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Passos N.58, Fevereiro 2005

Fortaleza / Educação

Educar é um Risco

por Aparecida Nagao Dias

O livro de padre Giussani é apresentado como evento principal das comemorações pelos 50 anos da Universidade Federal do Ceará. Com a presença do Reitor, Diretores e coordenadores das faculdades, além de alunos e professores, foi feita a clara proposta de uma identidade cristã no ambiente universitário

Tudo começou em uma reunião de Escola de Comunidade na Faculdade de Farmácia, quando a profª. Janete, vice-coordenadora da Graduação, sugeriu que o livro "Educar é um Risco", de padre Giussani, fosse apresentado durante as comemorações pelos 50 anos da Universidade Federal do Ceará (UFC). A diretora aprovou a escolha e sugeriu aos demais diretores da Universidade que o evento fosse promovido por todos os diretores e coordenadores de Graduação e de Pós-Graduação. A idéia foi aceita por unanimidade. O reitor também apoiou a proposta e ofereceu passagem e estada para a Profª. Ana Lydia Sawaya, uma das responsáveis pelo movimento Comunhão e Libertação no Brasil, ir de São Paulo para apresentar a obra. No evento, realizado em 11 de novembro de 2004, estiveram presentes em torno de 120 pessoas, destacando a presença de diversas autoridades da UFC: prof. René Teixeira Barreira, Reitor; prof. Luiz Antônio Maciel, Pró-Reitor de Extensão; profª. Ana Maria Iório Dias, Pró-Reitora da Graduação; coordenadores da graduação e de pós-graduação; diretores de centros; além de professores e alunos.
Compuseram a mesa a profª. Maria de Fátima Oliveira Costa, Diretora do Centro de Humanidades e presidente da mesa; a profª. Dra. Ana Lydia Sawaya, apresentadora do livro, Profª. Associada do Departamento de Fisiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), diretora do Centro de Recuperação Nutricional (CREN) de São Paulo; o Prof. Dr. Custódio Luis Silva de Almeida, do Centro de Humanidades da UFC, que falou sobre o tema “Ética e Educação”; a Profª. Dra. Zulene Maria Vasconcelos Varela, docente dos cursos de Farmácia, Odontologia e Enfermagem da UFC, que abordou o tema “Saúde e promoção humana”; e a Profª. Dra. Sônia Maria Araújo Castelo Branco, do Centro de Tecnologia da UFC, que dissertou sobre “A formação da pessoa nas ciências exatas”. Todos os temas foram abordados a partir da leitura do livro de Giussani.
A partir desse evento, nasceu a possibilidade de uma contínua colaboração. O diretor da Medicina convidou a profª. Ana Lydia para ministrar cursos de pós-Graduação, dentro do convênio que estabeleceram com a Escola Paulista de Medicina; também colocou-a em contato com o responsável pelo Instituto de prevenção de desnutrição (IPREDE), favorecendo um intercâmbio entre essa instituição e o CREN. Por fim, foi sugerido um estudo sistemático sobre o livro Educar é um Risco pelos professores.
A Profª. Aparecida, uma das responsáveis pelo evento, concluiu: “O evento foi marcado por acontecimentos inesperados. O reitor fez questão de estar presente e ouvir a palestra. Houve uma absoluta receptividade dos palestrantes em relação ao livro. A platéia como um todo gostou do evento. Um dos fatos que mais nos tocou foi ter havido a possibilidade explícita de se tocar no nome de Jesus Cristo. Não conseguimos medir o que aconteceu, mas, certamente, nos atinge uma comoção. Aprendemos que é preciso uma grande capacidade de sacrifício, ou seja, de empenho pessoal, para tornar possível aquilo que o Senhor nos pede”.

A seguir algumas notas da palestra da Profª. Ana Lydia que contou sobre sua experiência como professora universitária à luz do livro "Educar é um Risco" de Luigi Giussani:
Falar sobre educação é o grande desafio de hoje. A educação está em crise. A universidade está em crise. Por isso este é um livro revolucionário. O que uma professora de fisiologia, como eu, tem a ver com este livro? Este livro fala dos fundamentos da educação. O que é o processo educativo? Quando se faz uma experiência real de educação? Qual é o método para educar que deixa feliz o educador e satisfeitos os alunos? Há alguns anos recebi uma carta da Associação Médica de Residentes da Escola Paulista de Medicina que me fez retomar minha experiência como professora. A carta dizia: “Nesta Escola a gente sai com raiva do paciente. Ele é burro, teima em fazer aquilo que não deve, insiste em colocar questões que não sabemos resolver”. Essa carta me fez pensar: que sentido tem gastar minha vida aqui? O que estou ensinando? Sendo professora dos primeiros anos de Medicina, comecei a prestar atenção em meus alunos ao se formarem e descobri que é comum que haja um, dois ou mais suicídios entre residentes. Este ano, cinco alunos morreram no torneio entre faculdades de medicina, um de overdose e quatro num acidente de carro. Os tradicionais banhos do 6o ano de Medicina (onde se joga água uns nos outros) foram proibidos, pois aos poucos se tornaram um ato de violência insustentável. Além disso, comecei a olhar para minha experiência didática dentro da sala de aula. Os alunos geralmente tiram cópia do caderno de algum aluno aplicado e decoram o mínimo necessário no dia anterior às provas; dois ou três meses depois não sabem o que eu ensinei. Isso me deixava muito insatisfeita. Não há relação duradoura e próxima entre alunos e professores. São duas classes separadas, com vidas quase independentes. Isso é educar? É ensiná-los a serem bons médicos, enfermeiros ou então cientistas? Estão tratando da vida de pessoas. Hoje cresce cada vez mais a problemática ética na área da biologia. Foi nessa situação que me interessei em entender as bases da experiência educativa e me debrucei sobre o livro do padre Giussani. Como fazer os alunos gostarem do que fazem? Como fazer com que a universidade não seja apenas um trampolim para o trabalho, mas uma experiência que marca a vida? Esse é o objeto deste livro.
Uma pessoa bem educada é uma pessoa que sabe enfrentar bem a realidade qualquer que seja a forma como ela se apresente, que tem criatividade, flexibilidade, que sabe se relacionar com os outros. Ao contrário, para nós, a “educação” se resume a passar informação de forma excessivamente especializada. Estudar medicina, por exemplo, significa ser especialista em pedaços de pessoas: fígado, rim, etc. Cada vez se sabe mais sobre menos coisas. “Mas quem é o médico dele?”, dizia a carta dos residentes. Quem cuida da pessoa do paciente, quem escuta o que ele tem para falar? Os médicos hoje têm medo do paciente, tanto é verdade que as áreas mais concorridas são aquelas onde o médico tem menos contato com o paciente. Ninguém os ensina a lidar com as pessoas. Se educar não é introduzir na realidade, o que significa educar? Persuadir o outro das nossas opiniões e dos nossos pensamentos? Se não existe algo objetivo, fora, maior do que nós e que por isso desejamos conhecer e comunicar, porque educamos? Caso contrário, porque um garoto deveria ficar quieto nos ouvindo? Por trás da violência que eu mencionei antes, da chamada falta de limites e apatia que se tornaram marcas registradas nos jovens de todo mundo, esconde-se justamente uma educação que não é vista como educação à liberdade, mas sim doutrinação ou adestramento para o sucesso profissional. O deseducador soberano é o ambiente com todas suas formas de expressão. Esse ambiente torna impraticável o ato educativo, pois ninguém pensa ou tem coragem de pensar, ninguém tem coragem de ser exemplo, ou de conviver com o aluno. Ninguém pensa em introduzi-lo na vida real de forma positiva e sem medo. Este é o ambiente em que estamos mergulhados na universidade. À luz do que o livro de Giussani fala, comecei um projeto de extensão universitária no qual levamos os alunos nas favelas onde moram os pacientes que eles atendem nos hospitais públicos. Chegando lá eles passam a conhecer as dificuldades das famílias: falta dinheiro para comprar os remédios, para pagar o transporte, etc. Essa atividade começou a introduzir os alunos em uma relação médico-paciente completamente diferente. É um exemplo prático que surgiu a partir do trabalho sobre o livro. Para padre Giussani introduzir o aluno à realidade é introduzir o aluno no significado da realidade e a palavra significado tem dois pontos: “O que é isto?”, “Que valor esta coisa tem?”.
Também mudei o meu jeito de dar aulas. Se a pessoa é desejo de significado, o aluno só entende o significado da matéria quando entende o porquê de estar estudando aquilo. Cada pessoa deseja amar e ser amada, deseja a verdade, por isso não podemos passar por cima dessas coisas; não olhar para a urgência básica que cada um tem. O momento da juventude é o momento em que a urgência do significado grita o tempo todo. Negligenciar ou fechar os olhos dizendo que isso não é objeto para o trabalho educativo, é negar o que tem de mais verdadeiro e livre em nós e depois achamos ruim quando os alunos não se interessam pelas aulas. A cultura chamada pós-modernidade é dominada pela negação de qualquer relação originária. Não tem nada antes de mim, tem só meu pensamento agora. Estamos presos nas nossas redes de interpretações do real sem nenhuma via de saída para o real em si. Por isso, padre Giussani diz que a cultura pós-moderna tornou o ato educativo impensável. Há três implicações disso: 1) Se “não há fatos, mas só interpretações”, como dizia Nietzche, torna-se impossível dar um juízo de verdade. Na educação moderna não se coloca mais o problema da verdade; 2) A liberdade fica reduzida ao livre arbítrio. Arbítrio significa que a liberdade se esgota na escolha entre infinitas possibilidades, tendo todas o mesmo valor, dado que nenhuma delas está enraizada em algo objetivo. Essa dissolução da liberdade na mera escolha gera em nossos alunos e jovens uma espécie de cansaço espiritual ou tristeza do coração e todo educador vê esse desânimo, essa falta de energia estampada no rosto dos alunos. Ser livre hoje é sinônimo de ausência de compromisso. Como, num ambiente assim, o educador leva o aluno ao gosto pela responsabilidade? Segundo padre Giussani é a meta da educação. O caminho da felicidade na vida, o risco da criatividade e o jogar-se na realidade; 3) Cai por terra o sentido da vida como história, construção, crescimento. O sentido do tempo se corrompe. O tempo que passa não é mais vivido como ocasião de amadurecimento, de crescimento do ser. O homem não tem mais vontade de crescer. Numa subjetividade tão grande assim, como é possível levar o aluno realmente a se interessar pelo outro? Será possível educar para uma verdadeira comunidade humana? Participo do núcleo de Bioética da Escola Paulista de Medicina e uma das coisas que mais nos preocupamos nesse momento é como os alunos estão trabalhando seja com os animais durante as aulas, seja com os pacientes. Como é possível educar para uma verdadeira comunidade humana em que as pessoas se ajudem e se queiram bem? Sartre dizia: “o inferno são os outros”. Mas é preciso maravilhar-se, pois “só a admiração e o maravilhar-se permite o conhecimento” (Aristóteles). Sem o maravilhar-se com algo não há aventura científica, não há aventura do conhecimento. Por isso estamos diante de um desafio. A nossa experiência educativa, o nosso gastar a vida como educador chegou a um impasse. Este livro nos ajuda a enfrentar positivamente este impasse, nos ensina o caminho, retoma as origens da experiência educativa da sociedade cristã ocidental. Um dos pilares que este livro nos ensina é a necessidade de partir da tradição. A tradição é aquilo que nos foi entregue por quem veio antes de nós. A tradição permite que não caiamos em um subjetivismo e doutrinação, mas partamos de fatos e experiências passadas bem sucedidas.
A perda da autonomia universitária é uma das principais características da época moderna. Nós perdemos autonomia em relação a como era a universidade no início. A interferência do Estado nas universidades ocorreu à medida que o Estado passou a controlar os salários dos docentes, administrar e financiar a construção dos prédios e as eleições dos reitores. Vejam como é importante conhecer os fatos, a história a partir da tradição. Só assim poderemos entender quem somos, de onde viemos e partir para onde nós queremos caminhar. O livro de padre Giussani retoma toda esta tradição, relendo-a à luz da cultura de hoje e, sobretudo, o que é mais importante, propondo soluções. Ele não é um filósofo da educação que escreve sobre filosofia da educação simplesmente, mas um educador com 40 anos de experiência que descreve o que sua experiência o ensinou. É um livro que tem características eminentemente práticas.
O primeiro problema é que o professor tem que buscar o significado da realidade. Quanto mais me interessa o significado daquilo que estou ensinando mais o aluno acha o assunto interessante. É preciso tecer nexos com o real. Na minha vida encontrei uma experiência que me educou e deu gosto de me jogar na realidade: comecei a participar de um projeto de extensão universitária na PUC-SP nas comunidades eclesiais de base. Foi aí que me interessei por nutrição, porque encontrei crianças desnutridas nas comunidades que eu freqüentava. Um dos líderes comunitários disse-me: “Você que está na área de biologia, não quer escrever um livrinho para nos ensinar o que dar de comer a estes meninos?”. Eram operários que tiravam dinheiro do bolso para dar lanche para os meninos que ficavam largados na rua na zona leste de São Paulo. A partir daí me interessei pela desnutrição. Padre Giussani se debruça sobre o problema educativo querendo, sobretudo, fazer vir à tona aquilo que o ser humano tem de maior: o desejo do infinito, o desejo do bem. A vida é um desejo de não medida e a felicidade tem esta característica, por isso, o motivo último de padre Giussani não é só falar do cristianismo, não faz um proselitismo religioso, mas quer ajudar os meninos a serem mais felizes, a entenderem e a conhecerem mais a realidade e lidar melhor com ela.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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