoável para o homem de hoje?
Pois aquele Homem, o judeu Jesus de Nazaré, morreu por nós e ressuscitou. Aquele Homem ressuscitado é a Realidade da qual deriva toda a positividade da existência de qualquer homem.
Toda experiência vivida no Espírito de Jesus, Ressuscitado da morte, floresce no Eterno. Este florescimento não desabrochará só no fim dos tempos; ele começou no crepúsculo da Páscoa. A Páscoa é o início deste caminho para a Verdade eterna de tudo, caminho, portanto, que já está dentro da história do homem.
Cristo, como Verbo de Deus encarnado, torna-se de fato presente, enquanto Ressuscitado, em qualquer tempo, através de toda a história, para chegar da manhã de Páscoa até o fim deste tempo, deste mundo.
O Espírito de Jesus, ou seja, do Verbo que se fez carne, torna-se experimentável para o homem – na Sua força redentora de toda a exigência de cada pessoa e da história humana – na mudança radical que produz em quem se depara com Ele e, como João e André, O segue.
Da mesma forma para mim a graça de Jesus, na medida em que pude aderir ao encontro com Ele e comunicá-Lo aos irmãos na Igreja de Deus, tornou-se a experiência de uma fé, que na Santa Igreja, ou seja, no povo cristão, revelou-se como chamado e desejo de alimentar um novo Israel de Deus:
“Populum Tuum vidi, cum ingenti gaudio, Tibi offerre donaria” (“Vi o Teu povo, com grandíssima alegria, reconhecer a existência como oferta a Ti”), continua a oração da Liturgia.
Vi assim acontecer a formação de um povo, em nome de Cristo. Tudo em mim se tornou realmente mais religioso, até chegar à consciência propensa a descobrir que “Deus é tudo em tudo” (1 Cor 15, 28). Neste povo a letícia tornou-se “ingenti gaudio”, ou seja, fator decisivo da sua história como positividade última e como alegria.
O que poderia parecer no máximo uma experiência individual tornava-se um protagonismo na história, por isso instrumento da missão do único Povo de Deus.
3) Termina assim o precioso texto da liturgia ambrosiana: “Domine Deus, custodi hanc voluntatem cordis eorum”. “Senhor Deus, salva esta disposição do coração deles”.
A infidelidade sempre surge no nosso coração mesmo diante das coisas mais belas e mais verdadeiras, nas quais, diante da humanidade de Deus e da simplicidade original do homem, o homem pode fraquejar por debilidade e preconceito mundano, como Judas e Pedro. Até mesmo a experiência pessoal da infidelidade que sempre surge, revelando a imperfeição de qualquer gesto humano, clama pela contínua memória de Cristo.
Ao grito desesperado do pastor Brand, no homônimo drama de Ibsen (“Responde-me, ó Deus, na hora em que a morte me engole: não é então suficiente toda a vontade de um homem para conseguir uma só parcela de salvação?”), corresponde a humilde positividade de Santa Teresa do Menino Jesus, que escreve: “Quando sou caridosa, é só Jesus que age em mim”.
Tudo isto significa que a liberdade do homem, sempre implicada pelo Mistério, tem como forma suprema e incontestável a oração. Por isto, a liberdade se coloca, segundo toda a sua verdadeira natureza, como adesão ao Ser, portanto a Cristo. Na incapacidade, dentro da grande fragilidade do homem, está destinada a perdurar a afeição a Cristo. Neste sentido, Cristo, Luz e Força para todo seguidor seu, é o reflexo adequado daquela palavra com a qual o Mistério aparece na sua relação última com a criatura, como misericórdia: Dives in Misericordia. O mistério da misericórdia ultrapassa qualquer imagem de tranqüilidade ou de desespero; até o perdão está dentro deste mistério de Cristo.
Este é o abraço último do Mistério, contra o qual o homem – mesmo o mais distante e o mais perverso ou o mais obscuro, o mais tenebroso – não pode opor nada, não pode colocar objeção; pode abandoná-lo, mas abandonando a si mesmo e ao próprio bem. O Mistério como misericórdia continua a ser a última palavra mesmo sobre todas as feias possibilidades da história.
Por isso, a existência se exprime como mendicância. O verdadeiro protagonista da história é o mendicante: Cristo mendicante do coração do homem e o coração do homem mendicante de Cristo.

(traduzido por Durval Cordas)

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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